O primeiro filme de Polanski na América, Rosemary’s Baby (A Semente do Diabo, 1968), revela desde logo alguns dos traços que marcariam a carreira do realizador polaco, e serve ao mesmo tempo para deixar uma inquietante e inesquecível primeira impressão no cinema americano. Assustador pela forma como acompanha a espiral descendente, entre a solidão e o desespero, da sua personagem principal; é também claustrofóbico pela forma como vai diminuindo o espaço e reduzindo a possibilidade de escape, quer do protagonista, quer do espectador. Ao assentar a construção da narrativa num ambiente que vai lentamente explorando inseguranças e paranóias, apela a medos colectivos, que se vão tornando igualmente credíveis e arrepiantes.
Para Polanski as aparências nunca são realmente o que transparecem e há sempre um segredo escondido a ameaçar o futuro. Nos seus filmes, a monotonia da existência e os detalhes sofríveis da vida ordinária podem, por si mesmos, levar a uma asfixia que provoca uma reacção desproporcional, como em Repulsion (Repulsa, 1965), Le locataire (O Inquilino, 1976) ou Carnage (O Deus da Carnificina, 2011). Mas existem também alturas em que realmente há algo à espreita, pronto a abalar um quotidiano aparentemente tranquilo e uma calma temporária, como em Death and the Maiden (A Noite da Vingança, 1994), Cul-de-sac (O Beco, 1966), ou o caso deste filme. Desta vez, acompanhamos a história de um jovem casal a quem tudo parece correr de feição, felizes com a mudança para um novo apartamento, e uma nova etapa na sua relação. Polanski escolhe eficazmente a dupla de actores, tendo em conta atributos que pretende na caracterização do casal. Ela é Rosemary, numa interpretação contagiante de uma Mia Farrow próxima de um estado angelical, que na realidade é fragilidade, onde a ingenuidade e submissão surgem como naturais e problemáticas. Ele é Guy, numa interpretação não menos brilhante de John Cassavetes, que aqui dá corpo a um actor conflituoso, alguém sempre a desempenhar um papel, em permanente luta com o mundo à sua volta (mais tarde Cassavetes assumiria a ruptura com Polanski, ao declarar “You can’t dispute the fact that he’s an artist, but yet you have to say Rosemary’s Baby is not art”) – e muitas vezes esse mundo é apenas Rosemary. É neste conflito de personalidades, e de actores, que começa por jogar-se o desenrolar do filme.
São vários os filmes de Polanski onde o espaço reduzido de acção surge como aspecto determinante. Em filmes como Carnage, Death and the Maiden ou o mais recente La Vénus à la fourrure (Vénus de Vison, 2013), o cenário único é utilizado para condensar e acentuar a tensão constante, para reflectir a impossibilidade de fuga da acção imediata, pelo menos enquanto esta não atingir a sua conclusão. Já nos casos de Repulsion, ou Le Locataire, Polanski recorre ao espaço exíguo para acentuar fobias e o desespero solitário, aproveitando ao máximo elementos como sons externos e sombras, para mostrar o isolamento das personagens num mundo próprio. Em Rosemary’s Baby, o próprio apartamento acaba por ganhar relevância como parte do mistério, com o seu passado sinistro a ameaçar a história. Polanski não utiliza o apartamento no sentido tradicional de um filme de terror, para assustar, mas antes para sublinhar a falta de espaço com que Rosemary se depara, à medida que perde independência. Mais do que a intromissão do apartamento na história do filme, este serve como veículo para a intromissão de um casal de vizinhos idosos, primeiro através das paredes finas do apartamento, e depois através de um convite para jantar, que se estende a uma presença constante na vida do casal.
Os primeiros sinais de problemas surgem depois de o casal decidir ter um filho, e, em particular, depois de uma noite em que Rosemary tem um pesadelo, no qual é violada por uma estranha criatura, para ser confrontada no dia seguinte com a admissão por Guy de que teve sexo com ela, enquanto ela estava inconsciente. Polanski utiliza o pesadelo para aludir a um imaginário surreal, numa sequência que quebra temporariamente com a objectividade do filme até aí. Ao evocar elementos esotéricos e distorções da realidade, e ao alongar até ao máximo a duração da sequência, como que ameaçando não sair de lá, compõe um breve quadro de horrores que perdura – e tão assustador como a própria revelação despreocupada de Guy. É precisamente após o anúncio da gravidez de Rosemary, que quer o casal de vizinhos, quer o marido, assumem uma posição de controlo opressivo sobre a vida desta (e por transferência, do futuro bebé), controlando a sua alimentação, o seu médico e contacto com o exterior. Aos poucos vemos Rosemary desaparecer numa apatia triste, a anular-se à medida que a sua casa se torna a sua prisão. Será no esboço da sua reacção, entre o medo de sentir estar a perder a cabeça e a tentativa de escapar ao destino que lhe é imposto, que decidirá o caminho do filme.
A questão em Rosemary’s Baby passa também pelo estatuto da mulher enquanto parte submissa de uma sociedade conservadora, confinada a desempenhar um papel determinado pelo domínio masculino, entre aceitar o que lhe é dito porque não está em condições de determinar o seu destino, ou ver as suas dúvidas desconsideradas como próximo da loucura. Em Repulsion, filme ainda mais complexo que este, Catherine Deneuve interpreta uma rapariga de aspecto frágil, constantemente aliciada pelo sexo masculino, mas onde as cicatrizes de um passado problemático a impelem para um isolamento gradual. A recusa em ser dominada e transformada em objecto de desejo, ou seja, em cumprir o seu papel, leva-a a colocar a própria sanidade em causa, ao duvidar da sua percepção do mundo, levando-a a um violento afastamento do que a rodeia. Em Death and the Maiden, Sigourney Weaver é uma antiga prisioneira política, torturada durante anos por um regime ditatorial, sem no entanto nunca ter visto a cara do seu agressor. Agora a viver em paz mas escondida do mundo, encontra certa noite por acaso o homem que julga ter sido o seu agressor, reconhecendo-lhe a voz. Durante o resto do filme tenta convencer o seu marido de que aquele homem é realmente o seu agressor, mas vê a sua convicção posta em causa permanentemente, acusada de estar afectada pelo seu passado, na sua percepção da realidade. Este tipo de comportamento instintivo, por oposição a racional, acaba por ser considerado como desviante, por associação a uma incapacidade de seguir a norma, e a sanidade destas mulheres acaba posta em causa – é também esse o destino de Rosemary.
Além de Polanski, variados outros filmes abordam também este tema. Em Splendor in the Grass (Esplendor na Relva, 1961) de Elia Kazan, Natalie Wood é uma jovem vítima de um amor convulsivo, e quando não corresponde ao que lhe é exigido, sob a asfixia de uma mentalidade conservadora, acaba por ser castigada, e vê a sua lucidez questionada, na confusão dos seus sentimentos e desejos com irracionalidade – por contrapartida ao seu par, interpretado por Warren Beauty, que uma vez “curado” do seu comportamento desviante, acaba integrado na sociedade. Em Lilith (1964) de Robert Rossen, encontramos outro exemplo onde a repressão moral resulta numa repressão sentimental, onde os sentimentos da personagem feminina são associados a histerismo – neste caso, Lilith encontra-se numa instituição psiquiátrica sem esperança de sair, enquanto o seu par masculino no filme, de comportamento obsessivo e perigoso, não é julgado sob a mesma luz. Bergman abordou o mesmo assunto em Såsom i en spegel (Em Busca da Verdade, 1961), numa história sobre o regresso de uma mulher a casa depois de um período de internamento – só que as perturbações da normalidade continuam, e a realidade ambígua torna-se difícil de discernir.
Esta é uma questão que continua a viver sobretudo nos filmes de terror, onde a associação de um comportamento a uma irracionalidade, a uma recusa em ver o mundo de forma uniforme, em duvidar se mais alguém consegue ver o mesmo ou se estamos sozinhos, acaba por ser a premissa para uma história de terror. Perto do fim de Rosemary’s Baby, uma sequência em particular coloca o espectador, finalmente, do lado de Rosemary, quando esta decide reagir contra a sua manipulação, e procurar ajuda para descobrir a verdade à sua volta. Mas ao mesmo tempo, fisicamente esgotada, Rosemary parece confusa, o que nos leva a duvidar dela, e a questionar se teríamos exagerado no que pensávamos ter visto até aí. O filme desafia, desta forma, o espectador a decidir por si, consoante preconceitos sobre a percepção do comportamento feminino – no fim, o espectador é obrigado a escolher acompanhar Rosemary na sua paranóia ou ficar de fora, a escolher se está disposto a perder a cabeça com Rosemary ou não.
Rosemary’s Baby (A Semente do Diabo, 1968) será exibido dia 19 de Setembro, pelo Cineclube Ao Norte, no Auditório dos Estaleiros de Viana do Castelo.