Desde que me cruzei pela primeira vez com La prima notte di quiete (Outono Escaldante, 1972: tradução que perde de vista a alusão a Goethe que o título original encerra) que ainda estou para perceber: fui eu que vi o filme, ou foi ele que me viu a mim? Facto: embora não seja o Zurlini de que mais gosto [prefiro-lhe, pelo menos, La ragazza con la valigia (A Rapariga da Mala, 1961)], La prima notte di quiete é um daqueles raríssimos filmes que só consigo interrogar, interrogando-me ao mesmo tempo com ele (nota à margem: não vou ao cinema para ver a minha vida ao espelho, mas, havendo reflexo, não desdenho o efeito). Dir-se-á que é um problema meu: admito que sim, mas suspeito que não, ou melhor, que não serei o único a reconhecer o mundo em ruínas que Zurlini aqui projecta.
Para situar: encontramo-nos na pequena cidade italiana de Rimini, e seguimos o trajecto de um professor na casa dos quarenta (Alain Delon, sempre mal barbeado, de casaco pelo joelho e de cigarro na boca) que chega à cidade para leccionar a cadeira de literatura italiana no liceu. Estamos em presença de um morto-vivo que vive em regime de evasão permanente, refugiando-se, quer nos jogos de cartas a dinheiro, quer na penumbra da discoteca local (o “Nuovo Mondo”…), numa tentativa de evitar a única figura que o vincula a um passado que se adivinha trágico, nomeadamente: a sua depressiva namorada (Lea Massari), que passa os dias a fumar cigarros sobre a cama do seu quarto. Por duas vezes Delon entrará nesse quarto (na primeira, para dizer a Massari que pretende deixá-la; na segunda, para a violar), e por duas vezes a câmara de Zurlini fará questão de mostrar uma parede, onde – a julgar pelas marcas – esteve outrora pendurado um crucifixo. É apenas um pormenor, é certo, mas nele reside a chave de leitura de uma obra que citará também por duas vezes um par de versículos do Evangelho de São Lucas (24:5-6): “porque buscais Aquele que vive entre os mortos? Não está aqui…”. Entenda-se: este penúltimo filme de Zurlini (que, no seu diário, Pagine di un diario veneziano. Gli anni delle immagini perdute, se autodesigna como um “católico marxista”) é, sobretudo, o retrato de um mundo esvaziado de sentido, sem ponto de fuga, onde os movimentos conduzem a lado nenhum, e onde os corpos só comunicam através da sua mútua degradação (“Permanece apenas um corpo que se deforma. Permanece apenas a privação, a pena, a crueldade das pessoas que começam a aperceber-se, sem que haja mais nada a fazer”, diz alguém a páginas tantas).
Trata-se de um estado de queda que Zurlini traduz, visualmente, pelo modo orgânico como articula o protagonista e a geografia do filme, a saber: transformando a estância balnear de Rimini num atoleiro chicoteado pelas chuvas de Outono, que só conhece cores neutras e desbotadas (e Zurlini terá sido, com Antonioni, o cineasta italiano do pós-guerra que melhor soube incorporar os estados de alma na paisagem). Com efeito, à imagem da cidade que habita, a personagem de Delon descobre-se subitamente destituída de função – como aquela praia deserta, coberta de detritos trazidos pela maré, que a câmara nos dá a ver num genial plano de pontuação.
Deste território de escombros, a única escapatória possível parece ser o belo (“só estou aqui para vos explicar por que razão um verso de Petrarca é belo; tudo o resto me é estranho e me aborrece”). Ora, a personagem que no filme o encarna é uma das alunas de Delon (Sonia Petrovna) – uma rapariga com “muito passado, pouco presente e sem futuro”, que se deixa humilhar pelo namorado (Adalberto Maria Merli), mas por cuja “infinita tristeza sem remédio” o professor será seduzido, como se nela entrevisse o último vestígio de uma pureza entretanto perdida (e não é por acaso que Zurlini os convida a ver juntos a Madonna del Parto de Piero della Francesca). Daqui nasce o esboço de um romance, que [como o de Jean-Louis Trintignant e Eleonora Rossi Drago em Estate violenta (Um Verão Violento, 1959), o de Jacques Perrin e Claudia Cardinale em La ragazza con la valigia…] se encontra condenado à partida. Sabemo-lo de ciência certa porque, na sequência que precede o seu primeiro encontro no liceu, Zurlini no-lo diz (com a economia de meios que o caracteriza), realizando um campo/contra-campo entre Delon e um velho quadro de Giovanni Battista Nagli, mais precisamente: uma representação do confronto entre David (figura do Deus de Israel) e Golias (figura do paganismo), na qual o segundo aguarda apenas pela sua decapitação. Aquilo que se segue, até final, é uma magnífica demonstração da falência daquela conhecida máxima neoplatónica, segundo a qual o belo seria “o esplendor do bem”. Mas, pelo meio, ainda haverá tempo para perceber que Zurlini foi (não tenho dúvidas) um dos cineastas que melhor soube investir a banda de som dos seus filmes de uma função verdadeiramente diegética. E basta-me ver a sequência dançada de La prima notte di quiete (construída em rima com aquela que habita Estate violenta) para dar por mim a perguntar por que raio de razão – vinte e dois anos após a sua morte – Zurlini continua a ser pouco mais do que uma apressada nota de rodapé na história do cinema italiano.