Inserido num genuíno contexto de homenagem, Sosialismi (Socialism, 2014), último filme do recentemente falecido historiador de cinema e realizador finlandês Peter von Bagh (1943-2014), fez as honras de encerramento da 12ª edição do festival Doclisboa, no passado sábado, dia 25. Peter von Bagh, figura ímpar do mundo da cinefilia – fundador, com os irmãos Kaurismäki, do Midnight Sun Film Festival, em Sodankylä; co-director do festival Cinema Ritrovatto, em Bolonha; responsável pela revista Filmihullu… – deixa-nos uma obra vastíssima e excepcional, do ponto de vista do uso de imagens raras de arquivo, e igualmente na publicação de livros sobre a história do cinema. Procurando sempre privilegiar a história da Finlândia como tema central de muitos dos seus filmes (ou “ensaios fílmicos”), é, contudo, o século XX – o século do cinema – que traçará as linhas férreas de interesse deste profundo conhecedor e incansável estudioso. Reiterando o que diz José Manuel Costa, no texto de luto por von Bagh, em nome da Cinemateca, “morreu o melhor de todos nós”.
O hábito é partir-se do geral para o particular. No caso, os dois últimos filmes de Peter von Bagh são uma inversão deste movimento discursivo, de um para o outro. Muisteja – Pieni Elokuva 1950-Luvun Oulusta (Remembrance – A Small Movie about Oulu in the 1950’s, 2013), o penúltimo, consagra-nos uma memória poética de Oulu, a cidade finlandesa onde von Bagh viveu grande parte da sua infância e adolescência. Limitada no tempo que revisita (anos 50), esta “viagem” que se empreende visualmente através de uma série de materiais de arquivo, imprime-nos o espírito de uma cidade ártica, em pleno amanhecer social. Depois do encontro lírico com o passado, o seu passado, Peter von Bagh acaba por sair da zona particular das suas memórias, para derramar o seu olhar analítico (e, mais uma vez, romântico) de historiador sobre um tema muito geral: o socialismo. Com efeito, Sosialismi acaba por ser daquelas portas grandiosas, barrocas, talhadas ao pormenor, com que se fecha uma obra rigorosa e apaixonada.
Dividido em dezoito capítulos, iniciados cada um deles com citações de grandes autores (Marx, Gorki, Dostoievski, Malraux, Jack London…), escolhidas com acribia, para nos firmar no sentido das imagens que pensam e comprovam o socialismo através de diferentes momentos da história, em diversos pontos geográficos, Sosialismi não pode deixar de ser também um filme sobre o próprio cinema – documental e de ficção – que se cruzou fatalmente com o maior sonho colectivo do século XX. Escrevendo direito por linhas tortas, uma vez que a história não é linear, von Bagh começa este filme da única maneira possível, isto é, pela pedra angular que suportará toda a descendência de imagens do e sobre o socialismo: La sortie de l’usine Lumière à Lyon (1895), o embrião do movimento, o embrião do cinema, a ser ele próprio o testemunho da inevitabilidade do tema do trabalho e dos trabalhadores, que é como quem diz, do socialismo. Outro elemento preambular que define, por sua vez, uma certa dimensão melancólica para Sosialismi é a primeira citação, tirada da peça Tio Vânia de Tchekhov: “Those living a hundred, two hundred years from now, despising us for our silly, mundane lives, may perhaps somehow learn the secret of happiness”, este sentido, ao mesmo tempo, lúcido e quimérico que tanto nos diz sobre a própria abordagem histórica, ainda que romântica (repito-me propositadamente), do realizador. As imagens congregadas aqui são quase uma só imagem, a beleza da demanda por um ideal inatingível na sua plenitude, tal como a imagem que guardamos de Our Daily Bread (O Pão Nosso de Cada Dia, 1934), de King Vidor, com os trabalhadores a oferecerem as suas mãos a uma obra comum, com benefícios comuns. São tantas imagens e, no entanto, apenas uma.
Escrever sobre Sosialismi faz-nos também sucumbir um pouco ao seu carácter enciclopédico; num impulso deítico, temos vontade de inventariar, através da memória, alguns dos filmes do socialismo que vão aparecendo: La Marseillaise (1938), Bronenosets Potemkin (O Couraçado Potemkin, 1925), Oktyabr (Outubro, 1928), A Corner in Wheat (1909), The Immigrant (O Emigrante, 1917), Roma città aperta (Roma, Cidade Aberta, 1945), The Grapes of Wrath (As Vinhas da Ira, 1949), Il vangelo secondo Matteo (O Evangelho Segundo São Mateus, 1964), Le crime de Monsieur Lange (O Crime do Sr. Lange, 1936)… Aqui uma pequena amostra dos mais conhecidos, chegando-nos ainda ao conhecimento outros títulos que, seguramente, o mais cinéfilo de todos nós, ignorava a existência. Essa é uma das maravilhas e privilégios para quem teve a oportunidade – ou mantém a curiosidade – de conhecer a obra de Peter von Bagh. Um dos, ou talvez o mais famigerado dos seus filmes, Helsinki, ikuisesti (Helsinki Forever, 2008), levou Chris Marker à ousada manifestação de preferência deste, em relação ao estimado clássico Berlin: Die Sinfonie der Grosstadt (A Sinfonia de uma Capital, 1927). E como não sentir o poder de tais imagens resgatadas do esquecimento, quando vemos o navio a atravessar o gelo, quais primeiros espectadores a assistirem à saída dos trabalhadores da fábrica Lumière? É um movimento inaugural, e von Bagh sabia encontrá-los como ninguém.
“When you’re Smiling keep on smiling, the whole world smiles with you”, diz a canção de Louis Armstrong que von Bagh escolheu, mesmo antes do decurso da montagem de Sosialismi, para terminar o filme. “The last madman”, dizia ele de si próprio; era mesmo. Não dá para não sorrir, ainda que contendo uma lágrima teimosa.