Durante três meses, que estão quase completos, fui um espectador atento dos quatro canais TVCine. Confesso que até hoje nunca tinha tido acesso a canais pagos deste género. Pergunto-me porquê, se há no mínimo uma coincidência de interesses: de um lado, mostra-se cinema, todo ou algum, muito ou pouco; do outro lado, vê-se cinema, todo e muito. Se há um canal que oferece, como se lê no seu Facebook, “o melhor cinema”, porquê o desconhecimento da parte deste cinéfilo? Foi em busca de respostas a esta questão que então celebrei em nome do À pala de Walsh uma pequena parceria com o canal, que se traduzirá na redacção desta como da próxima crónica Civic TV. Nos dois tomos, proponho pôr em evidência não só as forças como as fraquezas da sua programação. Para além do intróito pessoal a contextualizar melhor esta iniciativa, tentarei descer aos filmes propriamente ditos. Farei, então, o registo da minha dieta cinéfila com base na oferta desses quatro canais que nos dão a ver cinema em troca de uma mensalidade de 10 euros.
No último IndieLisboa, fui convidado a fazer parte do júri de atribuição do prémio TVCine à melhor longa-metragem na competição internacional. Junto dos meus colegas, também da blogosfera, surgiu rapidamente a questão: quem tem TVCine? Alguém conhece quem tenha? E… o que passa e o que não passa nos canais TVCine? Num jantar repleto de cinéfilos inveterados foi desconcertante constatar que ninguém havia subscrito os ditos canais e que era grande o esforço para nos lembrarmos de alguém dos nossos contactos que tivesse acesso aos mesmos. Como explicar que um canal especializado em cinema pareça estar tão longe do público mais cinéfilo? Alguém estaria mais disposto a pagar para ver cinema na televisão que essa fatia da população para quem o cinema não é um hobby ou uma distracção mas um meio de vida ou até, nalguns casos, porque respiram, comem e bebem cinema, um medium de subsistência? Logo à partida, parece haver uma falha de comunicação entre a marca TVCine e aquele que devia ser o seu público primacial. Depois de reunirmos a informação possível, muito baseada na publicidade existente e informações “em segunda mão” que fomos obtendo, fixámos um perfil para “o filme” da TVCine. Foi também com base nesse perfil que acabámos por atribuir o prémio a Les Apaches (2013) de Thierry de Peretti.
A primeira coisa que posso aqui tornar pública após esta minha experiência de três meses é que, apesar de tudo, não estivemos de modo algum longe do que, de facto, passa na TVCine e, no fundo, faz a identidade dos seus canais. Ainda assim, fiquei surpreendido pela positiva quando me deparei com alguns objectos híbridos e intimistas, nomeadamente os mais recentes filmes de Rithy Panh, L’image manquante (A Imagem Que Falta, 2013), e de Sarah Polley, The Stories We Tell (Histórias Que Contamos, 2012). De facto, os dois outros filmes que estiveram nas minhas cogitações para o prémio TVCine do último IndieLisboa foram Belleville Baby (2013) de Mia Engberg e Quand je serai dictateur (2013) de Yaël André – João Lameira escreveu aqui sobre eles na sua cobertura do festival. O primeiro é uma espécie de um muito literal e também muito metafórico “filme de correspondências” entre uma mulher e um homem, que gira à volta de alguém que ama e deseja uma pessoa que, subitamente, reemerge na sua vida como um fantasma. O segundo é dos filmes mais criativos que me passaram pelos olhos este ano, uma obra que transforma um vasto stock de imagens vernaculares, vulgo home movies, numa ficção mais ou menos fantasiosa sobre o tempo, ou melhor, sobre as possibilidades de sermos coisas diferentes no tempo. Um jogo what if que engenhosamente redescobre, nas imagens mais frágeis e aparentemente destituídas de “ficção”, o poder dos mais básicos truques de montagem. A certa altura, com uma simples marcha atrás na imagem a narradora ensaia a possibilidade de um mundo que anda às arrecuas, onde, por exemplo, fosse possível ver os nazis a tirarem os judeus dos campos de concentração e a serem celebrados como heróis de guerra. Definitivamente, Agnès Varda e Chris Marker passeiam-se por estes filmes de montagem.
Apesar da nossa relutância quanto ao “encaixe” destes filmes no perfil do TVCine, agora que passei pela experiência de espectador atento do canal posso dizer que os nossos receios foram exagerados. Com efeito, tanto Belleville Baby quanto Quand je serai dictateur teriam espaço na grelha de um TVCine 2. Entenda-se: o prémio foi atribuído e muito bem atribuído a Les Apaches, aliás, a decisão recairia sempre sobre este drama sangrento de fluência e paisagem corsas, porquanto este foi unanimemente considerado o melhor título entre todos os que fizeram parte da competição internacional. De qualquer modo, um entendido da lógica programática do TVCine saberia onde colocar esses dois objectos tão mais inclassificáveis. No TVCine 2 compus, aliás, o grosso da minha dieta cinéfila nestes meses. Entre clássicos do cinema, produções independentes, cinema de autor não-americano e algum cinema português, foi aí que mais filmes vi e gravei. Percebi, depois, que o TVCine 4 respondia ao meu prazer, nada guilty, pelo cinema de terror. Os TVCine 1 e TVCine 3 são os “contentores verdes” onde parece caber mais ou menos tudo – ainda assim, nota-se uma ênfase em comédias e filmes românticos no terceiro canal -, mas privilegiando estreias exclusivas em televisão de filmes saídos há pouco tempo das salas comerciais. As fronteiras entre os canais são frágeis ao ponto de haver vários filmes que passam indiferentemente num ou noutro canal. Não sou fã de “engavetamentos” ligeiros de títulos e preferia ter uma programação de cinema, mesmo em televisão, que se pensasse por ciclos temáticos ou de autores, que existem, mas em pouca quantidade, no TVCine 2. Não me choca uma certa desarrumação patente na distribuição dos filmes pelos quatro canais TVCine. Gostava, contudo, de encontrar mais clareiras de programação onde fosse evidente um esforço instaurador de uma determinada “ordem no caos”, que estimulasse o conhecimento e a reflexão em torno de determinados períodos ou figuras polares na história do cinema.
Foi uma surpresa positiva deparar-me com a possibilidade de ver na televisão, em boas cópias, sucessivos filmes de Jerry Lewis, Ingmar Bergman e Greta Garbo. Todavia, estas, usando de novo a mesma expressão, “clareiras de programação” não são a regra no conjunto dos quatro canais TVCine. A lei da dominante aplicada a estes diz-nos que é a produção recente saída das salas comerciais que mais ocupa a antena destes canais especializados em cinema. Aqui importa provocar uma reflexão que iniciei noutra crónica a propósito de um certo fenómeno de serialização na concepção e distribuição do cinema, corolário da moda das séries televisivas. Diria que a serialização, na acepção mais automática do termo, é o principal inimigo de uma programação desta natureza. Por um lado, a programação parece fazer-se sem um pensamento por trás, sem um “toque” que a torne algo mais que uma mera playlist de filmes. O espectador, esse, quer-se empático com esta maneira quase maquinal de fazer televisão. Por outro lado, a programação oferece o mesmo, talvez em “tempos” diferentes, mas fundamentalmente os canais de cinema fazem-se não dentro de uma lógica de diferenciação mas de aproximação e indistinção, o que de novo nos remete para o domínio obscurantista do que é despersonalizado e sem identidade. Todos os canais de cinema funcionam deste modo, ou seja, multiplicam-se e, dentro deles, fazem multiplicar pelos filmes toda esta filosofia de dar o mesmo, de ser o mesmo, como se plasmassem – e é por plasmas que os vemos – a mais sintomática personagem que Woody Allen criou: Zelig. Paradigma dessa “programação Zelig” é o novo canal de cinema da MEO, este de sinal aberto, chamado Cinemundo e cujo problema começa logo no nome: apesar das “quotas mínimas” de cinema português, o mundo do cinema aqui parece cingir-se ao domínio dos filmes de domingo à tarde da grande indústria norte-americana. Se antes o espectador via Adam Sandler, Will Smith ou Steve Martin nas tardes de domingo da TVI ou da SIC, agora também os vê em vários outros canais, muitas vezes até em simultâneo. A quantidade de coisas iguais, ideia inerentemente fascista, ilude a variedade ou o direito à diferença, ideia inerentemente democrática.
Os canais TVCine apostam maioritariamente numa programação que duplica o que passou há pouco tempo nas salas. Não é aí que estará a sua maior força – e a ela iremos, ou voltaremos, na crónica do próximo mês -, ainda que através dessa colagem ao mercado de distribuição nacional eu tenha conseguido ver alguns filmes que me haviam escapado em sala. Destaco aqui um, que me arrebatou como não estava à espera: Lincoln (2012). Steven Spielberg é um cineasta que flutua entre o sentimentalismo mais grandiloquente e uma atitude straight to the point expressando um esfusiante domínio de câmara. Costumo preferir este “segundo Spielberg”, de pulso e de nervo, ao Spielberg de coração de manteiga, engajado ao politicamente correcto e aspirando a um classicismo que enrola John Ford em Frank Capra e Frank Capra em John Ford. Prefiro, enfim, o Spielberg de Jaws (O Tubarão, 1975) e Duel (Um Assassino pelas Costas, 1971), de Minority Report (Relatório Minoritário, 2002) e da maior parte de War of the Worlds (Guerra dos Mundos, 2005). Posto isto, não esperava encontrá-lo em Lincoln, entre outras razões, por este ser um projecto de longa data – quase se diria “de toda uma vida” em Spielberg – e sobretudo por estar eivado de um potente apelo patriótico. Não sendo propriamente um filme destituído de pathos e força mítica, este Lincoln é, acima de tudo, um homem e é con-formando-se a essa qualidade que o filme atinge alturas (ou deveria antes dizer “profundezas”?) raras vezes vistas em Spielberg. Para tal, Lincoln sustenta-se numa interpretação de Daniel Day-Lewis à altura do homem, que, apesar de tudo ou, apetece escrever, apesar de Lincoln, nos permite acompanhar ao lado e não abaixo da sua personagem o seu pedregoso percurso de ascensão ao patamar do mito.
A argúcia de Lincoln é tão comovedora quanto a sua serenidade ante algo que lhe é, sente ele e nós sentimos por ele, muito maior: o pedido da História por um homem que se chegue à frente e mude o rumo das coisas, um pedido que implica sacrifício. Esse homem, que vai curvando, ganhando rugas e cabelos brancos, debita com voz exangue lições antigas, por exemplo, a de Euclides sobre a inevitabilidade de duas coisas (Norte e Sul?) iguais a uma terceira (fim da escravatura?) serem necessariamente iguais entre si (fim da secessão?). Essa lição vira parábola quando dita por Lincoln no momento em que é dita, já que ao mesmo tempo as tropas do Norte aproximam-se, no terreno, da vitória final. A batalha está fisicamente longe de Lincoln, mas não há ninguém a quem esta esteja mais próxima espiritualmente. A aprovação da 13.ª Emenda, que dita o fim da escravatura, é a batalha decisiva para acabar com a guerra. Uma batalha do e pelo espírito renovado do novo Homem, da nova América. Num dos planos mais belos, uma chama de um candeeiro a óleo substitui-se à figura vertical de Lincoln. O Presidente caminha para a sua extinção física, que tem pouco a ver com a morte teatral pelas mãos de John Wilkes Booth – e por isso Spielberg escusa-se a reencená-la, depois de o terem feito D.W. Griffith em The Birth of a Nation (O Nascimento de uma Nação, 1915) e Abraham Lincoln (1930) e John Ford em The Prisoner of Shark Island (O Prisioneiro da Ilha dos Tubarões, 1936). O seu corpo alto, pilar de todo um país, abate ante as forças que resistem a esse pedido de mudança pelos ventos da História. Lincoln vencerá por saber responder às exigências do seu tempo, mas o seu sacrifício vem sob a forma do desgaste físico próprio daquele que é, simultaneamente, o primeiro e o último soldado da terrível Guerra da Secessão. Lincoln morre várias mortes antes de Booth e nós lemos isso no seu andar, no seu modo de falar e de estar, mais até que nas suas palavras ou diligências.
Claro que há engrandecimento, mas Spielberg nunca “dá o mito como dado” na vida de Lincoln e é na tentativa de compreensão do homem, no seu aspecto mais concreto, que se vai produzir uma espécie de fenomenologia do mito que está, ainda assim, ausente nos grandes tributos lincolnianos, que inversamente versavam sobre um homem destinado ao mito e não tanto sobre um homem que se fez mito. Falo dos clássicos realizados por Ford [Young Mr. Lincoln (A Grande Esperança, 1939)] e, mais simbolicamente, por Capra [Mr. Smith Goes to Washington (Peço a Palavra, 1939)]. A tarefa de Lincoln não foi fácil e nós vemos e sentimos isso. Vemos e sentimos o seu cansaço, o seu sacrifício e a sua temperança tão dignos de um homem como, talvez – este talvez é tudo aqui -, de “alguém mais”. Aquele plano final, em que vemos Lincoln discursando para a multidão, após a atribulada aprovação da 13ª Emenda, é a imagem que resume todo o grandioso gesto de “este Spielberg” de evitar a grandiloquência fácil e plana de “aquele Spielberg”; de optar pela subtileza estética em vez do espalhafato dramático mais sensacional. Não chegamos bem a ouvir o discurso, porque, filmado à distância, Lincoln está quase reduzido a um homem entre muitos iguais. O fade out súbito é uma conclusão belíssima, uma remissão à escuridão de um filme sobre um homem que, por conquistar aquele lugar na multidão, já se fizera mito. Não sei se Lincoln nos é dado como um “monumento histórico ambulante”, como escreve João Lameira na sua crítica, ou, um passo atrás, Spielberg não nos quer mostrar a forma como, nas suas obrigações, Lincoln age sobre e é agido pela História. Este espírito histórico, uma chama…, foi forjado até às últimas energias por um corpo, aquele ponto na multidão que antes de desaparecer para a eternidade proferiu certas palavras. Não precisamos de as ouvir até ao fim. A surdez é de ouro, tal como a sensibilidade redescoberta de um cineasta que julgara perdido para um infantilismo muito seu.