No primeiro texto de uma cobertura atípica do Queer Lisboa destaco dois títulos que se fixaram na memória: o filme (?) perdido de Derek Jarman e o filme recuperado (e restaurado) de Djibril Diop Mambéty.
Will You Dance with Me? (Recording Tests for Ron Peck’s Empire State) (1984) de Derek Jarman
Tempos recentes vêem dando a conhecer um novo género de fetichismo cinéfilo (pleonasmo?): o filme perdido. Reencontrar um filme de um grande cineasta que se julgava para sempre destruído delicia qualquer um, é o prazer de ver um filme nunca antes visto, de descobrir de que forma nessa obra (quase sempre seminal) se preserva ou antevê aquilo que tornaria grande dado realizador e, mais não fosse, a fantasia da caça ao tesouro. Por este motivo a apresentação de uma nova obra esquecida, qualquer que seja o realizador, vem entremeada de dois sentimentos opostos, a saber, a excitação pelo novo, e a (quase sempre) subsequente desilusão – na maioria dos casos os objectos redescobertos não são obras-primas pautando-se pelo amadorismo apaixonado das primeiras obras ou de experiências em novos meios e novos suportes (justifica-se assim o abandono da sala de vários espectadores).
Will You Dance with Me? é um pouco de tudo isto e ao mesmo tempo um pouco mais, bastante mais. Sim, é uma obra seminal na carreira de Jarman que antecede Caravaggio (1986) e The Last of England (1988) as obras que dispararam a carreira do realizador. Sim, é um exercício amador, uma série de imagens filmadas num bar de East London criadas com o propósito de auxiliar Ron Peck na pre-produção de Empire State (1987) – ainda que o filme de Peck acabasse por ter muito pouco que ver com estas gravações. Sim, é uma experiência com um novo suporte, nomeadamente as novas e mais leves câmaras de vídeo que vieram substituir os 8mm que então dominavam os trabalhos experimentais.
Mas a questão que se põem é onde está o filme em Will You Dance with Me? se é que ele está lá sequer. Pois note-se: não existem créditos de abertura nem créditos de encerramento (o filme começa tão de repente como termina, com os arranhões de um VHS em modo de pausa), o título a que nos reportamos foi dado por Peck (que até agora manteve consigo a cassete que Jarman lhe havia entregue no final da noite da rodagem) com base numa frase pronunciada pelo próprio Jarman – convidando um jovem a dançar para a câmara -, e do início ao fim sentimos que de facto nunca houve intenção do realizador/operador de câmara alguma vez mostrar estas imagens ao público. Mas mostraram-se.
E a verdade é que as intenções do realizador são cada vez menos aquilo que mais interessa na leitura de um filme. Porque um filme é-o por si, e tudo o que nele existe não é com certeza produto consciente do seu feitor. Talvez o que mais interesse em certos filmes seja aquilo que o realizador fez sem vontade. Ou talvez já nem seja preciso uma vontade por de trás de um filme. Um filme pode ser acidental (imagine-se quão belo pode ser aquilo que uma câmara captou por não ter sido desligada) ou automático (por exemplo uma câmara de segurança) e no entanto estar cheio de cinema. Essa é a beleza do cinema, é que ele pode acontecer por si, fazer-se sem que ninguém o deseje.
Will You Dance with Me? é uma manifestação evidente de tudo isto, um filme que não tinha intenção de o ser e que o é inegavelmente. É-o pela constante dúvida que se estabelece entre o que é encenado e o que não é [Peck explica que apesar de serem só não-actores alguns deles já haviam participado em Nighthawks (1978) do próprio Peck e outros em The Angelic Conversation (1987) de Jarman], entre a câmara que tanto é objectiva na forma como filma a fauna da boate, como é também subjectiva por sabermos que por de trás dela está um realizador que constantemente pensa a forma de filmar e enquadrar e que mais do que uma vez interage com o seu meio. É-o também pela forma como constrói personagens a partir de certas repetições, num fascínio plástico por certos indivíduos (os breackdancers, o casal de bailarinos, o velhote desajeitado, o rapaz bonito e o seu amigo, a velhota…), e pela peça histórica que acaba por se tornar (o arrasto do vídeo provoca efeitos estereoscópicos deslumbrantes e a banda sonora repleta dos êxitos pop dos anos 80 transporta-nos para uma época). Um filme profundamente imersivo, talvez por nunca o querer ter sido.
Touki Bouki (Journey of the Hyena, 1973) de Djibril Diop Mambéty
Tal como o filme de Jarman, Touki Bouki também é visto (foi visto) pelo prisma de um olhar conhecedor. Isto é, se em Will You Dance With Me? se tinha que lidar com as expectativas de um filme escondido, em Touki Bouki – que já não é assim tão escondido, menos ainda com o recente restauro da The World Cinema Project de Scosese que fez soltar algumas gargalhadas por ser um trabalho financiado por mecenas como Louis Vuitton – não se pode deixar de olhar o filme pelas lentes de quem já o conhece por outros meios. Que meios são esses? A curta metragem de Mati Diop (o apelido comum avisa-nos da relação familiar, Mati é sobrinha de Djibril) que venceu o prémio de melhor filme da competição internacional do último IndieLisboa, Mille soleis (2013).
O filme de Mati é um documentário que recupera a figura de Magaye Niang (o protagonista de Touki Bouki), num exercício sentido de homenagem cinéfila, de experimentalismo poético e de compreensão das lições de Mambéty. Quarenta anos depois da longa de estreia do realizador senegalês, descobrimos que o outrora jovem rapaz do filme é um homem decrépito, bêbado e nostálgico. A consciência disto não nos permite olhar para Touki Bouki com a mesma inocência que outros o vieram fazendo até então. Porque sabemos de Mille soleis que a história do clássico é também em parte a história real do seu protagonista (a rapariga de Magaye não foi para Paris como no filme mas sim para o Alasca, e nunca mais se viram desde então). Esta ideia de que a realidade precede o cinema ou que o cinema consome a realidade até esta se tornar patética é talvez o mais triste no filme de Mati Diop e não deixa de contagiar o riquíssimo universo de Mambéty.
Nesse sentido as sequências de abertura de ambos os filmes (os zebus com o seu pastor e a sucessiva matança dos mesmos), apesar de formalmente idênticas – Diop delicia-se com actualização de cenas e motivos do filme de 1973 – diferem em intensidade e simbolismo. É que se em Mille soleis também assistimos à sanguinolenta morte das bestas, essa carnificina vem filtrada por uma referência cinéfila e mais que isso, ao contrário da sobrinha, a Mambéty interessa mostrar o corte, o sangue esguichando, o estrebuchar animal. É pois pela crueza que os filmes se separam. Onde Diop se encanta nas brincadeiras em abismo do homem que se vê projectado, na história de amor perdida e na viagem romântica à neve (?), para Mambéty o que importa é um constante trabalho de desalinhamento: o filme vive algures entre a montagem associativa russa, a liberdade da nouvelle vague, a cor violenta do Technicolor e o arco narrativo típico da tradição oral senegalesa (o griot ou jali). Tudo fragmentário, tudo irregular e tudo fractal.
Posto isto não consigo evitar cruzar filmes que vou vendo e ouvindo. Em Profezia. L’Africa di Pasolini (2013) – sobre ele falarei no próximo texto desta cobertura -, mostra-se uma entrevista onde Pasolini explica que olha para o cinema como uma libertação da escrita, porque segundo ele os mecanismos do cinema são compreendidos em qualquer parte do mundo: o cinema como linguagem trans-nacional – ao contrário do italiano (ou do português, pouco importa) onde usamos signos para descrever o real, as palavras, com o cinema os signos são a própria realidade, daí a sua compreensão além fronteiras. Olhando para Touki Bouki não resisto a afirmar que se o cinema é trans-nacional, então Djibril Diop Mambéty fala com cerrado sotaque. E talvez isso seja o que de mais belo há neste filme, a sensação de que constrói diante de nós, na tela, um cinema com um olhar único que está simultaneamente enraizado na sua terra de origem e virado para o mundo.