I am forced by circumstances to keep my stories on an innocuous level. What I can do, however, is to pack my films with meaning and psychological inflections and shades, and make a whole which will communicate a lot of things to many people.
Satyajit Ray
Quando Satyajit Ray começou a fazer filmes em 1955 [Pather Panchali (A Balada da Estrada), o primeiro tomo da sua obra maior, a trilogia de Apu] já poucos anos faltavam para a Nouvelle Vague e o neorrealismo era a inspiração mais clara daquele que viria a ser o nome mais importante do que entretanto se denominou o novo cinema indiano ou o parallel cinema. Tudo isto para dizer que em 55, no Ocidente, a censura (quer a do Código Hays nos EUA, quer a dos fascismos na Europa) ia afrouxando a mola. Caso que não acontecia na Índia, sobretudo na década de cinquenta, pós independência (1947), que foi também a tão falada época de ouro do cinema hindi. É por isso que Ray, prudentemente, fala das suas imagens, das suas histórias como inócuas perante a sempre insistente pergunta que lhe faziam dia sim dia não: “porque é que o seu cinema não é mais político?” Mas seria o realizador um kapurush (um cobarde)?
A resposta, sendo óbvia, evidencia que o que há de moderno em Satyajit Ray está nessa sombra e nessa inflexão com que trabalha a aparente “inocuidade clássica”. Melodramas tradicionais, pequenas comédias, histórias de detectives, musicais, tudo parece parte de uma canção infantil em ritmo alegre, longe dos propósitos revolucionários de um Eisenstein ou da difusão de um ideal ariano em Leni Rienfenstahl. Contudo, no balouçar de Charulata, no batom de Arati ou nos sleeping pills de Karuna, ou devo dizer nessa mulher-actriz extraordinária que é Madhabi Mukherjee há um véu de seriedade que não está necessariamente à vista. O que este texto se propõe é o curioso exercício da escavação a partir dos seis filmes do realizador, que a Leopardo Filmes vai apresentar a partir do final deste mês em cópias restauradas, e trazer à tona alguns temas dessa seriedade. Seriedade essa que coloca Satyajit Ray na grande narrativa do cinema indiano como sinónimo de art house director, em oposição ao melodramas de Bollywood e aos masala films (nome dado aos filmes que misturavam os “sabores” da acção, da comédia, do drama, do romance, num “caldo” de números musicais a gosto). Também porque o critério da programação destes filmes não é óbvio, tocando ora o centro, ora a periferia da sua obra, é sem dúvida uma tarefa de dimensão igualmente política e imaginativa traçar o percurso que os une para além do lugar comum que vê em Ray um realizador humanista, anti-moderno, exportador da pobreza do seu país.
Se o cinismo deu cabo do pensamento humanista obrigando a pensar para lá do homem (ou após o homem no pós-humanismo), no cinema de Satyajit Ray o centramento na emoção afastava-o de uma pretensa frieza modernista. Começando com um carril de eléctrico e acabando numa lâmpada da mesma luz, a eléctrica, Mahanagar (A Grande Cidade, 1963) é, de todos os filmes exibidos, o melhor, – ou talvez apenas atrás de Charulata (1964), a sua grande obra prima. Mas é certamente o mais materialista e nele está em causa a definição dos constrangimentos de uma vida em cidade, uma Calcutá muito diferente, em mudança após a soberania do país. Nesse “circuito eléctrico” que envolve as personagens- uma família composta pelo marido, esposa, filho, pais do marido e irmã – está em marcha um processo de adaptação entre a formatação tradicionalmente mais rígida dos valores morais rurais e a aceleração citadina. Não se pode dizer que Ray queira fazer um elogio do novo como Walter Ruttmann fez em Berlin: Die Sinfonie der Großstadt (A Sinfonia de uma Capital, 1927) ou um elogio do velho presente nas incongruências urbanas tatianas ou até em Chaplin com City Lights (Luzes da Cidade, 1931). Interessa sim como o indivíduo se espelha na transformação da comunidade. Por isso decisivas as sequências ao espelho de Arati quando decide mirar o efeito da sexualidade nos seus próprios lábios. O baton ali de cima. Esse espelho é o mesmo que deixa ver as marcas no indivíduo da transformação do todo. Talvez por isso Ray esteja aqui mais próximo de Sunrise – A Song of Two humans (Aurora, 1927) de Murnau na forma como a relação cidade/campo duplica the woman/the wife, ou mesmo de Ozu e Tôkô monogatari (Viagem a Tóquio, 1953) quando decide filmar a cold war entre gerações.
Guerra Fria essa que é despoletada pelo acto inaudito: a esposa tem de, e quer, arranjar um emprego. Escândalo inaudito esse de um filme também sobre os “homens que desesperam e as mulheres que prosperam” [o marido não consegue sustentar a família sozinho; é a questão do vigor que mais tarde aparece na relação brain/body em Joi Baba Felunath (O Deus Elefante, 1979)]. Agora a Bharat Mata, a Mãe Índia, já não fica em casa e a influência britânica, de onde vem o provérbio que se ouve no filme “a woman’s place is in the house”, é aquilo que deve ser revista. A grande cidade é portanto o lugar da mulher moderna, ideal de emancipação ocidental. A mulher do ocidente que em 63 usa batom e trabalha fora de casa é a influência cultural que Ray via no próprio medium do cinema. Diz dele: “The concept of an art form existing in time is a western concept, not an indian one. So, in order to understand cinema as a medium, it helps if one is familiar with the West and Western art forms.” Influência ocidental, cinema que procura uma identidade trabalhando com a rebeldia das suas personagens. Essa procura faz-se, na mais pura tradição melodramática, no conflito entre os objectos e as ideias. O trabalho esse é uma realidade instável. O do marido, funcionário do Banco Novo (anyone?), termina subitamente antecipando as crises capitalistas. A venda de máquinas de porta em porta, a ocupação da esposa, é aquela que permite trocar máquinas caseiras por notas (notas novas, de preferência). Essas notas trocam-se por cigarros, por brinquedos para a criança, por roupa para a cunhada. O avô que precisa de óculos (no fundo é aquele que, recusando todas as transformações da família, precisa de ver) vai chorar, nessa extraordinária sequência, ao consultório do seu ex-aluno, agora oftalmologista. Mas não são os objectos que fazem ver, não são os óculos que fazem ver e por isso ele só vai começar a ver precisamente quando os perde no final do filme. Nessa roda dos objectos e da materialidade, Ray termina expondo o seu “humanismo”, que coloca um casal “nu”, sem emprego, perante a enormidade de uma floresta de betão mas com uma réstia de esperança. Tudo há-se ser melhor, amanhã.
O último plano de grua de Mahanagar, em que o casal, visto em picado, se vai imiscuir na multidão, ressoa misteriosamente na abertura de Charuluta do ano seguinte, 1964. Satyajit Ray abre aquele que sempre considerou o seu filme mais perfeito, aquele que nada mudaria se tivesse de o filmar novamente, com uma sequência em que a jovem Charulata está encerrada como um pássaro numa gaiola, gaiola e pássaro que vemos aliás no pátio que ela percorre. O cenário é aqui o século XIX mas a solidão, pode dizer-se, é a mesma. Os enquadramentos são muitas vezes gradeados e os binóculos que usa são simultaneamente a forma de ver lá para fora, mas também o modus operandi da literatura, de observar o mundo de perto, com detalhe [incrível momento de cinema esse em que ela observa os traunseuntes na rua através do seu binóculo, saltando de janela em janela ao longo da casa para conseguir manter uma continuidade, tal qual a projecção cinematográfica ou os exercícios de beabá de montagem sobre a continuidade espacial]. Mas dizia, esse “enjaulamento social”, que a esposa de A Grande Cidade também sente, é aqui não provocada pela rigidez do marido mas antes coloca em tensão os espaços fechados da casa citadina e a abertura da sua infância passada no campo. Charulata escreve mais tarde precisamente a história que será publicada num jornal com o título “A Minha Aldeia”. Neste sentido este é um dos pontos que permite ver a relação entre Mahanagar e Charuluta. Longe da euforia urbana realista do século XIX (ouve-se no recém estreado Os Maias (2014) de João Botelho frases que a ilustravam como “O campo é para os selvagens”), Satyajit Ray relaciona o campo com uma noção de origem e com uma nostalgia de simplicidade que se perde com a aceleração da metrópole.
Outros elementos haverão de continuidade entre os dois filmes: a arquetípica protagonista feminina forte, a relevância dos objectos (aqui mais marcadamente símbolos de relação amorosa entre Charu e o primo do marido, Amal: os já referidos binóculos, as folhas de bétel, o caderno, os chinelos), ou mesmo o final agridoce, aqui em homenagem directa ao fim de Les quatre cents coups (Os 400 Golpes, 1959) de Truffaut. Contudo, se no filme de 63 estava em causa uma reformulação dos socials, aqui em Charulata está a verdadeira lição de Satyajit Ray. Bhupati, o marido de Charulata, é um editor de um jornal mas no fundo um homem da política. Tem o seu “The Sentinel”, faz apostas para saber qual o partido que vencerá as legislativas em Inglaterra e não compreende como é que o final de “Romeu e Julieta”, essa impossibilidade do amor que traz a morte, pode ser uma grande tragédia por comparação aos affairs da ciência e da governação. Poderíamos ser tentados a pensar na relação entre Charulata e Amal, o jovem aspirante a escritor que recusa uma via de advocacia para o seu futuro, como um simples elogio do cineasta ao amor. Contudo, quer na recusa de julgamento moral da figura do marido (que vê o seu trabalho como o rival da sua esposa), quer na ausência de uma verdadeira tragédia para o seu filme, Ray ilustra bem a sua fina forma de “fazer política”.
“Os filmes, a arte nunca mudaram nada verdadeiramente”, disse Ray uma vez. Mas, como o avô de Mahanagar que tem óculos mas não vê, Bhupati ao estar próximo da política, não a vê, porque ela é o “deus das pequenas coisas”, em que cada dia em que o sol se esconde, em que a ameaça de tempestade ou o “entardecer sem lua” fazem todos parte do Ritmo. Desta feita, o que releva precisamente dessa recusa de oposição entre o trabalho e o amor, entre a política e a arte é o statement de que a vida é ritmo, que oscila como as ondas do mar e que à alegria se sucede a tristeza. Neste sentido Charulata é um filme renoiriano [sabe-se que Ray ajudou o francês a encontrar locais para filmar para o seu The River (O Rio Sagrado, 1951) e que por ele tinha forte admiração] e que quando Charu é empurrada por Amal no balouço, câmara fixa nos olhos de Madhabi (e Ray pela primeira vez por trás da câmara como operador), é esse balouçar a forte proposição política de Satyajit Ray. Balouçar esse que implica um ritmo, e que se escoa como o tempo ou a montagem se escoa e que se recusa a operar por inconciliáveis e oposições. Charulata é o “Romeu e Julieta” de Satyajit Ray (sim, esse realizador que só pôde filmar um beijo já tinha 62 anos), filmado como um grande filme de reconciliação com a vida, que comporta o amor como realidade que faz parte do tempo, que chega e parte como uma grande tempestade (ainda a água renoiriana) e que, como tudo, passará. Por isso, a luz só vem para o casal, não o dos que se amam mas o dos que se completam, quando descobrem que podem viver sob o signo da reconciliação: um jornal onde ela escreve literatura em inglês e ele terá os seus artigos sobre política em bengali.
Há dois momentos muito específicos em Charulata que convidam a fazer a ligação com um filme do ano seguinte, Kapurush (O Cobarde, 1965) filme breve, pensado inicialmente como double bill com Mahapurush (O Santo, 1965), também a ser exibido nesta recuperação da obra do realizador indiano. O primeiro momento é o freeze frame da conclusão (estranho ovni este num filme sobre a passagem e a fluidez). O casal em pausa é no fundo o casal que vamos encontrar em Kapurush. Ele, mais velho, plantador de chá, e ela, recusando-se a dizer se é feliz com o marido. Quando Bimal convida o argumentista de cinema, o “cobarde” Amitabham, para passar a noite em sua casa após o táxi deste ter avariado a meio de uma viagem de investigação para um filme, percebe-se que a visita vem positivamente perturbar essa estagnação. O outro momento a que me referia é a sequência em que Amil, para não perturbar a paz entre Charulata e o primo, parte. Acto heróico que tem como contraponto a cobardia de não seguir em frente com o seu amor. Se a dupla de “actores apaixonados” se mantém inalterada de um filme para outro, a já referida Madhabi Mukherjee e o não menos incrível Soumitra Chatterjee, pode dizer-se que a sua partida em Charulata é equivalente à incapacidade de compromisso de Amitabham em Kapurush. E se não tinha ficado claro, digo-o já, é que neste filme o herói que se transforma em cobarde, condenado para sempre a escrever o que outros hão-de viver (no final Bimal diz-lhe: “da próxima vez eu hei-de escutar e você fala”. Mas que pode ele falar além daquilo que só pode calar?) é o símbolo da perda das oportunidades na vida. Nesse sentido, nesse river of no return, Kapurush filma o amor post-Charulata mas sobretudo filma-o para mostrar a sua impossível remissão. A tempestade que trouxe Amil nunca mais será a mesma e o amor que outrora viveram não passa agora de uma perturbação de sono que os comprimidos para dormir ajudarão a minimizar.
Se o final de Kapurush traz um suspense dramático e parece intransigente com as decisões tomadas na vida, lembremo-nos que uma das coisas que Ray critica no cinema popular indiano era precisamente os seus heróis serem demasiado inverosímeis por serem bons e superiores em tudo. É aliás isso que, em Nayak (O Herói, 1966), a escritora Aditi (Sharmila Tagore) repreende ao cinema e em concreto aos papéis do “herói” Arindam Mukherjee, estrela de cinema indiana que ela, contrariada pela sorte da moeda ao ar, acaba por entrevistar numa viagem de comboio. Nayak é fundamentalmente uma inquirição sob a relação entre a arte da imitação e a vida, entre aquilo que compõe a mitologia das estrelas de cinema, sempre de uma perspectiva psicanalítica que põe em avaliação uma vida e uma profissão. Nesse sentido Nayak é o Smultronstället (Morangos Silvestres, 1957) de Satyajit Ray, não faltando sequer a mesma viagem para receber um prémio e as sequências oníricas. Numa delas Arindam passeia-se entre montes de notas, um esqueleto e um telefone. Essa sequência em que só surgem os ossos- pois num mundo de sonhos, a carne e o sangue não são para mostrar – transmite a angústia da passagem (do tempo, do comboio) a ideia que que não há reencarnações nem segundas oportunidades, a carne é para ser vivida agora. Mas para Ray, como dizia por vezes, a ele não lhe interessam aqueles que se cometem cegamente com uma causa, qualquer que ela seja. Interessa filmar é essa hesitação, filmar a dúvida, o espaço entre ou o eco que ressoa entre o facto e a lenda.
Dessa avaliação de uma vida, do espaço que está para cá e para lá dos óculos escuros do herói, ou do vidro que separa este e a entrevistadora da turba louca lá fora, é que Nayak vive. Grosseiramente, dir-se-ia que Ray se serve da rigidez analítica de Bergman [como se sabe não nutria grande simpatia pela “simplicidade” (?) do cinema do sueco] para, quando confrontado com o facto e a lenda, imprimir, fordianamente, a lenda. É isso que muda dos sleeping pills de Kapurush para o “brief encounter” de Aditi e Arindam. Em ambos, o “love story”, mais ou menos platónico, fica na memória de cada um. “E a entrevista?”, pergunta Arindam. “I’ll keep it in my memory”, responde Aditi. Na dela fica e na nossa também, num filme que coloca o cinema, a heroicidade na vida e na arte (os puppets são os mesmos) e os papéis que nela representamos (“this is called acting”) num mise en abyme louco à beira das lágrimas, à beira do amor. Arindam herói, Satyajit herói, nós heróis. Todos nós cobardes, a ver o mesmo belíssimo filme, e todos nós, no mesmo comboio, aquele em que beberemos coca-cola e veremos uma vez mais How Green Was My Valley (O Vale Era Verde, 1941), aqui citado por Satyajit Ray.
Desse corpo feito actor, feito mentira, carne e sombra, feito puppet para a ilusão da construção de um herói ou de uma estrela é possível pensar numa outra encenação, a religiosa. Mahapurush (O Santo, 1965) é um filme sobre essa encenação, sobre o ataque à fraude e ao extremismo religioso que fazia passar por santos embustes que viviam de proliferar “milagres de pau”. Não é então por acaso que em bengali mahapurush rime com kapurush, os santos e os cobardes de mão dada (para serem aliás vistos na grande sala escura em par). Mas além da evidente desconstrução do misticismo religioso de papelão é interessante relacionar o mais breve dos seis filmes a serem exibidos, pouco mais de uma hora, com o próprio método de Ray. Herdeiro do modernismo do renascimento bengali e do pós colonialismo britânico, mas avesso à improvisação, os seus filmes são “montados” na câmara, planeados meticulosamente para que a melhor técnica (“a que não se dá por ela”) possa evitar o glamour, que fazia do cinema indiano uma colagem de cançonetas e melodramas de pechisbeque, e trabalhasse a imaginação e a matéria prima da sua arte, a própria vida. Esse disfarce, essa montagem do show, vemo-la nós na maquilhagem e preparação do “santo” Birinchi e seu ajudante, de forma a que quando Satyan e Nybaran decidem desmascarar o homem que levanta o sol, que fala com Cristo ou que ensinou a relatividade a Einstein, o espectador saiba bem já da cobardia do santo ou da falsa santidade do cobarde. Estamos perante então uma breve farsa composta pelo “método- farsa” de todo o cinema de Ray, o método que nasce da aparição mas que, pelo fogo, faz com que as aparições desapareçam.
Se o falso êxtase do santo é o deleite cómico do espectador (e Mahapurush, o mais divertido dos seis filmes a exibir) ele liga-se aqui neste contexto menos ao “cobarde” com o qual foi originariamente emparelhado e mais ao único título dos anos 70 que se poderá ver. Joi Baba Felunath (O Deus Elefante, 1979) é tal como aquele um filme sobre máscaras que se levantam. Mas se a primeira se resolve como farsa, a segunda é obra engenhosa do detective Feluda, a personagem de livros infantis de mistério criado pelo cineasta indiano. Na segunda das suas aventuras em grande ecrã [a primeira é Sonar Kella (The Golden Fortress) de 1974] Feluda tem de descobrir quem roubou uma estatueta de Ganesh, o Deus Elefante, de um cofre de uma casa na região para onde vai passar umas férias. Se nos lembrarmos de Charulata há nele uma cena onde o ajudante do marido parece não estar empenhado no projecto do jornal. Este passa-lhe as chaves do cofre para a mão atribuindo-lhe a responsabilidade de tesoureiro. Mas with great responsability comes great…corruption e em 1964 Ray filma essa cena em que o ajudante vai ao cofre e rouba dinheiro ao sócio. Quer dizer, nós vemos o saque. Quinze anos mais tarde o tentáculo da corrupção ramifica-se, invisibiliza-se, e o herói tem de descobrir a sua causa, isto é, quem foi ao cofre roubar a estátua. Como se de um filme para o outro essa cena tivesse de ser ilidida e expandida pois é ela que se torna agora a causa do problema.
Nessa corrida ao pote, Feluda, uma espécie de combinação Sherlock Holmes/Poirot indiana, exemplifica aquilo que está em oposição à força bruta e ao poder do corpo: “the brain weapon”. Embora Joi Baba seja até certo ponto um jogo hitchcockiano (e jogo é a palavra chave, sendo que no final o que se ouve é a expressão “game’s up”, enquanto esperávamos apenas o tradicional “the end”), talvez porque Ray não gostasse abertamente de whodunits, há também espaço para o dilema moral de Feluda (mais uma vez o actor fetiche de Ray, Soumitra Chatterjee). Quando este coloca em risco o seu amigo, escritor de romances de detectives, o grande Lalmohan Ganguly, pondera deixar a sua profissão. Ganguly, que, por sua vez, sente uma admiração extrema (com o que quisermos subentendido) pelo corpo-feito-templo-feito-obra-de-arte, pelos bíceps, triceps e por aí fora do culturista que divide o quarto com os três mosqueteiros investigadores (Feluda, Ganguly e o assistente do primeiro, o seu primo, Topshe). Naquele que é o filme mais tardio dos seis que compõem a reposição, o único a cores, está presente mais uma vez como em todos os anteriores e aqui de forma mais textual a oposição entre corpo e mente, a forma como a composição dos dois produz a identidade.
O visionamento desta meia dúzia de filmes que vem no seguimento das reposições da obra de Ingmar Bergman e Jim Jarmush pela Leopardo Filmes permitirá ao público lisboeta e portuense expandir um pouco o conhecimento da obra de Satyajit Ray (que juntamente com Ritwik Ghatak e Mrinal Sen compõe a trilogia “sagrada” do cinema indiano) para além dos seus filmes mais conhecidos, a trilogia de Apu.