Apesar de David Fincher ter sido sempre visto como um cineasta kubrickiano – meticuloso, distante, mais intelectual que emocional -, a violência irrompia amiúde, visceralmente, nos seus primeiros filmes. À distância de quase vinte anos muitos já não se recordarão, mas Se7en (7 Pecados Mortais, 1995), quando se estreou, foi uma enormíssima pedrada no charco dos thrillers mansos e previsíveis (de tal forma, que o ia deixando vazio), uma brutal manifestação de maldade, encarnada na ainda melhor interpretação de Kevin Spacey, cujos resultados mais (in)visíveis eram a cabeça de Gwyneth Paltrow dentro de uma caixa e o consequente mal-estar do espectador (provocar emoções tão fortes em espectadores cada vez mais fatigados de tudo será sempre de louvar).
No entanto, se em Zodiac (2007), ou mesmo nos mais antigos The Game (O Jogo, 1997) e Panic Room (Sala de Pânico, 2002), havia indícios da crescente frieza no toque de Fincher, desde Social Network (A Rede Social, 2010), com os bafos de frio recriados digitalmente, e principalmente The Girl with the Dragon Tattoo (Millennium 1: Os Homens Que Odeiam as Mulheres, 2012), filmado na gelada Suécia, o cinema do realizador norte-americano entrou definitivamente na sua fase glaciar. Não só a cor se tornou mais azulada como tudo começou a ficar rígido, petrificado, inerte. Ou seja, os filmes passaram a assemelhar-se a cadáveres e Fincher ao médico legista que os autopsiava (nada disto é defeito, pelo menos neste caso não o é). No novo Gone Girl (Em Parte Incerta, 2014), há sol durante o dia e à noite quando muito fica fresquinho (tirando umas analepses na neve), mas o espectador nunca deixa de se sentir enregelado.
Como seria muito complicado (e extremamente limitador) escrever sobre Gone Girl sem revelar partes importantes do enredo, incluindo as inevitáveis reviravoltas deste tipo de thriller, aviso já que haverá desmancha-prazeres no resto do texto. E também queria deixar claro que conhecer a trama do filme reduzirá bastante o gozo de vê-lo. Não que este viva absolutamente das e pelas marcas do seu género, porém são estas que criam a tensão que faz o espectador roer as unhas a partir de certo momento.
Fincher e a argumentista (e autora do romance homónimo no qual Gone Girl se baseia) Gillian Flynn usam o truque de Hitchcock no Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958): uma extraordinária revelação de que nem o protagonista nem as outras personagens têm conhecimento. No Hitchcock, ficava a saber-se que Judy era e tinha sido sempre (na verdade, nunca tinha sido, toda uma outra conversa) a Madeleine por quem John Ferguson se apaixonara. No Fincher, que a “rapariga desaparecida” não estava morta nem fora raptada; antes tinha ela mesma engendrado o plano para se vingar do marido infiel e desleixado. Daí em diante, o espectador passa a temer pela sorte do protagonista (o anestesiado Ben Affleck: mais uma vez, um elogio), por quem não metia as mãos ou qualquer parte do corpo no fogo minutos antes, e a exigir o castigo devido para a maléfica femme fatale (a extraordinária Rosamund Pike, a quem finalmente deram um papel a condizer).
Logo aí se explica o mal-estar que se sentia nas cenas de felicidade, descritas no diário mentiroso de Amy (que o espectador seguira acriticamente), sempre um pouco ao lado, estranhas, ominosas. Mal-estar, esse, provocado tanto pela angustiante música de elevador de Trent Reznor e Atticus Ross como pela interpretação desajustada de Pike, que afinal era efabulação de uma mente conturbada e calculista e não uma falha da actriz. Ou melhor, era a representação da personagem, numa história em que toda a gente anda a fazer-se passar por quem não é e as percepções muitas vezes estão erradas. De resto, o próprio argumento explora explicitamente essas ideias, manietando, como já se viu, o espectador à sua vontade (fazendo-o tomar partido no logro). Pois se é verdade que Nick é um falso culpado, também é wrong man por não ser o homem que deveria ser – repare-se na intensa preocupação pela noção que os outros têm de si (bem maior do que pela sua mulher, que julga à altura desaparecida). E se é verdade que a “verdade” se joga nos programas de infotainment à la Fox News, Nick só sai (parcialmente) vitorioso quando participa activamente (e o público passa a gostar dele pelas mesmas más razões por que o odiava – assim como o público do filme?).
Contudo, o que eleva Gone Girl do thriller extremamente bem feito é a figura da femme fatale. Houve quem acusasse Gillian Flynn e David Fincher de misoginia e de andarem a reciclar mitos impróprios sobre a violação feminina mas, de longe, a personagem mais forte é a mulher. É curioso verificar que dantes, no film noir, a femme fatale podia muito bem ser o carrasco do protagonista, só que acabava sempre vítima (do destino) também. Pelo menos desde o neo-noir dos anos 90, desde The Last Seduction (A Última Sedução, 1994) de John Dahl e Linda Fiorentino, que pode sair a ganhar em toda a linha. É o que acontece em Gone Girl. A mulher fatal é grande vencedora do seu próprio jogo (aliás, apenas tem um revés, rapidamente resolvido), o que causa e causará basta irritação em muitos espectadores, revoltados com o incrível triunfo do amour fou, amor doentio, amor doente. De resto, essa será a mais vincada diferença de Gone Girl para Side Effects (Efeitos Secundários, 2012), um filme da mesma estirpe: a cara angelical de Rooney Mara tem o seu comeuppance; a face imperturbável de Rosamund Pike não, antes pelo contrário.