Uma semana se passou e nos entremeios dos afazeres de quem tem que tratar dos seus assuntos o cinema surgiu como respiração e ritmo – por dar um novo fôlego ao dia e por imprimir novo impulso ao girar das coisas. O cinema como rotina; um filme por dia; o cinema como oração nocturna antes do adormecer; filmes-pausa: estas são algumas das expressões que podem enquadrar a minha relação com a programação deste ano do Doclisboa 2014. Foi portanto uma cobertura tranquila e pausada, onde nem o cinema se sobrepôs à vida nem ela a ele. Reacção oposta à típica azáfama que um compêndio de dezenas de filmes naturalmente gera. Por isso mesmo, nem sequer chego à dezena. 9 filmes espalhados por quase todas as secções que espero serem suficientes para lançarem um perspectiva (ainda que pontilhista) do que foi este festival.
Baal (1969) de Volker Schlöndorff
Poucos segundos antes do pequeno bailado que a imagem acima recorda, Margarethe von Trotta diz a Rainer Werner Fassbinder – pelas palavras de Bertolt Brecht na sua primeira peça – algo como “És tão feio… tão feio que chega a ser surpreendente. Mas depois deixa de importar”. Estou em crer que essa afirmação é válida não só para o próprio personagem, como para o actor que lhe dá corpo, como para a própria peça e seu autor como para o filme e seu realizador. Em Baal (e por osmose também em Baal) tudo é tão feio que espanta qualquer um, e depois acabamos por nos deixar envolver nesse mar de horripilâncias. Poderíamos dizer que Brecht e Schlöndorff trabalham – cada um sem seu meio – a estética do grotesco, mas onde esse grotesco em vez de repelir, cativa pelo pasmo que gera. Além de mais, essa surpresa vem multiplicada quando um objecto assim – verdadeiramente revolucionário e seminal de um novo cinema – conserva a sua força sincrética passados 45 anos da sua génese. Mas se dúvidas restassem sobre esta questão repare-se: já no final do filme, quando Baal se encaminha para a morte, alguém lhe cospe em cima quando este já poucas forças tem para sequer limpar a gosma do rosto. Pede que lha limpem sem antes acrescentar “sabe tão bem…”. Baal é cinema que tresanda a rebeldia juvenil e cigarros baratos – talvez por isso a viúva do dramaturgo tenho impedido durante tantos anos que este filme para a televisão da RFA (que televisão produziria um filmes destes nos tempos que correm?) viesse a público.
Quanto à questão se o mito de Fassbinder foi ou não criado ou pela primeira vez fixado em Baal pouco me importa. Mais interessante será perceber o quererá dizer Schlöndorff com “o Fassbinder e a sua trupe do Antitheater já faziam cinema em palco”. De qualquer forma há um aspecto que me parece curioso e que se trata de tentar identificar as influências deste novo cinema alemão no cinema que então se fazia (e se viria a fazer) na América. Penso à cabeça nesse nome que ocupa a sala da Cinemateca Portuguesa no mês passado, John Waters. A começar pela ideia de teatro filmado (onde a eloquência dos grandes actores alemães roça – barriga com barriga – na vulgaridade dos não actores de Waters) com as palavras cuspidas à velocidade de metralhadora e terminando evidentemente no equivalente mau gosto e na similar repugnância – não será por acaso que descrevi Baal com cheiros… Há em particular uma cena de proto-necrofilia no filme de Volker Schlöndorff que tem evidente parelha – até na planificação – na sequência de (auto)-estupro em Female Trouble (1974). Enfim, uma conexão a explorar.
João Bénard da Costa – Outros amarão as Coisas que eu amei (2014) de Manuel Mozos
Por norma deixo passar alguns dias entre o ver e o escrever sobre os filmes. Sinto sempre que há um benefício qualquer, mesmo que apenas sentido por mim, em deixar o tempo fazer das suas. Essa distância traz quase sempre um pendor mais analítico, menos enamorado ou traumatizado. As emoções perdem o seu peso efervescente e a escrita ganha substância – por oposição à volatilidade dos adjectivos e demais figuras de estilo poético/patético. Mas se essa é a minha opção, quando lemos as folhas ou as crónicas de Bénard da Costa sentimos quase sempre um balanço – que lhe deveria sair natural, imagino – entre esse fervor amoroso e a correspondente análise meticulosa do obra e do seu contexto de produção e recepção. Tal equilíbrio é coisa complicada que certamente só os anos, a prática e a segurança poderão trazer. Posta em cima da mesa a admiração que tenho pelo homem e pelo trabalho que Bénard sempre produziu – mais não fosse o facto de o último dossier deste espaço ter-lhe sido dedicado – existe uma dificuldade (mesmo passada uma semana) de falar do filme de Manuel Mozos, João Bénard da Costa – Outros amarão as Coisas que eu amei, em parte porque essa frieza a que quase sempre me obrigo não se instala por mais tempo que passe – e por mais apropriações políticas que façam de uma sessão de competição, minto, de uma sessão de cinema… é que não se podia ter escolhido pior sessão para se ler essa carta tonta contra a SECA (um filme que sacraliza o cinema como este o faz não pode, nem deve, admitir uma manifestação pateta no seu espaço litúrgico de preferência).
E é exactamente por aqui que se deverá olhar para o filme de Mozos, pela forma como eleva a religioso – como também muitas vezes o fez Bénard nos seus textos – a experiência da sala de cinema e dos filmes que nela vemos. O ritual do bilhete, da cadeira, da experiência de transmutação colectiva, do matraquear do projector, das imagens que nos assaltam, enfim de tudo isso que é ver um filme. E por isso mesmo o que mais comove neste filme-dedicatória é a forma como Mozos dá corpo aos amores de Bénard, como nos mostra a moviola rodando tremulamente o Gigi (!958) de Minnelli, o Bitter Victory (Cruel Vitória, 1957) e o Johnny Guitar (1954) de Ray, o The Ghost and Mrs. Muir (O Fantasma Apaixonado, 1947) de Mankiewicz ou o The Shop Around the Corner (A Loja da Esquina, 1940) do Lubitsch. E, talvez apenas por uma questão de direitos, esses filmes surgem-nos com a banda de som lateral e com os chilrear do dentes a rodar nos furos da película como que nos dizendo de que forma se deve (e pode?) ver esses filmes. Mozos descobriu essa coisa belíssima que os objectos como contentores de amor. Como se já não fosse possível olhar para esses filmes sem o sentir aquilo que Bénard lhes deu – como escrevia o Luís Mendonça há tempos “Nicholas Ray pode assinar a realização de Johnny Guitar, mas quem o realizou na nossa memória e no nosso coração foi João Bénard da Costa“. Mas há outro aspecto no filmes de Mozos que passa evidentemente pelo ritual fúnebre de despedida, só que aqui essa despedida dá-se não tanto pela mi(s)tificação – ainda que não lhe fuja – do homem mas pela capacidade de transmutar a perda em ganho, de tornar o irreparável em lição infinita. É esse último acto sem ponto final que o filme consegue construir exemplarmente, uma espécie de cinéfilo priapismo post-mortem ad aeternum (que é tanto uma maldição como um regozijo).
Sauerbruch Hutton Architekten (Sauerbruch Hutton Architects, 2013) de Harun Farocki
Depois de há dois anos o Doclisboa ter dedicado uma retrospectiva a Harun Farocki a atenção dada por este que aqui assina ao realizador redobrou-se. Isto porque cedo encontrei nos filmes de Farocki um gosto especial pelo filmar do trabalho e do processo criativo (ou nem tanto assim). Mas temos que entender a ideia de trabalho num sentido mais lato que aquele que a segurança social define. Na obra do realizador alemão o trabalho por si só existe na sua relação com as imagens. Surge por exemplo através daqueles que laboram sobre a produção dessas mesmas imagens, as publicitárias em Der Auftritt (The Appearance, 1996), Stilleben (Still Life, 1997) e Was Ist Los? (What’s Up?, 1991) ou os criadores de pornografia em Ein Bild (An Image, 1983) e também (em parte) no Wie Man Sieht (As You See, 1986). Ou surge de outro modo, pela relação que a captação de imagens pode influenciar o método de trabalho, por exemplo Erkennen und Verfolgen (War at a Distance, 2003) – o método bélico da hermenêutica das imagens aplicado à industria – e Gefängnisbilder (Prision Imags, 2000) – a produção de imagens (de segurança) – nas prisões na sua influência directa no trabalho dos guardas e no quotidiano dos reclusos. Mais na onda do primeiro conjunto, este último filme (e derradeiro…) de Harun Farocki aborda de novo produtores de imagens, mas como o título dá a antever, essas imagens são agora construídas em betão, cimento, tijolo, azulejo, mosaico e tinta.
Sauerbruch Hutton Architekten visita um atelier de arquitectura e design acompanhando num par de meses de Verão uma mão cheia de projectos em diferentes estados criativos: o edifício universitário para o qual é difícil encontrar uma paleta de cores que agrade a criadores e contratantes, o projecto para um centro de realidade virtual que deve ser simultaneamente um marco visual na paisagem e uma construção que se integre “virtualmente” no que a rodeia, um prédio de escritórios onde se reflecte sobre a horizontalidade ou verticalidade dos mosaicos (na sua componente estética mas também monetária), um projecto dedicado a cadeiras empilháveis e um outro sobre as maçanetas das janelas (onde o apreço visual se sobrepôs aos mínimos de segurança). O mais interessante em Sauerbruch Hutton Architekten passa inegavelmente por sairmos do filme com a sensação de que em arquitectura não há pedra que fique por virar nem tema/conceito que fique por explorar/questionar. Pus-me então outra questão: se uma sombra ou um tom ocupa tantos dias de trabalho de tão largas equipas não haverá no cinema um des-apuramento sistemático? A verdade é inevitável: sim, há, mas por uma questão simples. Um filme contém milhares ou milhões de imagens e seria trabalho de toda uma geração familiar conseguir o mesmo grau de pormenor do desgin em cada um desses frames. Além disso, um filme destina-se a ser visto e uma casa a ser vivida (mas não serão uma e a mesmas coisa, ver e viver? Talvez seja isso que Farocki tenha sempre querido dizer, que as imagens devem ser tratadas como pedaços de vida em potência, que apenas no espectador se reconstituem no seu sistema de referências).