“Un triple anankè règne sur nous, l’anankè des dogmes, l’anankè des lois, l’anankè des choses. (…) À ces trois fatalités qui enveloppent l’homme, se mêle la fatalité intérieure, l’anankè suprême, le cœur humain”.
Victor Hugo, prefácio a Les travailleurs de la mer
“Todo trágico repousa sobre uma oposição irreconciliável ( unausgleichbar). Desde que uma conciliação ( Ausgleichung) advém, ou se torna possível, o trágico desaparece”.
Friedrich von Müller, Conversações com Goethe
Mudar de Vida (1966) conta-nos a história de um idílio impossível, de uma reconciliação dorida e improfícua com as Origens – a Terra natal, a Mulher; mas também é um inventário grave e caricioso das obras que o homem inflige à terra, da lavradura dos mares e dos ares, do sal e da areia: é impossível apreender o significado do conflito romântico central sem relacioná-lo à canção de Gesta entoada por aquela pequena aldeia mediterrânea. Júlia, Adelino, Raimundo constituem não apenas os vértices de um triângulo romanesco, mas também as arestas – domésticas, “tópicas”- de um combate sempiterno com os elementos; o reencontro entre os amantes dá-se sob a égide de um Theatrum mundi: sob o sol e diante do mar, no areal onde Júlia trabalha. A arena trágica grega aqui retoma o seu espaço-tempo de presença, irradiante sob o sol, irisada de chuva, alternadamente apolínea e dionisíaca. Ao primeiro plano que nos mostra Adelino se encaminhando para o lugar, Rocha introduz um contracampo laboral, onde se vê uma mulher que ara o solo. A subjetividade “aparece” nesta cratera telúrica, de onde tudo advém. Melodrama sublimado pela onipresença oracular da paisagem, Mudar de Vida não admite a separação, levada a cabo pelos arcanos do drama burguês, entre o intimismo elegíaco e o gregarismo trágico. Uma quintessência da integração clássica (mundo, gesto) se atinge e esmera aqui: “Somos” o mundo onde habitamos e trabalhamos. Paulo Rocha é um poeta bucólico e um rapsodo, pois sabe, em um mesmo e compassado movimento, rematar o imponderável da subjetividade e o inelutável do mundo. São os contrafortes rochosos e as ondas revoltas do mar as testemunhas destes olhares furtivos; é a pedra silente e eterna que os sagra. A Natureza assume aqui o papel do espectador- ou somos nós que tomamos o seu lugar e arraigamos, impassíveis, o seu desejo carnívoro? A consangüinidade entre a subjetividade e o”mundo que os contempla” é tão forte que, quando Júlia desmaia no início do filme, o espaço do filme vacila e titubeia com ela. Abre-se uma cratera no seio do mundo das aparências, um vácuo fenomenológico, cujo efeito é a desorientação espacial: deslocação precipitada de eixo, motricidade deficitária da câmera, que parece ceder à atração da terra negra e crepitante. Esta veemência sismográfica que a câmera adquire é um revelateur de que Adelino e Júlia são depositários mediúnicos de forças e ritos que os ultrapassam, de vaticínios que os espreitam, de demiurgias secretas que animam os ares e a terra.. quando Júlia está à cabeceira de Adelino convalescente, uma intuição em comum os ilumina: “Todos os vivos… e todos os mortos”. Eles pertencem a um universo muito vasto e muito antigo, de que o seu caso de amor desafortunado é a manifestação atual, episódica, claudicante- uma constelação arquetipicamente unitária, governada pelos vivos e pelos mortos, pelas marés e pelas estações, pelo Nomos e pelo Logos resguardados pelos rituais comunitários. Aqui, a Cultura não se opõe à Natureza, mas a ratifica e comemora: “Somos bichos”. Tudo se origina e deságua em uma mesma temporalidade cíclica. O festim das espumas que desembocam na areia, as alvíssaras febris da pesca em alto-mar, o cadenciado das palmas e dos cantos na glorificação do santo: a atenção meticulosa com que Mudar de Vida se detém sobre efemérides naturais e civilizacionais nos sugere que o mundo investigado aqui não separa ou justapõe estes domínios, mas os celebra com idêntica unção, como se pertencessem a um mesmo, amplíssimo e ressoante corpo cósmico, percutido pelo beat dos elementos. Uma pátina de Eterno recobre as cantigas, as rodas, as batidas; cada gesto se refrata e ressoa em um gesto anterior, primevo e último. O antropólogo e o poeta elegíaco, o entomologista e o cronista, o documentarista e o contista são requisitados em igual medida para traçar o panorama de um mundo anterior às cismas do Logos Ocidental e de suas instituições. Este mundo teve uma história, um ethos, um Romanceiro metafísico: reconciliação.
E é justamente contra o fundo desta aspiração concertante à unidade que a “cisão” representada por Júlia e Adelino adquire a sua ressonância patética: ela constitui uma fissura que deve necessariamente ser suturada, uma dívida cujo resgate é inapelável; a coluna de Adelino, a doença cardíaca de Júlia são os estigmas somáticos de uma radical situação, glosada com bonomia pelo casal de velhos (Olha o que isto vai dar!), refratada pela circunspecção desconfiada de Raimundo (seu irmão, seu esposo) e pelos flatus vocis de Júlia, que parece pressentir a Morte– carregá-la dentro de si… Quando Rocha nos mostra Adelino desvanecido sob o peso da embarcação, uma rima se estabelece com a astenia de Júlia; ambos sucumbem ao “peso” de uma condição superior às suas forças, cuja potência acabrunhante os esmaga: o draconiano universo do trabalho, índice de um devir submetido à férrea repetição, à estandardização do gesto e da força: este mundo bigger than life, que imprime sobre os míseros corpos humanos a cicatriz de sua passagem… Mas é por intercessão desta condição deficitária que eles acedem a uma espécie de êxtase, a momentos de semi-transe (o close em Del Rey durante a convalescença de Adelino, ou quando Júlia acorda do desmaio) que designam precisamente esta borda, penumbrosa e vacilante, sobre a qual se equilibram precariamente estes seres transidos pela paixão e pela culpa; o pathos que os consome aliena-os do meio, perde-os em si mesmos; por vezes, Mudar de Vida parece flutuar, e uma semi-hemiplegia da percepção condena Júlia e Adelino a uma existência fantasmagórica, entre angélica e vampiresca. Estar doente é ser aqui e lá, ancorado num promontório espiritual, fustigado pelas tormentas da alma; Rocha descobre para a casmurrice fenomenológica do doente uma ressonância existencial, um stimmung tenebroso que os aproxima de personagens de Dostoiévski. A intensidade ensimesmada que Geraldo del Rey e Maria Barroso imprimem a ambos isola-os em um cristal de inviolabilidade profética, que estilhaça o basso continuo classicista do filme com as agruras melódicas de um impromptu expressionista; a opacidade telúrica do meio é por um momento suspensa, rarefeita sua pressão entrópica. Mas o que se substitui ao augúrio trágico do mundo exterior talvez seja ainda mais ameaçador: uma experiência da subjetividade como o vetusto refúgio do fantasma. Quando o filme “volta a si”, permanece assombrado por este marasmo envenenado que o spleen dos personagens espraiara pelo ar.
Mundo, subjetividade, reconciliação, expiação: um contrato cósmico irremissível determina que a falta trágica deve ser sanada a qualquer custo. Um equilíbrio anterior deve ser restaurado, uma Origem restituída à sua fonte sem mácula, um élan divino sustentado em sua nota cristalina. Se Mudar de Vida assume como premissa uma convenção trágica, é para ao final pervertê-la com uma pirueta: não encontramos como esperávamos um Die irae, mas uma sonatina de risos pela campina. Ao sacrifício de todos, substitui-se o sacrifício de um particular, Júlia- e já conhecemos o suficiente da economia da redenção para intuir no amor esta moeda de troca conversora, através da qual o opróbrio transfigura-se em dom, a Morte em nova vida (espiritual). É a introdução da personagem de Albertina quem opera esta comutação: ao amor culpado e imemorial com a cunhada, um flerte aventuresco com a irmã do patrão; à ligação quase-incestuosa (e pensemos aqui nas implicações simbólicas deste enlace vertical de sangue: a Mãe, a Mulher, a Origem), a descontração “forma balada” de um amor fortuito, que revolve (imanta) o plano com a perseguição que inaugura o encontro de ambos. Ao trabalho como “maldição”, o labor como dom de vida (plus): “Dá-me este dinheiro. Não precisamos dele. Temos braços”. À verticalidade opressora destes blocos de granito que enquadram os encontros entre Júlia e Adelino, a horizontalidade do planalto finalmente descoberto, na corrida com Albertina. “O mundo é grande”, ela lhe responde com arrogante precisão. Mundos: caminhos e destinos. Nada é mais garantido de antemão (o Fatum!). De certa forma, Mudar de Vida é um filme incompleto; mas é na forma brusca com que se encerra que podemos ler em filigrana um “happy end”: o inacabamento do gesto final – estes dois que, telescopiados por um plano generosamente geral, se encaminham para fora do plano- é o índice de uma fresta de liberdade enfim conquistada, de uma abertura transitiva ao porvir e suas veredas.