Se Hou Hsiao-hsien se tornou uma das figuras mais conhecidas do Novo Cinema Taiwanês, Wu Nien-jen é também um nome fundamental quando se olha para este movimento. Argumentista de alguns filmes de Hou, nomeadamente de Lian lian fengchen (Poeira no Vento, 1986), que foi baseado em memórias da sua juventude, Wu Nien-jen estreou-se na realização em 1994 com Duosang (A Borrowed Life, 1994). Duosang é uma das obras-primas do cinema taiwanês mas permanece uma das menos vistas.
“Duosang” é um termo taiwanês derivado do japonês “otōsan”, que significa “pai”. O filme de Wu Nien-jen é precisamente sobre uma parte da vida do seu pai, que assume aqui o papel de símbolo de toda uma geração de taiwaneses que cresceram sob o domínio japonês (Taiwan foi uma colónia do Japão de 1895 até 1945) e cuja identidade foi profundamente marcada por essa experiência. Sega, o pai de Wu Nien-jen, nasceu na cidade Chiayi, no centro de Taiwan, e terá sido aprendiz de Pan Muzhi, um médico taiwanês que foi assassinado, como tantos outros membros das elites locais, durante as perseguições que se seguiram ao dito “Incidente 2-28” de 1947. O período de terror desencadeado pelo “Incidente” deu-se quando as forças do governo nacionalista chinês que tomara o controlo da ilha após a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial [acontecimento retrato em Beiqing chengshi (A City of Sadness, 1989) de Hou Hsiao-hsien] se voltaram contra a população local que reclamava contra o mau governo da ilha.
Duosang, no entanto, não começa com a juventude do pai de Wu mas com este já adulto, casado e com filhos na cidade mineira de Ruifang, numa zona montanhosa nos arredores de Taipé (a mesma zona onde tem lugar Lian lian feng chen e Beiqing chengshi). O filme começa aí pois Duosang não é um filme sobre a história de vida de Sega mas sim um filme sobre as memórias de Wu sobre o seu pai e um retrato das diferenças geracionais entre Sega, falante de taiwanês e japonês, educado no período de colonização japonesa de Taiwan e para sempre desconfiado dos “continentais” que passaram a governar Taiwan em 1945, e os seus filhos, educados numa Taiwan que era parte da República da China cuja matriz cultural dominante era chinesa e se exprimia em mandarim.
Entre os momentos mais ilustrativos deste choque geracional está uma cena em que Sega, querendo ajudar a filha no seu trabalho de casa de colorir a bandeira nacional, pinta de vermelho sol branco da bandeira da República da China, julgando tratar-se da bandeira japonesa, e é furiosamente repreendido pela menina que o acusa de ser um traidor como Wang Jingwei (uma das figuras de relevo do Kuomintang que, durante a Guerra Sino-Japonesa, desertou para se aliar aos japoneses).
O quotidiano da vida na povoação é transmitido com um olhar atento aos detalhes sem que nunca se sinta o peso da reconstituição histórica. Tudo flui com a cadência certa, como se além das memórias víssemos a evocação de um tempo que se procura compreender em retrospectiva, com a serenidade do olhar-depois. Os gestos rotineiros do dia-a-dia familiar, as escapadelas do pai e dos amigos para ir ao bordel local – percorrendo os campos do monte e cantando canções até lá chegar, como uma fuga para a juventude de outrora –, uma sessão de cinema com acompanhamento narrativo (magnífica cena), os trabalhos perigosos da mina, um casamento, os dramas dos vizinhos, as notícias oficiais de que o pai desconfia (preferindo ouvir o rádio em japonês). E, claro, as mudanças que se vão operando, lenta mas inexoravelmente, e que acabam por tocar a vida daquela comunidade remota: os que se mudam para a cidade, os que partem para outro trabalho, o filho que cresce e se torna pai, a memória linguística e identitária que se reformula (“como é que dois taiwaneses dão à luz um continental?”, diz Sega incrédulo perante o neto que não compreende taiwanês). Até a miragem do Japão, admirado, mesmo idealizado, pelo pai de Wu, parece ficar mais próxima com o passar do tempo e Sega prepara uma viagem para poder ir finalmente ver o Monte Fuji e o Palácio Imperial.
Duosang é um olhar de um filho sobre o seu pai e de um cidadão sobre o seu país, um observador cuidadoso das suas falhas sem que isso destrua o amor que permanece, apesar de todas as dificuldades de expressão. Há uma tristeza imensa em toda esta lembrança, a tristeza de uma geração a quem as decisões políticas de outros tiveram efeitos profundos na sua identidade individual, continuamente forçada a reinventar-se (deve vir daí a “vida emprestada” do título em inglês). Wu Nien-jen, que se tornaria num dos expoentes da afirmação de um identidade taiwanesa, olha para a sua família, para a comunidade onde cresceu, e nesse microcosmos expõe toda uma experiência colectiva.
Esta preocupação com a memória histórica e com as complexidades identitárias taiwanesas não é, de todo, exclusiva deste filme. Aliás, essas questões nortearam boa parte, senão mesmo todo, o Novo Cinema Taiwanês e, de alguma maneira, continuam a marcar boa parte da produção cinematográfica de Taiwan até hoje. Contudo, tal como noutras obras do Novo Cinema Taiwanês centradas em famílias (por exemplo, o já mencionado Beiqing chengshi), Duosang dá-nos a ver essas questões de interesse nacional a partir da intimidade da relação pai-filho. A memória de milhões de pessoas tem aqui um reflexo tocante precisamente porque parte do real de uma experiência particular.
Duosang oferece um olhar que, de certa maneira, ganha em ser visto em conjunto com Tongnian wangshi (The Time to Live and the Time to Die, 1985) de Hou Hsiao-hsien. Se a obra de Hou parte da experiência da sua família de continentais chegados a Taiwan no final dos anos 1940 e reflecte a forma como cada membro da família aprende a viver em Taiwan (e não é menos poderoso o retrato das fracturas geracionais entre o pai que vive preso à China que deixou para trás e os filhos para quem o único lar é a Formosa), o filme de Wu Nien-jen debruça-se sobre outra perspectiva, embora com uma tristeza análoga: a de uma família de taiwaneses cujo pai vive na memória do passado japonês enquanto os filhos são educados numa visão chinesa de Taiwan. O que ambos os filmes mostram, no seu retrato desse espaço, natural e humano, é Taiwan e como a ilha se tornou um refúgio de sonhos desfeitos, de memórias dolorosas e de experiências de vida problemáticas, que, no entanto, se tornaram as bases da criação de algo novo, uma força de sobrevivência quando não há mais nada a fazer senão continuar. É nessa experiência de deslocação e restabelecimento que está uma das chaves da plural identidade taiwanesa que o Cinema Novo captou como nunca até então.