L’animateur d’une cinémathèque est une espèce de charmeur de serpents. Un joueur de flûte de Hamelin. C’est très dur.
Henri Langlois, Écrits de cinéma
No texto de balanço do último IndieLisboa, Luís Mendonça tornou pública a sua preocupação com as explicações aduzidas a propósito do cancelamento de várias sessões que deveriam ter tido lugar na Cinemateca Portuguesa. À margem do festival, Roma città aperta (Roma Cidade Aberta, 1945) não foi projectado como estava no programa, isto é, no âmbito das comemorações dos 40 anos da Revolução dos Cravos. Pelos comunicados da Cinemateca Portuguesa ficamos a saber que o distribuidor destes filmes, Paulo Branco, “pediu” que as obras não fossem mostradas, invocando o seu contexto de exploração comercial. No caso do filme de Rossellini, informa-se nesse comunicado uma futura reposição da obra no circuito comercial. O futuro é vasto e indefinível e o passado que se queria celebrado com(o) uma “cidade aberta” foi, desse modo, colhido pela vaga de (im)pedimentos que têm perturbado o normal funcionamento da Cinemateca. Em que medida a defesa do cinema, mesmo de um ponto de vista comercial, colide com a actividade de uma instituição de inquestionável relevância pública como é o nosso Museu do Cinema? Os filmes em questão estão preservados nos cofres do ANIM, arquivo que trabalha numa relação directa com a Cinemateca, conciliando a missão de preservar os filmes com a obrigação de os dar a ver.
No dia 28 de Agosto, a Cinemateca Portuguesa emite novo comunicado, onde se lê: “A pedido expresso do detentor dos suportes materiais (cópias em 35mm) em depósito no Arquivo da Cinemateca e neste momento disponíveis para ambos os filmes, ‘The Territory’ de Raoul Ruiz e ‘O Rei das Rosas’ de Werner Schroeter, programados na retrospetiva ‘E Agora? Lembrando Joaquim Pinto e Nuno Leonel’ não serão exibidos”. De novo, filmes distribuídos (e, aqui, produzidos) por Paulo Branco são suprimidos da programação da Cinemateca Portuguesa, não havendo, desta vez, qualquer referência a um propósito comercial ou a promessas de reposição futura dos filmes. Todos estes (im)pedimentos provocam um conjunto de reflexões que dificilmente não provoca as questões: para que serve, afinal, a Cinemateca Portuguesa? Qual a natureza da sua missão? Que consequência podemos esperar do facto, até ver inaudito, de se ter a Cinemateca como player do mercado concorrencial? Servirá esta, afinal, como mero repositório de obras da história do cinema, ficando assim limitada aos serviços do ANIM, ou deve assegurar que um arquivo de cinema não seja uma memória morta, de acesso dificultado à população ou dependente dos humores do mercado?
A analogia com uma biblioteca poderá ajudar à resposta. Tenha-se como exemplo uma biblioteca igual a tantas outras, que recebe os livros enviados pelas respectivas editoras – como manda a lei – e os acomoda convenientemente num arquivo. Contudo, nessa biblioteca, os livros, para serem consultados pelo utente, estão sujeitos à autorização dos detentores dos seus direitos comerciais, porque está por provar em que medida uma biblioteca interfere positivamente com o mercado. Está por provar? Não, claro que não está. A rede pública de bibliotecas inscreve o direito de acesso livre e universal à cultura e à informação tal como é uma das principais responsáveis pela formação de novos e insaciáveis leitores. Do mesmo modo, a actividade da Cinemateca Portuguesa não pode ser separada da actividade do ANIM, sob pena de este se tornar num arquivo morto, a cinefilia extinguir-se de vez e o cinema perder a sua própria memória. Por absurdo, consideremos a hipótese de estes (im)pedimentos serem a primeira faísca de um incêndio de proporções incontroláveis. Se todos os distribuidores/produtores começarem a condicionar a programação da Cinemateca Portuguesa/ANIM, quantos e que filmes restarão para as projecções, que todos queremos que sejam regulares, nas salas Luís de Pina e Félix Ribeiro?
Face a tudo isto, o À pala de Walsh não pode deixar de lançar a interrogação sobre se estaremos ou não na presença de um grave ataque à razão de ser da Cinemateca Portuguesa/ANIM. Lançamos um apelo à direcção da Cinemateca Portuguesa e aos agentes do cinema directamente interessados para que esta situação seja objecto de um debate, por forma a que prontamente se restaure a ligação, que a nosso ver não pode ser quebrada, entre as missões de preservar e de divulgar a memória do cinema. Ou queremos uma Cinemateca Portuguesa e um ANIM ou queremos uma Cinemateca Portuguesa ou um ANIM. Como a democracia já está crescida, e as cidades se querem abertas – tal como o cinema, que a partir delas se lançou ao mundo -, a nossa posição não pode gerar dúvidas e, por isso, o nosso pedido é outro: cinema, todo o cinema do mundo, na Cinemateca Portuguesa.
Carlos Natálio
João Lameira
Luís Mendonça
Ricardo Vieira Lisboa