June, are you pretty?
Not bad…
Can you hear me as well as I hear you?
Yes.
You’ve got a good voice. You’ve got guts too. It’s funny – I’ve known dozens of girls, I’ve been in love with some of them, but an American girl whom I’ve never seen and who I never shall see will hear my last words. That’s funny. It’s rather sweet.
(…)
I could love a man like you, Peter.
I love you, June. You’re life and I’m leaving you.
Poucos filmes terão um diálogo inicial tão memorável quanto o de A Matter of Life and Death (Um Caso de Vida ou de Morte, 1946). E não são apenas as palavras que fazem deste um momento inesquecível (nem a economia de texto permitiria reproduzi-lo aqui integralmente: ao cinema o que é do cinema), é toda a situação cruciante que fornece a ebulição nos espíritos, quando estas vozes se encontram através de um rádio.
Estamos em Inglaterra, Maio de 1945 – fim da guerra na Europa – e Peter Carter (David Niven) encontra-se dentro de um avião em chamas, após um bombardeamento. Único sobrevivente, no meio de toda a parafernália mecânica destruída, eis que um rádio será o cordão umbilical que o ligará à vida por mais uns minutos improváveis… June (Kim Hunter), a operadora em serviço na base de comando, é então a voz da doçura e perserverança que Peter necessitava para saltar sem paraquedas, na esperança de a poder visitar depois, quando for um fantasma. Para nós, que a podemos ver, é essa face rosada, debaixo de uma sombra que lhe cobre o olhar, e de onde brotam uns lábios vermelhos de anjo (se os anjos usarem red lipstick).
Peter salta, efectivamente, para a morte. Surge uma espécie de holy smoke (expressão proibida no Paraíso), e a visão do seu corpo a boiar à beira-mar, com uns ecos que repetem “wings, wings, wings” (um plano breve de asas enfileiradas como numa linha de montagem), faz-nos crer que Peter acordou num lugar misticamente diverso daquele que nós, vivos, pisamos. Powell não perde aqui a oportunidade para completar o quadro com motivos bem ingleses: um cão e um jovem pastor, desembaraçado de qualquer tipo de veste, tocando flauta nas dunas. Temos a imagem do Paraíso; contudo, era preciso que Peter tivesse morrido mesmo, não fosse um qualquer equívoco cósmico. O amor, daqui por diante, protagonista desta história, apanhou-o “em vida”, e iniciará uma outra guerra, de índole universal.
Só neste início estão concentradas todas as batalhas temáticas por vir: o amor e a morte, o Paraíso e a Terra, a América (June) e a Inglaterra (Peter). A Matter of Life and Death, faz-se também de questões políticas (como a maior parte dos filmes no pós-guerra, quais encomendas de moralismo patriótico), não obstante, Powell, juntamente com o toque europeu de Pressburger, encontrou uma forma mágica – aquilo a que João Bénard da Costa tão bem denominou “delírio” – de contornar a austeridade da indústria cinematográfica britânica, jogando um pouco com os estereótipos nacionais para fazer valer as questões absolutas. Na sua autobiografia, A Life in Movies, Powell chega mesmo a sublinhar esse lado de “façanha”, que prescreveu a realização do filme, como uma das razões subversivas que alimentou o seu gosto pessoal por aquele: em toda a sua obra, guardou para A Matter of Life and Death o lugar da predilecção.
Da Terra para o Firmamento, toda a arquitectura se converte na grandeza dos monumentos neoclássicos (a lembrar a metafísica de De Chirico), como, de resto, a escadaria ornamentada de estátuas (Lincoln, Platão, Salomão…) é o exemplo culminante, escoltando-nos até uma autêntica – e gigantesca – ágora helénica, onde tem lugar o tribunal dos céus. Aqui impera o atributo da lei, a ordem métrica das decisões (daí que “não morrer na data afixada” seja um sério caso de justiça), face ao delírio do amor, essa tragédia terrena… E é para a ágora que, tanto o filme como a escadaria-elevador, nos levam, com a lágrima de June recolhida numa rosa, a ser a prova menos política e mais poética alguma vez apresentada a julgamento.
É um facto que, antes de A Matter of Life and Death, outros filmes exploraram a burocracia do Firmamento: Liliom (1934), A Guy Named Joe (Um Certo Rapaz, 1943), Heaven Can Wait (O Céu Pode Esperar, 1943), The Horn Blows at Midnight (1945)… Mas a criatividade de Powell e Pressburger notou-se particularmente na divergência visual entre essa “repartição das finanças” celeste, votada ao preto e branco, e a vida terrena, à qual se consagra o Technicolor, numa encantadora homenagem ao “lado de cá”, fantasia que até aos mensageiros do “lado de lá” causa inveja (“one is starved for Technicolor up there”). E outras inovações se acrescentam, como sejam as imagens paralisadas, com os corpos retidos num gesto (a cena do jogo de ping pong), aquando das visitas do além – porque os dois tempos são incompatíveis.
Voltando, para terminar, à ideia de este ser o predilecto de Powell, a sua esposa, Thelma Schoonmaker, disse a propósito: “The real reason it was his favourite was he could be a magician with it. He could create heaven and earth and stop time.” Resta assinalar que, além disso, a dupla The Archers – porque não devemos esquecer Pressburger – também “criou”, neste filme, um plano muito próximo dos quadros de George Stubbs (ou seja, até a pintura inglesa põe aqui um pezinho.) Um plano que me ficou na cabeça, à segunda vez que vi A Matter of Life and Death. Deixo ao leitor/espectador o pequeno desafio de o descobrir, nesta bela película que se percorre entre a vida e a morte.
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