A enorme fachada do cinema São Jorge já enverga um grande cartaz onde se lê em letras garrafais Queer Lisboa, 18 years of filth. O filth a que se reporta é com certeza o termo que tantas vezes se associou ao cinema de John Waters (e termo que o próprio tomou como imagem de marca), um dos homenageados desta edição do festival lisboeta e que terá uma pequena retrospectiva que coincide com uma outra (integral) no Lincoln Center Film Society, ambas emanando provavelmente da sessão Cinéma de la Plage que exibiu em Cannes este ano Polyester (1981) com recurso ao Odorama [sessão que a Cinemateca replicará amanhã com os famosos cartões aromáticos]. Mas filthy é um termo de difícil tradução: sujo, debochado, nojento, porco, badalhoco. A antevisão que se segue é portanto o reflexo daquilo que é este ano o festival, um misto entre o deboche badalhoco e a sua apropriação pelas massas. Sendo John Waters o epíteto desse mesmo estado de coisas – o King of Kink que virou tarefeiro “arriscado” de estúdio e “ousada” persona televisiva.
Razão de ser
Os últimos anos vêm mostrando que a representação da homossexualidade na televisão e no cinema (e em qualquer outra arte…) é cada vez menos um gesto disruptivo e muito mais uma aceitação do mercado de um público que também se quer representado e de um outro que pouco se importa com a representação do primeiro. Neste sentido séries televisivas estrangeiras têm explorado esse ainda há pouco tempo virgem filão (sendo que recentemente o mesmo se passou em Portugal, à escala possível, quando várias telenovelas passaram a incluir casais gays e a lidar com situações como a co-adopção por casais do mesmo sexo). No cinema isso já se vinha fazendo regularmente, mas no último par de anos esta situação tornou-se mais evidente quando a sexualidade não normativa dos personagens deixou de ser (o) elemento narrativo, veja-se The Bling Ring (O Gang de Hollywood, 2013) , Philomena (Filomena, 2013), This is The End (Isto é o Fim!, 2013), Paranorman (2012) ou Kick Ass 2 (Kick Ass 2: Agora é a Doer, (2013) e depressa se compreende que de todos os atributos de alguém, aquele que corresponde àquilo que cada um põe na boca é o que menos interesse tem. Neste sentido não é invulgar questionar-se a razão de ser de festivais de temática LGBT. Argumenta-se que, por um lado, em vez de abrir à sociedade um espaço como o Queer Lisboa ajudaria à formação de um gueto, por outro, que hoje em dia o activismo de um festival gay e lésbico já não tem razão de ser por as barreiras, os preconceitos e a homofobia estarem já desfeitos (ou quase). A resposta a tais objecções parece-me estar escondida na própria programação deste ano.
No primeiro caso, a forma que o festival encontrou de combater o fechamento foi apostar fortemente na cinefilia do seu público (ou do público que pretende alcançar): a já referida retrospectiva a Waters é o maior chamariz, a mostra quase integral da obra de Ron Peck chamará pelos cinéfilos mais aguerridos assim como a segunda exibição mundial de Will You Dance With Me? (1984) de Derek Jarman (juntamente com uma sessão dedicada ao seu trabalho na área dos videoclips). Grande parte da secção Queer Focus explora também este público com destaque para o filme sensação do festival Touki Bouki (Journey of the Hyena, 1973) de Djibril Diop Mambéty mas também para Appunti per un’Orestiade Africana (1970) de Pasolini – filme do período africano do realizador sobre o qual versa Profezia. L’Africa di Pasolini (2013) também presente nessa secção e na competição para melhor longa documental. E se ainda restam dúvidas sobre o pendor cinéfilo não esquecer o filme de época na secção Panorama dedicada à relação de Jean Cocteau com Raymond Radiguet, Opium (2014), mostrada este ano em Cannes.
Quanto ao segundo caso, o argumento baseia-se numa ideia de domesticação da cultura queer. Ou seja, agora que a lei começa a não distinguir e as pessoas também, pode parecer que deixa de ser necessário o activismo (político ou artístico…), mas como um membro que não se exercita, os direitos também esmorecem (só nos cartazes da CGTP é que os direitos adquiridos jamais serão perdidos). Nesse sentido não só é importante manter a pressão política e moral sobre as fobias como, mais importante, é fundamental quebrar as ideias de domesticação. E neste ponto um nome parece sobressair do programa deste ano, António da Silva. Com um total de seis curtas metragens no festival, uma delas em competição – Cariocas (2014) -, o realizador vem trazer de novo para a mesa o explícito, o criminoso e o ilegal, mostrando mais dois filmes de uma série que vem dedicando aos locais públicos de cruising. Mas claramente o nome de Peter de Rome não fica esquecido. Depois de uma pequena mostra dos seus filmes mais icónicos na edição do ano passado, este ano – e depois do seu falecimento – exibe-se numa das sessões das Hard Nights o documentário Peter de Rome: Grandfather of Gay Porn (2014)
Os que cá estão
Outra crítica injusta onde por vezes se incorre (e eu já o fiz mais de uma vez) é falar dos filmes que não estão e especular por que motivos assim acontece. Alguns títulos ofuscam pela sua ausência: Pride (2014) que venceu a Queer Palm (onde um dos elementos do júri era João Ferreira, director do festival) não está presente e estrear-se-á dentro de um mês pela NOS, Love is Strange (2014), o novo filme de Ira Sachs apresentado em Sundance e Berlim (que venceu a competição de longas de ficção há dois anos), também não poderá ser visto apesar de ter distribuição da Midas Filmes e ter estreia agendada ainda para este ano (e poderia referir outros títulos, Bridegroom, 52 Tuesday, The Dog, To be Takei ou Lilthing). A verdade é que nestes casos as ausências não se dão tanto por falta de vontade de mostrar os filmes mas quase sempre por querelas entre festivais e com as distribuidoras comerciais, traduzidas em questões de burocracia e venda de direitos mas também em sovinice e competição tonta por poucas centenas de espectadores.
De qualquer forma vivam os que cá estão. E são muitos. Este ano, a abrir o festival temos Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (2014), filme de Daniel Ribeiro que já tinha vencido a competição de curtas do festival com Eu Não Quero Voltar Sozinho (2010) e que com este último filme venceu o Teddy Awards em Berlim. Também galardoado é Nånting måste gå sönder (Something Must Break, 2014) de Ester Martin Bergsmark que venceu o tigre em Roterdão [e que o ano passado mostrou o seu filme She Male Snails (2013) no festival]. Vindo da quinzena temos Xenia (2014), mais um título da “nova vaga” grega. Vindo de Berlim com o prémio do júri temos o último filme de Bruce La Bruce, a média metragem Pierrot Lunaire (2013) que já foi exibido na última edição do IndieLisboa. Nas curtas destaco Mondial 2010 (2014), também vencedora do Teddy – um filme-diário ficcional sobre o cinema como coisa que se oferece e sobre a lente como meio para compreender o horror (o conflito israelo-árabe) e Boa Noite Cinderela (2014) de Carlos Conceição – realizador e filme que foram tema para uma das últimas Conversas à pala -, estreado no IndieLisboa e seleccionado para a semana da crítica em Cannes.
Mas como todo o mundo sabe prognósticos só no final do jogo, que é como quem diz cala-te e vai ver os filmes. Ámen!
A 18ª edição do Queer Lisboa começa hoje e vai até dia 27 de Setembro.