Em jeito de exórdio, poder-se-ia dizer que The Scarlet Empress (A Imperatriz Vermelha, 1934) é um filme sobre a deformação da alma. Fim do exórdio.
Assumindo com firmeza o descuramento de rigor em relação aos factos históricos, Sternberg e o director artístico, Hans Dreier, investiram todo o seu programa na postura estilística de The Scarlet Empress, uma montagem de atracções tipicamente eisensteiniana, com a imagem e interpretação de Dietrich a evoluir no mesmo sentido das sugestões de mise en scène: passamos do lírico ambiente familiar de Sophia Frederika (nome de berço da futura imperatriz) – pitorescamente representado num baloiço ornado de flores, que bem podia ser no Paraíso – para o terrífico palácio da sua perdição. Há entre estes dois mundos uma diferença de tal ordem abissal, que quando entramos para o último, já nem nos lembramos de como era o outro.
Sternberg realiza, desta feita, um implacável e singular tratado do espectáculo cinemático, que não se reteve em nenhum trânsito de intenções: “I did make a serious if overly pedantic effort to use the medium properly and weld sound and sight into an integral unity”. A deformação da alma de Sophia está assim refletida neste décor gótico, de nuance bizantina ortodoxa, com uns pozinhos de expressionismo alemão esculpido (por Peter Ballbusch) em toda a sorte de gárgulas, espelhos, mesas, cadeiras, pilares, etc., como se, no contraste entre a luz que emana do rosto de Dietrich (ou aquilo a que Sternberg chamou “o encontro dramático com a luz”) e todo este cenário perverso, nascesse uma nova identidade. E nasceu. O destino de Sophia acaba por consumir a réstia de inocência que habitava o jovem coração, colocando no seu lugar não uma pedra, como se costuma dizer, mas esse tão famoso desejo de poder, a que se reúne uma volúpia muito particular. A volúpia que só Marlene pode abonar, porque é ela. Ponto final.
Há, a propósito desta ideia, um momento que, não parecendo medular, assinala a transformação oculta de Sophia. Um pequeno diálogo sobre a incompatibilidade entre o poder e o coração, à frente do espelho, enquanto a Imperatriz Isabel da Rússia lhe penteia os caracóis loiros, procurando a raiz dos seus pensamentos: “We women are too much creatures of the heart, ain’t we Catherine?”, “Yes, your Majesty.” Nem a primeira acredita no que diz, nem a segunda vai aceitar que assim seja. E estes são os derradeiros minutos de Sophia, a Romântica. Doravante, a “criatura do coração” ficou no último vestido de folhos que usou. Catarina será a “criatura do poder” que deixa verter as últimas lágrimas debaixo do véu de casamento, perto da luz cândida de uma vela, e que vai crescer com a própria imponência das estátuas que a circundam.
A imoralidade avoluma-se como erva daninha à chuva, e oferece um desfecho vertiginoso a esta narrativa: uma tomada de poder ardilosa, uma vingança e triunfo superlativos. Talvez das mais belas cenas da história do cinema (e é preciso dizê-lo sem medo), essa faustosa e inflamada cavalgada, depois de se ouvir a Marcha Eslava de Tchaikovsky, que termina com o vivaz sorriso de Dietrich. Talvez também este o mais genuíno sorriso, pelo que ficámos a saber no documentário de Maximilian Schell – Marlene (1984) – em que a sua voz envelhecida fica de repente mais jovem, ao lembrar a cavalgada de The Scarlet Empress. Confessou, está confessado: foi a cena que lhe deu mais gozo fazer, em toda a sua carreira. Sente-se orgulho, sentimos orgulho. Só não sabemos se em Catarina ou em Dietrich; afinal, não há distinção possível.
The Scarlet Empress, do ano de 1934, foi um filme expressamente destinado a sublinhar o ícone Marlene Dietrich, numa altura em que Greta Garbo, a sua simbólica rival, interpretara a Rainha Cristina da Suécia, no filme de Rouben Mamoulian, Queen Christina (Rainha Cristina, 1933). Considerado, à época, uma autêntica desfaçatez de Sternberg, e devastado por uma espécie de nuvem de conservadorismo que não tolerou a ideia de que um filme, à partida, histórico, pudesse incorrer em tal experiência formal, o tempo, como muitas vezes acontece, operou justiça, trazendo merecida glória a um dos títulos mais importantes desse adágio do cinema que foram Sternberg e Marlene. O filme é, no fim de contas, apenas ela e a estatuária que a molda por dentro.