Inúmeras são as versões acerca das espantosas aventuras do cinema que nos acompanharam e que ainda hoje nos entretêm. Para alguns, a arqueologia cinematográfica é pontuada por grandes nomes, cuja linhagem aristocrática é convocada para nos convencer e relembrar das origens nobres da arte cinematográfica. Mas por muito que se queira, a camara obscura descrita por Alhazen (ca. 965-1039?) e Leonardo da Vinci (1452-1519) ou as complexas visões mágico-experimentais da Ars Magna Lucis et Umbrae (1.° edição 1646; 2.° edição 1671) e da lanterna mágica de Athanasius Kircher (1602-1680), não conseguem redimir de todo a ignomínia dos primeiros anos de vida dos espectáculos cinematográficos, realizados entre salões de café e feiras itinerantes. Nem as sombras chinesas ou os hieróglifos do Antigo Egipto constituem provas irrefutáveis da prefiguração e atracção da humanidade pelas imagens em movimento, cuja formulação, pelos historiadores mais ousados, remonta até a A República, Livro VII (Politéia) de Platão e Sobre a Natureza das Coisas, Livro IV (De Rerum Natura) de Lucrécio. Idealismo dominante esse, para o qual o cinema existiu desde sempre na cabeça do ser humano, independentemente dos conhecimentos técnico-científicos e das condições sócio-económicas que levaram à sua concreta realização. De resto, para a maioria dos historiadores o cinema é um fenómeno ideal, cujo estudo privilegia a descrição das contribuições que favoreceram o nascimento do filme enquanto arte do espectáculo em detrimento das razões que determinaram o seu aparecimento no final do século XIX. Na verdade, o cinematógrafo tem evidentes ascendências científicas: máquina que nasce e dá os primeiros passos na calma solitária dos laboratórios de cientistas, cujos interesses, impulsionados pelas transformações da revolução industrial, respondem à exigência de registar e investigar a realidade física no seu dinamismo.
Esta é a tese principal dos três episódios do filme The Origins of Scientific Cinematography (1990; 1992; 1993) de Virgilio Tosi, o qual opõe às reconstruções teleológicas e idealistas de muitas histórias escritas sobre o cinema espectáculo uma história pragmática, exclusivamente audiovisual, capaz de (de)mo(n)strar por imagens os processos e os aparelhos que levaram os cientistas a criar esta nova e revolucionária linguagem da imagem em movimento. De facto, Tosi dá-se conta da sua contradição, logo com a primeira edição do seu livro Il cinema prima di Lumière (1984), tomando consciência da impossibilidade da escrita, da narração subjectiva, de traduzir em discurso histórico a experiência acéfala, isto é, as recordações técnicas das imagens em movimento. Por este motivo, Tosi não conta nenhuma história no filme, produ-la literalmente continuando a fazer cinema na medida em que deita a mão nos arquivos, procura e mexe nas películas, monta e re-enquadra ilustrações, fotografias, lastras cronofotográficas e excertos fílmicos, já que a memória do cinema se faz com o próprio cinema.
O documentário de Tosi é um verdadeiro filme científico no sentido mais profundo do termo, não apenas por sustentar a tese segundo a qual as origens da cinematografia e da sua linguagem dizem respeito às investigações dos cientistas entre o século XIX e XX, mas por ser, tal como os excertos que o próprio Tosi mostra sobretudo no terceiro episódio (Early Applications, 1993), um filme simultaneamente didáctico, de pesquisa e divulgação, alicerces esses sobre os quais se fundamenta também a Association Internationale du Cinéma Scientifique.
O primeiro episódio (The Pioneers, 1990), tal como nos sugere o título, é dedicado aos pioneiros do cinema científico: o astrónomo Pierre Janssen (1824-1907), o fotógrafo Eadweard Muybridge (1830-1904) e o fisiólogo Étienne-Jules Marey (1830-1904). No que concerne ao primeiro protagonista, Tosi mostra a estrutura e o funcionamento do revólver fotográfico concebido por Janssen, aparelho científico que utiliza, pela primeira vez, um automatismo por assim dizer cinematográfico para o registo do evento astronómico de 1874 da passagem de Vénus perante o Sol. É um acontecimento de absoluta relevância, dado que faz a sua estreia em âmbito científico um instrumento capaz de gravar os fenómenos para os reiterar no tempo a fim de sucessivas análises e futuras partilhas de observações. Não só. O gesto de Janssen de apontar o revólver fotográfico ao céu para descrever o movimento dos astros corrobora a filiação do seu dispositivo proto-cinematográfico com o telescópio galileano e com todos aqueles instrumentos ópticos que a humanidade fabricou para suprir as falhas fisiológicas do olho humano na percepção e captação do infinitamente grande e do infinitamente pequeno. Mas se o telescópio e o microscópio exploram as dimensões do espaço, o revólver fotográfico e a lastra daguerreotípica, com as várias fases impressas da passagem de Vénus perante o Sol, alargam o espetro de análise da assim chamada “filosofia da lente”, inaugurando os estudos do movimento e da sua variação no tempo.
Neste contexto, inserem-se os estudos de Muybridge e Marey, os quais analisam o movimento fisiológico humano e animal para desvendar a sua natureza mais recôndita. Para tal, ambos utilizam o registo fotográfico e contribuem para o seu desenvolvimento técnico, superando as dificuldades implicadas na captação daquilo que foge ao olho, isto é, a natureza discreta do tempo. A este propósito, Tosi inicialmente mostra, mediante zoom in e out, algumas ilustrações explicativas do método gráfico e do relativo equipamento utilizado por Marey na realização dos diagramas da locomoção equina, fazendo-nos ver, através da utilização de excertos do filme Naissance du cinéma (1946) de Roger Leenhardt e Georges Sadoul, uma demonstração do processo anteriormente ilustrado. Marey mede e marca os traços do movimento, interessa-lhe a legibilidade das coordenadas espácio-temporais da locomoção animal sem dar conta da verosimilhança da representação física do movimento. De resto, a única intenção de Marey é a de vencer “a imperfeição dos nossos sentidos para descobrir a verdade, bem como a inadequação da linguagem para expressar e transmitir o que temos aprendido” (La Méthode graphique dans les sciences expérimentales et principalement en physiologie et en médecine, Paris, 1878, p. 9). Por estas razões, após ter visto, em 1881, as fotografias seriais de Muybridge animadas pelo seu Zoopraxiscópio, Marey decide abandonar o método gráfico para adoptar a técnica fotográfica, sendo, na sua opinião, a melhor solução técnica aos problemas inerentes à captação do tempo fisiológico do movimento, isto é, do intervalo, invisível ao olho humano, entre o estimulo do músculo e a sua contracção.
O documentário oferece-nos detalhadas explicações acompanhadas por animações, desenhos, incisões e fotografias originais da autoria de Muybridge e Marey, assinalando as diferenças metodológicas entre ambos. De facto, se o primeiro insiste na realização de fotografias em série mediante dispositivos com múltiplas objectivas, o segundo utiliza aparelhos com uma única objectiva (fuzil cronofotográfico e cronofotógrafo com lastra fixa de 1882, fuzil fotoeléctrico de 1899), sobrepondo as fases do movimento numa única lastra ou decompondo e registando a fisiologia da locomoção humana e animal sobre uma película em movimento.
Após a apresentação da cronofotografia e da síntese do movimento, ou seja da possibilidade de dilatar e condensar a experiência que o ser humano tem da duração, demonstrando a natureza mutável do tempo, a relatividade da sua medição, o carácter discreto do movimento, Tosi passa, no segundo episódio (Technical Developments Around the Turn of the Century, 1992), a descrever os desenvolvimentos técnicos dos aparelhos utilizados pelos cientistas entre o século XIX e XX. Entre os vários protagonistas apresentados, sobressaem três personalidades cujas experiências e inovações tecnológicas resultam de capital importância para compreender o desenvolvimento da técnica cinematográfica e a complexidade das finalidades por ela perseguidas.
A este propósito, Tosi, sempre com mesmo rigor metodológico que caracteriza o seu documentário científico, debruça-se sobre os instrumentos e o material fotográfico produzido por Albert Londe (1858-1917) – director do serviço fotográfico no Hospital de la Salpêtrière -, para a análise, fotograma por fotograma, do movimento patológico humano provocado por doenças nervosas. As lastras de Londe, apresentadas no filme pela primeira vez na história, mostram um dos campos de maior aplicação da cinematografia científica: a neuropatia.
Mas, se Londe utilizava a cronofotografia com finalidades médicas, Georges Demenÿ (1850-1917) inventou o fonoscópio com claras intenções comerciais, embora inicialmente o tivesse realizado para ajudar os surdos-mudos na decifração das palavras mediante a representação do movimento dos lábios. De facto, Demenÿ utiliza sucessivamente o fonoscópio para visionar os “retratos vivos”: imagens em movimento acompanhadas pela voz, gravada no fonógrafo, das pessoas fotografadas, cujo retrato animado deveria ter substituído, nas intenções de Demenÿ, os álbuns fotográficos de família que se estavam a difundir na época. E é interessante entrever, nesta versão tecnologicamente atualizada da tradição do culto aos mortos, a prefiguração do baziniano “complexo da múmia”, revelando já em 1892, antes da estreia comercial do cinématographe Lumière, uma das questões mais controversas do debate teórico em torno do cinema: o realismo fotográfico e a superação da morte mediante a aparência da imagem.
Além de Demenÿ, Tosi apresenta-nos mais um assistente e discípulo de Marey, Lucien Bull (1876-1972), cujas invenções e aparelhos proporcionam notáveis desenvolvimentos teóricos, sobretudo nos âmbitos em que o cinema científico terá mais impacto. De início, Bull especializa-se no campo da microcinematografia para depois se dedicar à cinematografia de alta velocidade para a observação principalmente do voo dos insectos. Já em 1904, Bull alcança resultados extraordinários com a criação de uma complexa máquina de filmar estereoscópica capaz de captar até 500 fotogramas por segundo, dando início “oficialmente” à cinematografia ultrarápida e à possibilidade de controlar, além do continuum temporal, o ritmo de observação dos fenómenos. Eis então que o cinema científico torna-se maduro para enfrentar os novos desafios da ciência. Dito de outra forma, a cinematografia de alta velocidade e a microcinematografia constituem os pontos de força das futuras conquistas do cinema, proporcionando o acesso a um novo mundo que põe em questão as tradicionais fronteiras entre a vida e a morte, o orgânico e inorgânico, a consciência e o inconsciente.
Aqui começa o terceiro e último episódio de The Origins of Scientific Cinematography, dedicado às primeiras aplicações do cinema científico, no qual Tosi oferece-nos uma antologia dos filmes, produzidos entre os últimos anos do século XIX e a primeira década do século XX, que consultou ao longo das suas investigações por cinematecas, museus e instituições científicas. Tosi exibe a variedade dos interesses do cinema científico: desde os filmes botânicos de Wilhelm Pfeffer (1845-1920) até à microcinematografia relacionada com a observação da bactéria da sífilis realizada por Jean Comandon (1877-1970), passando pelos filmes sobre técnicas cirúrgicas e neuropatologias da autoria de Eugene-Louis Doyen (1859-1916), Gheorghe Marinescu (1863-1938), Roberto Omegna (1876-1948), entre outros.
De qualquer modo, seja qual for o campo de aplicação, Tosi defende que o dispositivo cinematográfico e os seus mais directos antepassados, como o microscópio ou do telescópio astronómico, foram utilizados sobretudo pelas suas capacidades de penetrar a vida, proporcionando novas aparências do mundo a partir das quais a humanidade constrói novos sistemas filosóficos e novas interpretações científicas. Basta modificar o tempo da representação cinematográfica para destruir a habitual hierarquia das coisas ou, apropriando-nos das palavras de Jean Epstein (L’intelligence d’une machine, Jacques Melot, Paris, 1946 em Ecrits sur le cinéma, vol. I 1921-1947, Éditions Seghers, Paris, 1974, p. 257), é suficiente modificar o tempo de gravação e projecção para ver “os cavalos desliza[re]m por cima dos obstáculos, as plantas gesticula[re]m, os cristais acasala[re]m-se, reproduz[ir]em-se, cicatriza[re]m as suas feridas; a lava rasteja[r]; a água torna[r]-se óleo, borracha, alcatrão arborescente; o homem assum[ir] a densidade de uma nuvem, a consistência do vapor”.