Por vezes os filmes escondem em si pequenos pormenores que parecem funcionar como chave-mestra de todos os seus segredos. Por vezes basta um plano só, um enquadramento, um som, uma frase para que tudo o resto cambie a sua anterior leitura. Uma espécie de guia auto-interpretativo. Feitas as devidas relações de dimensão e natureza, por vezes também os festivais guardam em si um filme (ou uma sessão) que devolve uma outra leitura ao conjunto, à mostra, às secções e programas, às festas, aos debates e naturalmente aos outros filmes também. Estou em crer que se existe esse objecto místico que tudo parece revelar com renovado brilho, ele é uma pequena curta-metragem de 1993 que será mostrada na retrospectiva dedicada a Johan van der Keuken no dia 19 de Outubro de nome Sarajevo Film Festival Film (1993). Keuken nesse ano foi à dita cidade sitiada e afligida pela guerra (que durava já há quase dois anos) para apresentar o seu filme Face Value (1991) – também presente nesta retrospectiva – no homónimo festival. E durante a estadia filma essa pequena pérola onde se questiona (como o fazem todos os bons botas-de-elástico…) sobre a função do cinema – e por contágio dos festivais. É que numa situação em que dificilmente as pessoas têm acesso a água ou comida ou medicamentos (como descreve uma rapariga pela qual a câmara se enamora) fará sentido organizar um festival de cinema? Fará sentido sequer “perder tempo” com o cinema? Mais, fará sentido o cinema? O filme só tem 14 minutos mas a verdade é que são bastantes para van der Keuken argumentar a sua tese: “o cinema é a forma de as pessoas lidarem com o mundo e é também magia, e as pessoas não podem viver sem magia”. Por isso a mesma rapariga a quem morreu a mãe, que tem um pai cego em casa, que estuda, que trabalha para arranjar comida para a sua família e que chega a transportar 20 litros de água escada acima, todos os dias, vai também todos os dias ao cinema nem que seja para poder chorar. Se a questão da função se põe, estou em crer que a resposta se encontra nos próprios filmes e nas pessoas que os querem mostrar. Talvez o Doclisboa 2014 consiga dar uma resposta.
Portanto, se a resposta está nos filmes, que se fale dos filmes. Mas como falar de filmes que não vimos? A própria expressão “antevisão” é dona de uma qualquer propriedade mística, ainda para mais quando queremos antever/prever/pre-ver aquilo que é próprio da visão como o cinema. Daí as antevidências, porque a matéria deste texto pouco mais é que o trabalho de vidente, vulgo banha da cobra. Feitos os anteparos (e salientando que o que aqui se antevê é não mais que um olhar pessoal e nada exaustivo) passemos ao trabalho.
O Doclisboa, como tantos outros festivais, funciona muitas vezes como reino de possibilidades únicas, isto é, períodos onde serão oferecidas (por preços módicos) sessões de objectos raros, exóticos, extravagantes, ou que dificilmente seriam exibidos de outro modo. Esta edição do festival lisboeta tem três objectos que caiem nesse reino da extravagância/dificuldade-de-exibição, só que aqui essa extravagância não é necessariamente formal ou de conteúdo, mas sim relacionada com a própria duração (e aqui residem em parte as dificuldades). Mes Sept Lieux (2013) de Boris Lehman com 323 minutos, Mula Sa Kung Ano Ang Noon (2013) de Lav Diaz com 338 minutos e Veillée d’Armes (1994) de Marcel Ophuls – a que o festival já dedicou uma retrospectiva e que não se importa de fugir à minutagem típica – com apenas 224 minutos são esses três objectos. Proponho portanto ao leitor que se recoste (juntamente com uma sandes de atum) durante as mais de 5 horas (umas vezes com outras vezes sem intervalo) e se deixe levar por estes exercícios de resistência que mais não seja marcam pelo efeito disruptivo face (ao face?) à cadência noticiosa. Primeira resposta à questão da função: o cinema como fuga da hiperactividade, como covil, como leito quente e aconchegante.
Mas há outro aspecto, e esse é próprio do Doclisboa, que se prende no cinema como documento histórico e testemunhal. Nesse âmbito o próximos dias vão também ser ricos. Destaco então German Concentration Camps Factual Survey (1945-2014) realizado em parte por Alfred Hitchcock – à imagem de tantos outros grandes realizadores que se envolveram no “cinema patriótico” -, filme de (pós-)guerra que só agora foi terminado já que a propaganda anti-nazi que pretendia construir passou a não fazer sentido quando a intenção britânica era a reconstrução da Alemanha e não a sua diabolização (imagens e texto de então são agora remontados e gravados à giza das intenções originais). Segunda função: o cinema como documento e como olhar específico para momentos do passado. Em relação estará certamente também Yi Zhi (Traces, 2014) de Wang Bing onde o realizador regressa às imagens de Jiabiangou (A Fossa, 2010) – presente no festival – como testemunho (traces, vestígios) do horror dos campos de trabalho forçado maoistas.
Outra das funções do cinema talvez seja como vício e fetiche. Ou seja, olhar para os objectos, para os filmes, e amá-los como gente e adorá-los como ídolos. Talvez por isso ver La terra trema (1948) e o Europa 51 (1952) na enorme tela da sala Manoel de Olievira, ou ver Os Mutantes (1998) e o Ossos (1997) no Grande Auditório da Culturgest, ganhe renovado sentido, mais ainda por ser este um festival que consegue dar simultaneamente lugar cimeiro ao passado não descorando os que se vai fazendo. E de novo nessa visão de cinema como vício também se inclui o vício de procurar o recente, o inovador e audacioso. Primeiras obras como Branco sai Preto Fica (2014), Hit 2 Pass (2014) e Songs from the North (2014) não podem fazer senão escorrer a baba rebarbada do cinéfilo curioso. E como se o fetichismo não tivesse limite, haverá mais preversão do amor cinéfilo do que amar o cinema pelo amor de quem o amou mais que ninguém? É que essa é também a base da filia fetichista pelo cinema: o prazer de comer os filmes mastigados pelos textos, pelas opiniões, pelos amores dos outros. E se assim é, então não se espera outra coisa que não um orgamos colectivo com João Bénard da Costa – Outros amarão as Coisas que eu amei (2014) de Manuel Mozos.
Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.
Excerto de Dia do Mar de Sophia de Mello Breyner Andresen
E fica por falar do outro filme de Wang Bing, dos dois de Cristi Puiu, da abertura com Loznitsa, dos vários de von Bagh e Farocki, nem se fala da sessão especial dedicada a Resnais nem no filme sobre Duras, e também fica por falar de J.P. Sniadecki da Harvard Sensory Ethnography Lab, dos novos filmes de Pêra, de Almeida, Pelicano, Vladimiro, Botelho (João) e Nordlund. E de Pierre Léon nem se fala (também).
Consulte a programação do festival no seu site oficial aqui.