Uma semana se passou e nos entremeios dos afazeres de quem tem que tratar dos seus assuntos o cinema surgiu como respiração e ritmo – por dar um novo fôlego ao dia e por imprimir novo impulso ao girar das coisas. O cinema como rotina; um filme por dia; o cinema como oração nocturna antes do adormecer; filmes-pausa: estas são algumas das expressões que podem enquadrar a minha relação com a programação deste ano do Doclisboa 2014. Foi portanto uma cobertura tranquila e pausada, onde nem o cinema se sobrepôs à vida nem ela a ele. Reacção oposta à típica azáfama que um compêndio de dezenas de filmes naturalmente gera. Por isso mesmo, nem sequer chego à dezena. 9(=3×3) filmes espalhados por quase todas as secções que espero serem suficientes para lançarem um perspectiva (ainda que pontilhista) do que foi este festival.
The Iron Ministry (2014) de J. P. Sniadecki
Depois de People’s Park (2012) ter estado na competição do Doclisboa 2012 a atenção dada a J. P. Sniadecki não é a mesma que se dará a qualquer outro realizador. Mais ainda quando pertence à trupe do Harvard Sensory Ethnography Lab de onde tem surgido alguns dos filmes mais marcantes do circuito do festivais nacionais, nomeadamente Leviathan (2012) de e Manakamana (2013). Combinando estes dados pouco custa notar um tema subjacente a estas obras, de salientar, o movimento como gerador de cinema (por oposição ao um certo cinema museológico e fixo que a etnografia sempre se acostumou). Ou seja, é o movimento do ascensor que inventa telas nas janelas em Manakamana é a subjectiva agitação louca do barco, das gaivotas, dos marinheiros criam cinema em Leviathan e de forma semelhante em People’s Park isso acontece pelo plano contínuo. Portanto The Iron Ministry não destoa encontrando no embrionário cinema que se forma no mundo a correr pelas janelas de um comboio um dos seus maiores trunfos. O outro (que talvez seja simultaneamente a sua maior desgraça) passa pela própria movimentação dentro do comboio, que se encontra na compreensão do décor em eixo que por si só favorece o movimento em frente ou à retaguarda. Só que aqui (e ao contrário dos filmes de Castaing-Taylor/Véréna Paravel e Stephanie Spray/Pacho Velez) essa movimentação induz uma desatenção. Sniadecki não pára, salta de pessoa em pessoa, de conversa em conversa tentado criar uma pequena ideia da China contemporânea através das pessoas que encontra no comboio (que são vários e ao longo de um par de anos – o realizador americano é fluente em mandarim e vive e trabalha na China há vários anos). Uma espécie de microcosmos essencial desse país-continente (que segue em frente sem nunca parar).
O problema desta leitura (que não é apenas leitura mas opção de realização) é que cada uma das pessoas que a câmara vai conhecendo ao longo da hora e meia de filme perde a sua identidade e passa a funcionar como instrumento definidor de um país. Já não têm nome, são já apenas símbolos (os descontentes, os pactuantes e os indiferentes) das várias facções que forma a opinião pública e privada do chineses sobre o seu próprio país (sendo no entanto essa capacidade de colocar a tónica nos próprios em vez do habitual olhar de estrangeiro – turista ou etnógrafo, pouco importa – é outra das proezas do filme). Não podemos esquecer a rapariga que viaja para junto do seu amante à procura de uma nova vida – noutra província e noutro trabalho que não numa fábrica – e da forma como a sentimos instrumentalizada quando à questão sobre a sua profissão de sonho, ela responde não ter que trabalhar, apenas comer e dormir. O desejo de extrapolar dela uma sociedade adormecida pela pressão do regime é enorme e o filme não se coíbe disso.
Letters to Max (2014) de Eric Baudelaire
Há no filme-carta uma pluralidade de formatos cuja distinção parece por vezes apenas um jogo semântico. Podemos considerar o filme-carta típico onde existe um endereço específico e um destinatário aberto, isto é, quando o filme se dirige a algo ou alguém produzindo nessa comunicação entre emissor e destinatário específicos um objecto de interesse alargado. Por outro lado existem as cartas filmadas, onde uma correspondência entre cineastas se faz por imagens e sons em vez das habituais palavras em folhas de papel – onde mais uma vez não se exclui o interesse global. E por fim existem os filme com cartas, onde a correspondência tradicional ganha o protagonismo. No dia 17 de Outubro o Doclisboa apresentou ao longo do dia um exemplar de cada uma destas estirpes: Letter to a Refusing Pilot (2013) que cai na primeira categoria já que o endereçado é um piloto de que não se conhece o paradeiro – e a quem o realizador agradece não o ter bombardeado -, o filme de Eric Baudelaire sobre o qual de seguida me alongarei que encaixa vagamente na segunda formulação das cartas filmadas, e por fim Lettere di Condannati a Morte della Resistenza (Letters of Partisans condemned to Death, 1953) na terceira tipologia. Esta leitura que se propaga de sessão para sessão é certamente um gesto concertado de programação que não se pode deixar de saudar com alegria quando tal capacidade se vem tornando cada vez mais rara – a essência daquilo que é programar, a construção de ligações entre objectos, subiu para um outro estádio de aleatoriedade com a a anunciada programação do próximo LEFFest.
Mas recentre-se o texto. Letters to Max retrata uma troca de correspondências entre o realizador e o Max do título, ex-vice-ministro dos negócios estrangeiros de um país que não é reconhecido, a Abecásia. O realizador envia cartas para um morada num país que não existe de facto sem ter a certeza se elas chegam. Max vai-lhe respondendo em gravações de voz. O filme faz-se dessas trocas falhadas de perguntas e respostas que só num gesto posterior de montagem reganham o ritmo de um diálogo. O problema de Eric Baudelaire do seu mais recente filme encontra-se essencialmente em duas opções: (1) a forma como as imagens que preenchem o filme são pouco mais que ilustrativas desses textos e desses monólogos pré-existentes; (2) o chico-espertismo de envolver todo o filme numa constante dúvida entre a encenação e o factual que está mais próximo do armar ao pingarelho do último plano de Inception (A Origem, 2010) do que da natureza contraditória de um Nanook of the North (Nanuk, o Esquimó, 1922). De qualquer forma há um sensação de acalmia e de colo morno que o filme traz ao espectador e que não deixa de ser atípica.
Hit 2 pass (2014) de Kurt Walker
Francisco Ferreira descreveu Hit 2 pass como a combinação de Red Line 7000 (Traço Vermelho 7000, 1965) de Howard Hawks e Aquele Querido Mês de Agosto (2008) de Miguel Gomes filtrado por uma ZX Spectrum. Visto o filme parece-me que a fórmula acertada é uma que liga Death Race (Corrida Mortal, 2008) de Paul W. S. Anderson – e não me refiro ao filme de 75 com Stallone porque aqui no nome de W. S. Anderson não é de desmerecer – à série de objectos que Johnny Knoxville vem protagonizando, os vários episódios (na vertente de televisão ou de cinema) de Jack Ass e as suas degenerescências. Isto porque a justaposição do filme de Kurt Walker à obra de Hawks me parece abusiva e porque no filme de Gomes a intenção de gerar incipientemente uma narrativa clássica é o motor de todo o projecto (coisa que aqui não é bem o caso). Portanto, Hit 2 pass está mais próximo do gag burlesco de Knoxville (e de novo se se quisesse ser abusivo chamaríamos o nome de Jerry Lewis, como o fez o próprio realizador…) onde o arco narrativo é no melhor dos casos muito ténue e do cinema-video-jogo de W. S. Anderson – note-se que Walker é um dos críticos da MUBI e um dos disseminadores dessa nova veia semi-revolucionário-provocadora da crítica cinematográfica conhecida como vulgar auteurism. Esta questão do videojogo surge no filme, por exemplo, formalmente num par de planos circulares que giram em torno do carro qual menu de selecção de um jogo de corridas, mas também literalmente com a inclusão de imagens de jogos de arcadas numa composição em multi-ecrã a fazer lembrar o filme testamentário de Nicholas Ray, We Can’t Go Home Again (1973). Feito sem quaisquer meios este é evidentemente um cinema que olha para o mainstream com olhos molhados e tenta alcançá-lo pelo sentido oposto, o ensaio-documental ou como o realizador põe “we would rather not be serious, as it will probably just as much be a slapstick comedy starring automobiles and movie nerds in way over their heads.”
Há no entanto um aspecto que não se é de somenos. Terminada a corrida (num gigantesco anti-clímax) o filme desprende-se de embrionária história familiar do jovem que regressa à fantasia de infância e à sua pequena cidade natal e perde-se pelos subúrbios da esquecível Prince George na British Columbia, Canada – sem antes dedicar uma longa porção à entrevista de um descendente aborígene com o dom da palavra. De novo em abuso de leitura poderíamos dizer que o filme continua já sem os seus personagens como em L’Eclisse (O Eclipse, 1962) de Michelangelo Antonioni. Só que se aí o filme existia apesar dos seus personagens, como se o seu desencontro deles em nada perturbasse a planificação a priori – os personagens fogem do filme e o filme nem parece importar-se -, aqui as personagens não chegam a fazer-se sentir, daí que não possamos sentir-lhes a falta (e a planificação a priori é coisa de que não existe sombra). Funciona essa recta final talvez como simples gesto disruptivo ou como a linguagem poética pode viver paredes meias com o formato documental e o filme pipoca. Hit 2 pass é pois uma tentativa de filme-tese sobre a inexistência da boa forma ou da boa estética, mas que se perde na incapacidade de definir um conjunto de hipóteses e se desembrulhar do emaranhado de silogismos. Mas também pode ser só uma parvoíce pegada. Provavelmente…