No segundo texto de uma cobertura atípica do Queer Lisboa destaco dois títulos de dois realizadores à volta dos seus próprios filmes: o filme Ron Peck que olha através de Nighthawks (1978) para uma época e para uma vida e o filme de Pier Paolo Pasolini que funciona como caderno de apontamentos para um filme que nunca chegou a fazer.
Nighthawks II: Strip Jack Naked (1991) de Ron Peck
Antes de começar a sessão Ron Peck contou que dois dos motivos pelos quais fez Nighthawks tinham muito que ver com: (1) a necessidade de representar um homem abertamente gay sem o peso melo-dramático cliché [The Boys in the Band (1970) de William Friedkin] ou o secretismo maníaco [Victim (Vítima, 1961) com Dirk Bogarde] como até então o cinema não havia sido capaz de fazer – um homem como qualquer outro, com uma vida como qualquer um e que gostava de outros homens e sonhava encontrar um parceiro para a vida [e a diferença para filmes como A Very Natural Thing (1974) tem que ver com o facto de pela primeira vez tanto os actores como quase toda a produção serem homossexuais que estavam profundamente preocupados com a imagem que passariam da “comunidade”]; (2) produzir imagens que retratassem a comunidade homossexual – já que desde pequeno sempre se deparara com a quase total ausência de imagens desse género (e como sabemos hoje, mais do que nunca, se não existem imagens não existe simplesmente), sendo o cultivo do corpo em revistas de desporto americanas a coisa mais próxima com que se podia masturbar.
Esses dois motivos foram satisfeitos, ainda que de modo possivelmente amador – e esta repescagem que agora se faz do filme tem mais que ver com o marco histórico que representa e menos com as suas grandes qualidades formais e narrativas. No entanto, como sempre com filmes destes, há uma necessidade de contar o processo, exibir as dificuldades por que passaram, de divulgar as histórias de bastidores. À partida essa é a razão de ser de um filme como Nighthawks II. De qualquer forma o que Peck faz com Strip Jack Naked é muito belo, especialmente pelas intenções que o movem – e de novo não é pela sua depuração das artes cinematográficas, o filme peca por um certo lado artsy a tentar imitar o Godard dos anos 80 (uns homens nus rodeiam televisores e passeiam-se no escuro ao som de suaves gemidos).
A saber, a intenção de se desculpar pela montagem, a intenção de se dar a ver pelo filme e a intenção de contextualizar o filme no seu tempo. Das três a última é aquela que talvez seja menos conseguida por necessitar para isso de uma dimensão histórica e sociológica que o realizador não faz nem tem desejo de fazer. São portanto as outras duas que mais nos envolvem.
Ao desculpar-se pela montagem o que Peck está a fazer é a tentar justificar-se perante todos aqueles que não ficaram na montagem final de Nighthawks. Conta que a primeira versão tinha mais de três horas e meia e conta também que praticamente nenhum dos actores do filme o eram profissionalmente – eram sim pessoas convocadas em bares e discotecas gay, amigos, amigos de amigos… – e desse modo cada um acabava por fazer de uma versão de si mesmo. Cortar um filme é já por si um acto cruel, agora cortar amigos de um filme será certamente muito pior, e pior ainda será cortá-los quando estes estão fazendo de si. Tentar gerir a necessidade artística de cortar (o ritmo, a atmosfera, as motivações) e a vontade pessoal para não o fazer é aquilo que Peck tenta explicar em Strip Jack Naked, e isso por si é muito valioso.
No entanto há outro aspecto, que é particularmente tocante, um realizador que revisita a sua história através do seu próprio cinema. Numa narração livre de grandes laivos poéticos e feita pela própria voz, Peck fala da sua infância, dos primeiros desejos, das primeiras aventuras, das primeiras descobertas, dos hábitos e do quotidiano de um homem gay numa sociedade que ainda não via isso com bons olhos. Mas se a princípio usa fotografias de família para descrever o período da infância, a partir de certo momento são os seus filmes, as primeiras curtas de escola e depois Nighthawks, que dão vida e cor à sua própria história. A isso se chama cinefilia, conhecer-se e dar-se a conhecer pelo cinema.
Appunti per un’Orestiade africana (Notes Towards an African Orestes, 1970) de Pier Paolo Pasolini
A relação de Pasolini com África é o tema do documentário Profezia. L’Africa di Pasolini (2013) – nele ouvimos Bertolucci (a quem o filme é dedicado) explicar que o seu colega se fundia com os seus temas. Essa podia ser uma simples frase laudatória, dessas que não querem dizer muito e ficam sempre bem. No caso de Pasolini não se poderá desconfiar da veracidade da afirmação. Comunista de primeira água e activista de fundo, o realizador italiano sempre quis fazer “cinema para as massas”. Hoje em dia esta expressão tem um outro peso e uma outra leitura, o blockbuster, o filme de pipoca, o cinema do APV. Mas para Pasolini um “cinema para as massas” queria dizer um cinema para o povo e sempre que possível pelo povo também. Daí que muitas vezes tenha escolhido actores não profissionais e tenha tomado particular atenção aos locais de rodagem – como se eles de algum modo emanassem para os filmes algo das gentes que neles viviam.
Appunti per un’Orestiade africana é um filme que, como nos diz o próprio realizador (é dele a narração) não é nem uma ficção nem um documentário, é sim um conjunto de notas sobre um filme que ainda não existe (e talvez só essa intenção de usar a câmara de filmar como bloco de notas valha todo o filme). O realizador teve a ideia de filmar a Oresteia de Ésquilo na África contemporânea (a freudiana história de Electra que mata sua mãe depois de assistir ao assassinato de seu pai pela progenitora e que depois do homicídio pede ajuda à deusa Atena, a deusa da justiça, que decide fundar o primeiro tribunal humano para julgar Electra, que acaba absolvida). As intenções de Pasolini são várias, trazer o helenismo clássico para África (a “terra pura”), comparar as independências em catadupa das ex-colónias europeias nos anos 60 com o mito da instauração da justiça na Terra (o filme teria que ser filmado num país com uma democracia do povo, de preferência de influência maoista) e tomar como protagonistas os próprios africanos, como se viesse do povo essa construção de uma democracia comunal.
África aparece então na obra de Pasolini com esse propósito – por um lado, dar espaço cinematográfico a um continente quase sempre abandonado (por todos e também pelas artes), e por outro porque para ele havia no continente uma força em potência, uma utopia por realizar. Reportando-me de novo ao documentário de Gianni Borgna e Enrico Menduni (que está na competição de longas documentais do festival) escutamos a seguinte tirada da boca do próprio poeta-realizador: África começa nos arredores de Roma. Portanto para Pasolini África é primeiro que tudo um conceito, um espaço aberto, uma terra de possibilidade, um local ainda pouco corrompido pela sociedade “neo-colonialista, capitalista e burguesa”. Ou seja, desde Accattone (1961) que Pasolini filma em África.
E é este o cerne da relação entre o realizador e o continente: para ele África é uma ideia que lhe serve uma ideologia e um propósito político. E portanto é uma ideia manipulativa (ou manipulada) que pouco agarra à realidade [como já pouco agarrava a ideia do realizador à Índia recém-independente na curta-metragem semelhante na forma e no tema, Appunti per un film sull’India (1968), onde também lhe explicavam que os mitos hindus eram mais metáforas do que projectos de sociedade]. O interessante em Appunti é que Pasolini tem a coragem de admitir isso mesmo. A certa altura pede a uma série de alunos africanos que comentem as suas ideias e eles, polida e educadamente, dizem-lhe que pouco sentido fazem. E Pasolini, não demovendo, absorve esse ensinamento, concluindo o filme cheio de dúvidas: O novo mundo está instaurado, o poder de escolher o seu destino está finalmente nas mãos do povo. As divindades primordiais coexistem com o novo mundo da razão e da liberdade. Mas como concluir? Não existe conclusão última, está suspensa. Uma nova nação nasce e os seus problemas são infinitos. Mas os problemas não se resolvem, vivem-se. E a vida é lenta. O caminho para o futuro não tem uma solução de continuidade, o trabalho de um povo não conhece nem retórica nem lei. O seu futuro está na ânsia do futuro. E a sua ânsia é uma grande paciência.