A primeira vez que Agnès Varda decidiu mexer uma câmara na vida foi para fazer uma panorâmica de um tronco de madeira – onde corriam os créditos do seu primeiro filme e onde surgia o nome de Alain Resnais como montador – para um estendal de roupas ao vento numa rua estreita. O plano continua com um travelling entrando placidamente por Pointe Courte adentro, os estendais sucedem-se depois lá mais para a frente, até para brincar com o falso fora de campo das mulheres dos pescadores diante da objectiva ou para marcar a divisão entre o seu espaço feminino e o masculino. Mas o que aqui marca é que o início do cinema para Varda é feito com essa passagem: da madeira – rígida, imóvel – ao tecido – desordenado, fino –; da imobilidade ao movimento da câmara (e ao vento, direi, da experimentação). A importância da madeira na obra de Varda não fui eu que a sonhei. Sonhou-a Truffaut em 56 pouco tempo depois do filme, detendo-se na associação daquela ao elemento masculino, ou mais simplesmente a “ele” e da ligação do metal a “ela”.
Se insisto nesta ligação, ou passagem, desta vez da rigidez da madeira ao tecido da tela-roupa é porque ela contém, na primeira longa metragem de Varda o projecto que 45 anos depois se torna claro em Les glaneurs et la glaneuse (Os Respigadores e a Respigadora, 2000). O projecto é com uma mão conseguir filmar a outra. Se se pode dizer, não ligeiramente, que La Pointe-Courte (1956) inventou a Nouvelle Vague então há espaço para refletir sobre essa invenção que repousa subitamente nessas duas mãos da belga. Uma mão de Varda quis filmar um primeiro retrato de amor pelo espaço, um espaço próximo, o porto de pescadores da Pointe Courte. Esse desejo de proximidade naturalista em filmar com os habitantes da região, o trabalho dos pescadores, a perspectiva de um casamento entre uma jovem de 16 anos e um homem mais velho, a doença de uma criança num casal de muitos filhos relacionam o filme com um olhar etnográfico, com o cinema de Rosselini ou mesmo de Flaherty. Contudo, essa ânsia de buscar a vida onde ela se encontra, com o cinema francês a buscar algo ao neorrealismo italiano, não dispensa o enquadramento preciso (trop précis) de uma fotógrafa de base. Talvez aí seja o momento em que uma mão filma a outra, isto é, que a vida – o gato, as redes, a enguia, as roupas ao vento – se transforma em detalhes de quadro.
Nessa outra mão de Varda está a vontade de colocar, compor a rigidez da encenação na corrente do imprevisível curso da vida. Casal que repensa a sua relação de amor enquanto Varda afirma o amor pela deambulação do espaço da vila que estes percorrem. Actores de teatro, Philippe Noiret, Silvia Monfort, rostos deliberadamente inexpressivos, “rostos de madeira” a representar contra a identificação, numa distância brechtiana e eis que Godard vai admirando o filme embora revelando aquilo que considerava ser um “intelectualismo fatigante” que depois censurou em obras como Le bonheur (A Felicidade, 1956) ou Truffaut que via o filme como um ensaio “laboriosamente” autêntico e onde os “gestos, as atitudes, os olhares e tons de voz parecem deliberados e teóricos”. Curioso que Resnais teria dito a Varda para conservar a rigidez, a lentidão no filme, isto é, a justaposição da vida e do teatro como marca sua. Talvez essa tenha sido uma influência no próprio Resnais e Hiroshima Mon Amour (Hiroshima Meu Amor, 1959) e o que levasse Rivette a dizer que La Pointe-Courte, ou melhor que a montagem de Resnais, transformavam o filme dela num fragmento da obra dele.
Aceite-se ou rejeite-se esse intelectualismo, o que vinha de escrever eu é que em Varda essa passagem entre o olhar a paisagem como um corpo e um corpo como uma paisagem, o reconhecimento da rigidez da convenção – estética e existencial – e da liberdade – estética e… existencial – são marcas que nunca deixou e que talvez tenham fundado esse novo rolar de vaga francês, uma vaga que queria entrar natural e selvaticamente pelas urbes adentro mas que reinvindicava as citações literárias das personagens bem aconchegadinhos na cama. O longe e o perto, o natural e o estranho, os rostos-máscara de Bergman e os pescadores da “terra que treme” todos no mesmo gestos, todas a emergir das mesmas tomadas fixas com carga de eternidade. Nesse dualismo que é também, ou sobretudo, o do individualismo dos amantes e a subjectividade partilhada da colectividade, Varda nega-nos no início o rosto do casal quando ela chega a Pointe Courte vinda da cidade (do ferro). E mais tarde ele confirma: “não é sobre eles que aquilo se trata”. À mulher que já-não-ama não nos interessa mais o rosto, à mulher que-tanto-ama, que tem tantos filhos (uns pendurados na mesa outros a chorar, outros a morrer como gatos), vemo-lo bem: um rosto desesperado, franzido de dor pela morte de um dos seus filhos, Daniel, que jaz sem vida num caixãozinho a seu lado. Palavras mudas de um plano ao qual depois de seguirá o choro de luto das vizinhas.
Retrato de um comunidade que resiste à entrada do licenciamento do seu trabalho, que resiste à libertação dos mais novos do controlo dos mais velhos, que resiste ainda a um amor que se transforma e talvez morra. Varda parece reconhecer nesta sua primeira obra a capacidade de captar e acarinhar uma espécie de êxtase estético e emotivo na captação da imobilidade, do retrato fixado de uma paisagem emocional ou social. Mas como crescer significa partir de um estado a outro, La Pointe-Courte começa com duas chegadas (dos inspectores e d’ “ela”) e com elas a crise da mudança e termina com uma partida. Nessa partida é “ela” que talvez vá definitivamente para a cidade e ganhe um nome, Florence [Cléo de Cinq à Sept (Duas Horas na Vida de uma Mulher, 1961)] e dessas deambulações de um amor passado Varda vá talvez recuperar a felicidade e encontrar as suas cores: o vermelho, o amarelo, o azul, as cores da paisagem e do “idílio” de Le bonheur.