Como filmar aquilo que não tem forma? Essa é a questão que tem atormentado muitos cineastas ao longos dos anos, de Joris Ivens com a sua Une Histoire de vent (1988) a Joaquim Sapinho com o seu Deste Lado da Ressurreição (2013), melhor ou pior, o invisível e o indizível foram tomando o seu lugar numa arte feita da indexação do real – real esse que por definição é livre dessas maleitas esotéricas sem predicado. A música é com certeza uma dessas maleitas que o cinema tem aprendido a domesticar – enjaulando-a no formato do tele-disco a partir dos anos 70. Essa domesticação passa em parte por não filmar a matéria de facto (como poderia?) e sim ficar-se pelos seus subprodutos: o processo artístico, as tramas entre músicos, as digressões, os excessos, os efeitos das obras nos ouvintes, as narrativas que nascem das letras e das próprias melodias e por aí fora. Fado Camané (2014) de Bruno de Almeida é um filme que relata o processo da gravação do disco de Sempre de Mim de 2008 fixando-se pois no processo criativo para ultimamente medeia o fado e o talento de Camané.
É isso que mais nos agarra (além da presença do fadista, com a sua voz de Al Pacino em grito abafado): o processo. Ou seja, a forma como a trindade formada por Camané, José Mário Branco e Manuela de Freitas funciona como um só que aos solavancos se reorganiza em função da música. Isso é aquilo que há de verdadeiramente belo neste filme. Ouvir Camané comentar uma nota de guitarra como estando “a abarrotar de fado”, presenciar as descrições brulesco-patéticas de Mário Branco para quem a música flui com o corpo ou sentir a presença quase sempre silenciosa de Manuela de Freitas que com uns olhos desmaiados vai absorvendo os modas que se vão tocando. E depois uma outra trindade formada pelos músicos Carlos Bica, José Manuel Neto e Carlos Manuel Proença que aparecem (como lhes é hábito) como acompanhantes das vozes. Outro efeito belo em Fado Camané é a forma como rescreve as nossas memórias das músicas; depois de visto o filme não se consegue ouvir o álbum sem nos acordes projectar as imagens que o filme nos ofereceu. É certamente um efeito mais próprio do cinema como arte da imagi(n)ação e menos deste filme em particular, mas não deixa de se fazer sentir – talvez com potenciado efeito (se calhar por também as letras e a voz de Camané serem elas mesmas veículos de imagens).
E talvez aqui se iniciem os problemas do filme. É que se há uma série de imagens que parecem nascer da própria música, e das pequenas encenações que são as gravações e os ensaios que as precedem, para Bruno de Almeida nenhuma dessas imagens pode passar sem um sublinhado. Há que frisar à exaustão cada momento mágico que a câmara apanha (e são alguns…) fazendo, no processo, desvanecer essa mesma magia. Digo isto porque juntamente com as imagens da gravação de Almeida entre-corta o filme com excertos de entrevistas ao próprio Camané. Uma delas por João Bonifácio do jornal Público (que visita o estúdio durante a gravação do disco na Valentim de Carvalho) e outra em que o entrevistador fica em fora de campo (depreendo que seja o próprio realizador). Estas entrevistas têm o poder de tornar desnecessariamente explícito aquilo que podia ter ficado pelo místico/mágico/religioso que o fado de Camané por vezes consegue. Por exemplo, quão belo teria sido o momento em que Mário Branco desencanta a música para um fado, como um coelho de uma cartola, e Camané o acompanha ainda sem palavras, apenas com a melodia da letra. Teria sido belo sim, mas em vez de nos deixarmos absorver por esse momento magnífico de simbiose artística somos avisados (pelo próprio cantor em conversa) que aquele era de facto um momento mesmo mágico, pá!
Mas talvez o que incomode mais seja estabelecer as devidas distâncias entre este filme e o tele-disco para Sei de um Rio – single do álbum – também realizado por Bruno de Almeida e também a preto e branco. É que aí a câmara voava para a face do fadista como que atraída pelo vórtice da sua voz. Gestos elegantes que pareciam acompanhar a brisa entre as esquinas da Lisboa velha. Em Fado Camané a câmara lança-se de novo ao rosto do cantor, só de agora fá-lo em zooms grotescos, que pela dimensão do ecrã de cinema (por oposição à tela típica do tele-disco, a do televisor) tornam tudo tristemente feio e amador. Bruno de Almeida quis ver em Camané uma Jeanne Balibar mas esqueceu-se que não tem costas para carregar a voz do fadista de igual para igual.