História de assombração psicológica ou psico-analítica sobre o horror da maternidade, The Babadook (O Senhor Babadook, 2014) será o grande filme de terror do ano (escrevi aqui sobre ele a propósito da sua passagem pelo MOTELx 2014). O facto de ser realizado e produzido no feminino é apenas um dos vários pormenores que fazem a originalidade desta proposta que sai da escuridão subitamente para nos apanhar desprevenidos. Os seus vários papões – não conte com apenas “um vilão” bem identificado – surgem-nos como as figuras de papel que fazem parte do livro pop-up a partir do qual enforma – ia escrever “que se adapta em” – toda a estética do filme. A conversa com a australiana Jennifer Kent anda à volta das diferentes leituras que um filme feito com tanto amor e tanto horror nos provocou, não só a mim como aos meus colegas walshianos, Carlos Natálio e Ricardo Vieira Lisboa, a quem agradeço o apoio na preparação desta entrevista que não teria sido possível sem a boa vontade e profissionalismo da distribuidora de The Babadook em Portugal, a Alambique Filmes.
Um dos vários aspectos curiosos de The Babadook é anterior ao próprio filme. Falo de todo o processo de pré-produção, que terá começado aparentemente em 2005, com a curta-metragem Monster (pode vê-la aqui), que é como que o diagrama para The Babadook. De que forma esta experiência no formato curto ajudou-a a pensar a forma final da longa-metragem?
Tem graça porque eu, honestamente, não me preparava para fazer uma longa-metragem quando fiz Monster. Mas claro que eles estão relacionados. A sua premissa básica é semelhante. O que os liga mais, a meu ver, é esta ideia de enfrentarmos o nosso lado escuro (shadow side) ou enfrentar a escuridão. Essa é a ligação principal. Mas, claro, The Babadook tem uma outra profundidade. Pode ter, por causa do seu tempo de duração. Portanto, os assuntos que eu aflorei em Monster são coisas muito mais complexas no filme de longa duração.
Lançou uma campanha no site de crowdfunding Kickstarter. Li recentemente que este tipo de angariação de fundos exige de produtor e realizador uma grande quantidade de trabalho, quase como se fosse um emprego de tempo inteiro.
Sim! (Risos) Lembro-me de ir fazer um take e perguntar: mas quanto dinheiro vai isto custar? E a Kristina [Kristina Ceyton, a produtora principal de The Babadook] dizia: vai e realiza o filme! Não te preocupes! Mas sim: tivemos de investir imensa energia na campanha. E fizémo-la, como disse, enquanto filmávamos. Felizmente conseguimos o nosso dinheiro! Caso contrário, teríamos de nos contentar com mobília de plástico… Podia não parecer tão bom como parece. Estamos mesmo gratos ao Kickstarter e aos nossos fãs por isso.
Em que medida a necessidade de comunicar a ideia do filme no Kickstarter, com os vídeos, textos, etc. bem antes de este estar terminado a ajudou a pensar o filme durante a realização e pós-produção?
Sinto que começou o diálogo entre nós e os nossos fãs. Empreendemos uma abordagem muito pessoal. Nós preocupamo-nos com os nossos fãs, por exemplo, gerimos pessoalmente a nossa página de Facebook. Faz parte desse diálogo entre nós e futuros fãs do filme. Gosto mesmo disso.
Imagino os utilizadores do site a abrirem a página da campanha no Kickstarter e a terem esta visão: duas mulheres a falarem sobre um filme de terror! São raros os casos na história do cinema de grandes filmes de terror realizados, diria mais, comandados deste modo por mulheres. Tem uma explicação para isto?
Penso que é simplesmente raro haver mulheres na realização. Está a mudar, mas penso que continua a ser raro. Só agora começamos a ganhar confiança e a lançarmo-nos… No que diz respeito ao terror, não sei se consigo responder a isso. Há provavelmente uma série de razões para além do mero sexismo. Penso que é um género que é bastante subversivo, que lida com tabus e não fazemos o papel de bom enquanto realizadoras, exploramos os mais profundos fracassos humanos e penso que certamente tenho coragem de fazer isso, mas se calhar as mulheres não são educadas para isso. Eu posso dizer que quando estava a escrever e a desenvolver The Babadook dizia a conhecidos e pessoas do meio: “estou a preparar um filme de terror”. E eles olhavam-me de volta como se estivesse à beira de matar os seus filhos (risos). Existe esse estigma, mas não quero saber.
Quando vimos The Babadook no festival de terror de Lisboa, MOTELx, a sessão estava esgotada. O outro filme que provocou uma reacção semelhante foi Honeymoon (2014), que também é realizado por uma mulher.
Ah! Adoro esse filme!
Para nós, foi uma surpresa: o facto dos dois melhores filmes do festival serem realizados por mulheres.
É raro. Mas penso que há muito horror por explorar pelo facto de a voz feminina estar ausente. As mulheres conhecem o medo. Nós vivemos com ele. Não quero retratar as mulheres como vítimas, mas há medo em ser mulher. É diferente do medo que os homens sentem. Por isso, sim: penso que é interessante tornar esta arena mais equilibrada. Há muitas histórias por contar nesse espaço.
Estivemos também a pensar em outros bons filmes de terror realizados por mulheres. Um deles será Near Dark (Depois do Anoitecer, 1987) de Kathryn Bigelow. O outro, que não é bem um filme de terror, é também australiano: Celia (1989) de Ann Turner. Este último também lida com o universo das brincadeiras, lendas e rituais infantis.
Tenho de confessar – e sinto-me mal em assumi-lo – mas não vi Celia. Tenho um amigo que disse que devia ver, porque há qualquer coisa arrepiante nele. Vi Near Dark num festival de cinema em Sydney e é um filme interessante. Julgo que há mais realizadoras de terror que estão a surgir, conheço algumas na Austrália. Este é o tempo certo.
Falando agora mais sobre o filme propriamente dito, de que modo o facto de este ser um filme comandado por mulheres ajudou à exploração dos medos e lutas da personagem principal, uma mãe solteira?
Eu sobre isso tenho de dizer que quis garantir que havia homens por perto também (risos). Porque a coisa podia ter-se tornado verdadeiramente horrífica só com mulheres. Por isso, escolhi um designer de produção e um director de fotografia, que nos equilibraram lindamente. Mas sobre conseguir essa performance e lidar com a complexidade daquela mulher… A maior parte está no argumento. Eu queria torná-la complexa desde o início. No começo, ela era demasiado boazinha. E eu disse: “não, isto está errado”. Ela precisava de ser mais complexa. Ela mente por vezes, não é clara com a irmã e foge das pessoas. Estas coisas tornam-na humana. Isso estava já no argumento. Durante a produção, usufruí dos cuidados da minha produtora, que protegeu o argumento e protegeu-o por forma a que não se tornasse em algo menos original. E aí penso que sermos duas mulheres ajudou bastante. E, claro, Essie Davies, a magnífica actriz que interpreta Amelia, trouxe também a sua emoção, inteligência, profundidade e talento a essa mulher.
Depois da sessão, estava a conversar com amigos sobre o filme e foi curioso verificar como cada um tinha a sua versão da história. Para mim, era sobretudo a maternidade que era a fonte do horror. Para um amigo, era o fantasma do pai. Para outro, o grande papão era o televisor ou as imagens da televisão.
É óptimo ouvir isso! Não podia estar mais contente por ouvir isso, porque no desenvolvimento as pessoas diziam: “tens de tornar muito claro o que isto é”. E eu dizia: “Mas isso não é assustador”. Nós precisamos de dar crédito ao público pela sua interpretação. Para mim, o cinema é uma conversa. Não é “eu digo-te o que isto é e tu que aceites”. É antes: “o que pensas sobre isto? Como te sentes a propósito disto?”. Para mim, o mestre nisto é David Lynch. Ele é muito claro sobre o que quer dizer, mas dá espaço ao público para interpretar. Esse é o maior elogio possível.
No fim, falámos menos sobre o papão propriamente dito, o monstro, o Senhor Babadook. De que forma usa o monstro como pretexto para falar de medos mais pervasivos e comuns?
É algo que nunca foi intelectualizado por mim. Tinha uma ideia e sabia que nunca seria um “kitchen sink drama”, porque o assunto seria demasiado melodramático e as pessoas desligar-se-iam. Eu queria que elas sentissem o que ela sentia. Para mim, posso dizer que esta é a história de uma mulher que puxa tão fundo este sofrimento e esta dor que ela sente, puxa ao ponto de se acumular tanta energia que esta acaba por sair dela e desenvolver a sua própria presença. Houve sempre, para mim, uma espécie de criatura. Se as pessoas acreditam se a criatura é real ou não, isso fica à sua consideração. As pessoas perguntam se o Babadook é real ou existe apenas nas suas cabeças. E a minha resposta é: “sim” (risos).
Ou pode dizer que é uma personagem de um livro pop-up.
É tudo isso. Não podemos separar o supernatural e o psicológico na história.
Falando ainda do livro, que tem um papel na longa-metragem que não tinha na curta Monster, quando e o que motivou a decisão de dar este papel ao livro no filme?
Bem, desde muito cedo. Pensei: como vou pô-lo na casa? Fazia sentido, para mim. Não sou muito intelectual a escolher uma ideia para um filme. Sentia que fazia sentido. A história no livro torna-se uma premonição no filme. Ganhou importância quando surgiu o nome “Babadook”, o que, já agora, tem um efeito muito forte nas pessoas. Há pessoas que detestam o facto do filme se chamar The Babadook. O que gosto é que raramente se esquecem desse nome. Mas sim: senti que o filme andava à volta do livro em termos de história e estilo, incluindo a natureza pop-up.
Essa era uma questão que tinha. A tal natureza “tridimensional” das aparições do monstro, a forma como ele surge da escuridão…
Sim. Há um outro ponto que queria referir. Eu queria ver pouco do Babadook ao longo do filme. Portanto, vê-lo sobretudo no livro foi satisfatório para mim, porque depois podemos imaginar quem espreita na escuridão.
Outra coisa é a materialidade do livro e a presença quase física do medo. Retirei uma passagem que me pareceu muito interessante de uma entrevista que deu à Film Comment: “Eu queria que tudo estivesse em frente à câmara com muito pouco trabalho de pós-produção investido”. Acredito que quando cita no filme o cinema de Georges Méliès está a querer retornar a um estado primitivo da linguagem cinematográfica.
Se calhar é do meu gosto pessoal, mas, para mim, isso é algo de muito belo. É algo que sinto que perdemos no cinema. Portanto, queria criar todos esses efeitos na câmara e não queria que parecessem muito polidos e suaves, queria que se parecessem com o livro pop-up, queria que se sentisse algo de criança neles. Algumas pessoas dizem-me: “Ah, se tivesse mais dinheiro seguramente teria feito diferente”. Mas eu digo: “Não!” (Risos). Eu podia ter demorado mais, ter mais opções, só que eu queria transmitir essa sensação de coisa manufacturada.
Outro assunto muito forte é o tabu da mãe que não ama o seu filho. Disse na mesma entrevista: “Não sei como funciona com a generalidade das pessoas, mas eu sinto fortemente que as pessoas precisam de encarar o máximo que conseguirem todas as facetas das suas vidas”. Não será esta a descrição da recuperação de um trauma? A mãe Amelia, no filme, precisa de literalmente encarar os seus fantasmas (no televisor, nomeadamente!) para, desse modo, aprender a lidar com eles e a reganhar a sua posição de mãe responsável e preocupada.
Sinto um grande amor pela personagem e não gosto de a julgar. Ela comporta-se de uma maneira que qualquer pessoa compreenderá, mas não ajuda muito. Por um lado, a irmã e as pessoas à volta dela não lhe dão grande ajuda. Por outro lado, ela também afasta personagens como Robbie, o tipo que trabalha com ela, ou a senhora Roach, sua vizinha. Eu vejo-a como uma mulher a afogar-se (a drowning woman). Ela vai-se agarrando a estas pequenas jangadas de salvação, mas acaba por se afundar. Sinto uma grande compaixão por uma pessoa nesta situação. Enquanto seres humanos, não temos de testemunhar actos de violência contra pessoas que amamos. Não devíamos passar por aquilo que Amelia passa, mas acabamos por passar. A minha pergunta é: como podemos sobreviver a esse terror, como o podemos olhar no rosto? Este filme, para mim, foi uma exploração disso.
Estamos a falar da envolência: a vizinha, a irmã, as outras personagens. E o televisor? Tem uma presença muito forte no filme, mas não sei se é um portal para a loucura ou uma droga muito imprevisível e poderosa.
Eu adoro essa televisão! Nós trabalhámos arduamente, eu e o montador, para conseguirmos as imagens certas onde se reflecte tudo. Tudo naquele ecrã reflecte o que está a acontecer. Para mim, é uma coisa belíssima poder assistir a essas cenas. Deram muito trabalho para estarem bem. E sim: eu vejo esse televisor como uma personagem.
(Alerta Spoiler)
Uma das coisas particularmente invulgares nos seus filmes, tanto a curta como a longa, é que no fim o monstro não morre ou desaparece. Pelo contrário, ele torna-se uma espécie de “terceiro locatário” na casa. Isto significa que cada pessoa deve aprender a lidar com os seus monstros e mesmo dar-lhes atenção e alimento?
Não sou uma grande leitora de textos de psicologia. Mas um dos filósofos que eu realmente admiro é Jung e Jung diz: “tu não consegues matar o monstro”. Por isso, nós pagamos para que nos matam o monstro. Eu recuso matá-lo. Mas provavelmente não devíamos estar a falar disto. Isto é algo que não devemos dizer, a pensar nas pessoas que ainda não viram o filme.
Não se preocupe que nós pomos um alerta ou assim.
É que não é essa a minha experiência na vida. Não queria contar uma história em que a personagem encontra algo e depois ela morre no fim, que é o que acontece normalmente no cinema de terror, mas seria ridículo nesta história. Mas não é um happy ending. Não penso que ter algo de tão temível a viver na nossa própria casa seja uma coisa assim tão risonha. É uma negociação com o monstro. Não o podemos matar, por isso, o que fazer com ele? Reflecte a minha experiência na vida.
Falámos do estigma de ser mulher no meio do cinema, mas falta perguntar como lida com a etiqueta “realizadora de terror”. Planeia continuar a explorar o género?
Sim, eu sinto-me confortável com a etiqueta, mas não creio que seja rigorosa. Não me interprete mal: eu não estou a dizer “agora que fiz um filme de terror, quero fazer outra coisa”. Para mim, o que importa é a ideia. Quando a ideia me chega, tento ser honesta com ela. Dos dois filmes que estou a preparar agora um tem uma história horrífica mas não é um filme de terror. O outro é um estranho filme sobre o qual não posso dizer nada (risos). É por isso que gosto de realizadores como David Lynch, porque não se prendem a um género apenas. Penso que a maior parte dos seus filmes são de terror. A minha definição de horror é larga. Espero poder fazer mais filmes, mas não serão necessariamente filmes de terror.
Portanto, nada de The Babadook 2 no horizonte?
Oh não!
Pergunto isto porque o final é tão aberto… que o perigo me parece real. Não tem esse medo?
Ah, não, porque a Kristina e eu temos os direitos. Mas quem sabe se dentro de 20 anos não precisarei de o fazer, estando falida. Se vir um teaser trailer de The Babadook 2 já sabe: “aquela vendeu-se por completo!” (risos).