Depois de ter sobrevoado o que constitui o grosso da programação dos quatro canais TVCine, olho agora mais detalhadamente para aquilo que pode ser descrito como uma tentativa de serviço público por parte de um operador privado. Não há regra alguma – e não está escrito nas estrelas – que serviço público de televisão é obrigatoriamente igual a disparate comercial. A prova disso é essa família de palavras que devia orientar, desde logo, os canais públicos, mas que, ironia trágica, é permanentemente treslida pelas suas sucessivas direcções: alternativa, diversidade, diferença… O programador público deve procurar oferecer o que os outros não oferecem e normalmente o bem mais escasso na televisão enquadra-se na categoria “arte e cultura”. Dar ao público não aquilo que ele quer, mas aquilo que ele precisa – como estratégia comercial isto pode nem estar mal. Em certa medida, o serviço público visa criar necessidades num espectador “zombieficado” por uma televisão movida a reality shows, novelas e bola (o famigerado vírus do “É bola”). O papel da televisão pública é esse e, contudo, no meio cultural e artístico onde já reinou a descrença, reina agora a desistência e, nalguns casos, uma espécie de colaboracionismo por omissão.
Depois de perdida a batalha no domínio da televisão, a mesma televisão assalta agora o sacrossanto território do cinema. Na guarda das suas fronteiras, os tais agentes adormecidos do meio cultura e artístico português ainda vão dando sinais de vida, mas verdadeiramente o que se passa é isto e pouco mais que isto: uma resistência frouxa a uma força que se alimentou da fraqueza, arrogância e imprevidência da elite do cinema nacional. Tem sido notícia nestes dias algo que Ricardo Vieira Lisboa já antevira na sua crónica Filmado Tangente: face à investida das “pessoas da televisão” no sentido de controlarem os fundos do ICA, os agentes culturais produzem uma reacção algo desajeitada – que pode ser lida aqui e aqui -, típica de quem acordou tarde, tarde demais, para esta batalha ou, mais que isso porque antes disso, para uma batalha que começou noutro território, aquele onde o poder de mobilizar a opinião pública não tem rival: a televisão. Apetece acrescentar: ainda a televisão. Não se iludam os “integrados” da ciber-revolução, nem os agitadores retardatários enjoados com a seca que a Secção Especializada do Cinema e do Audiovisual (SECA) deixa antever: a televisão tomou conta do cinema, porque o cinema não soube tomar conta da televisão, isto é, negligenciou-a, deixou de lutar por ela e, pior, muito pior – uma inconsciência política grave -, subestimou-a.
Para muitos dos autores chateados com a SECA, e a seca que se avizinha de projectos da sua lavra, as palavras de Pedro Borges nas últimas Conversas à Pala devem parecer anacrónicas, mas se calhar explicam muito melhor do que possamos pensar o estado a que chegou o cinema português ou o seu trôpego lóbismo e a natureza dessa relação que nós, os espectadores, mantemos hoje com o cinema, leia-se, todo ele como interessa ser visto e vivido, sem nacionalidades ou com todas as nacionalidades ou – a minha variente preferida – contra a própria ideia de nacionalidade. A passagem é longa, mas vale a pena dar a ler aqui: “Há um problema de renovação de público [do cinema] (…) de pessoas mais novas. E acho que há um ambiente que se foi criando e recriando em relação ao cinema que é de desprezo pelo cinema e há o problema da televisão pública que foi quem trouxe para o cinema umas dezenas de milhares de pessoas e isso desapareceu completamente. Toda a gente conhece dezenas de pessoas que vieram para isto porque um dia viram na televisão um filme esquisito, a preto-e-branco, apresentado por um gajo que parecia um grande palerma e de repente gostaram muito. Uns meses depois, (…) souberam que na Cinemateca passava outro filme desse gajo e vieram ver como ele era. E assim sucessivamente. É esse ciclo de atracção para o cinema, para a cultura e para as arte que a televisão pública teve em Portugal nos anos 80 e 90 um papel essencial e isso pura e simplesmente desapareceu”.
O que Pedro Borges aponta aqui, pondo em dúvida o efeito popular dos festivais de cinema, onde, segundo este, o público desenvolve uma relação circunstancial com o cinema, é que a televisão tem um poder incomparavalmente maior que qualquer outro meio para formar – e deformar, como tem sido norma – nas pessoas hábitos culturais, para induzir nelas necessidades que estas ainda desconhecem ter ou/e provocar a curiosidade fininha que as leva a querer mais “daquilo”. Há muito que a religião deixou de ser o ópio do povo. O grande passador é, continua a ser, a caixinha mágica. Todavia, o que (se) passa no televisor é sempre a mesma droga, a toda a hora. O cenário é este: a televisão multiplica o mesmo e, com isso, participa no mesmo processo de “zombieficação” que aterroriza agora a elite do cinema português. Claro que tem razões para estar aterrorizada. Todavia, não se pode fugir à evidência de que esta é uma luta, que tem vindo a ser perdida, entre “os do cinema” e “os da televisão” ou, como me dizia um amigo, entre “os bons” e “os maus”. Mas onde estão os “vilões”? Do meu ponto de vista, o vilão principal é a inconsciência de quem assobiou e assobia para o ar ante uma televisão onde o cinema não tem memória, onde a esmagadora maioria dos filmes que são “postos no ar” perpetua a serialização, a estandardização e a depauperação do imaginário cinematográfico (imaginário como história, como cultura, como linguagem). Nesta relação entre o que a televisão nos dá e o que a televisão nos pode e deve dar, a minha experiência de espectador dos quatro canais TVCine inclui alguns vislumbres de “qualquer coisa outra” por que vale a pena lutarmos para que uma ideia de serviço público se alastre aos outros canais. Reservo, então, os próximos parágrafos a três títulos exemplares não necessariamente do melhor cinema, mas seguramente exemplares enquanto actos de programação. São eles a boa droga de que nos têm privado, a saber: Eles Voltam (2012), Phil Spector (2013) e Wings (Asas, 1927). Os três filmes foram vistos no canal TVCine 2.
Um dos nossos leitores, o crítico de cinema brasileiro Marcelo Miranda, colocava há dias na nossa página de Facebook um comentário que me parece relevante partilhar aqui. Dizia ele que o filme que era objecto do artigo que nós divulgávamos tinha passado há pouco tempo, e cito, “numa rede pública (e aberta) de televisão no Brasil”. Nada de extraordinário não fosse o texto em questão ser a mais recente Constelação Fílmica de Luiz Soares Júnior e, portanto, o filme em causa era nem mais nem menos que Mudar de Vida (1966) de Paulo Rocha, um desses inexplicáveis “inéditos” não só na nossa televisão como no próprio mercado home cinema – aguarda-se há já bastante tempo a sua reposição em sala e edição em DVD pela Midas e Cinemateca Portuguesa. Sobre isto, recordo as palavras que escrevi na Civic TV sobre a forma como um acontecimento como a morte de Paulo Rocha passou ao largo da programação dos canais públicos e privados. Pois não temos Paulo Rocha, mas podíamos ter… sei lá, por exemplo, Glauber Rocha. Rocha por Rocha, sempre compensava. Mas não: o Brasil visita-nos na nossa televisão através de telenovelas, séries ou mini-séries, ao passo que o cinema fica “fora do ar”, marginalizado como todo o tipo de conteúdos que constitui a tal tão necessária “alternativa”. Dar de caras com um filme brasileiro é, assim, um pequeno acontecimento que não podia deixar de merecer o devido destaque neste espaço.
Nunca estreado nas salas comerciais portuguesas, Eles Voltam aparece num quadro de excepcionalidade dentro da programação do TVCine: este foi o vencedor em 2013 do prémio que o canal atribiu todos os anos no IndieLisboa. Um parêntesis: o próximo filme a ocupar este lugar será o referido na minha crónica anterior Les Apaches (2013). A primeira obra do brasileiro Marcelo Lordello é uma espécie de fábula contemporânea sobre a sociedade brasileira. Irmão e irmã são deixados na berma da estrada pelos seus pais. O tempo passa e os pais não voltam. O irmão deixa a sua irmã para procurar apoio e também não volta. É a partir deste insólito “abandono” da rapariga que a tal fábula se desenrola, baseada no caminho que esta vai percorrer por um território que lhe é desconhecido: o do Brasil pobre, o do Brasil “real”. Há qualquer coisa de Capuchinho Vermelho aqui, mas a capa (a pele branca “pálida”, a roupa de marca) e o cesto (o telemóvel de última geração que traz consigo, mas que é de pouca utilidade se não apanha rede naquele “lugar de ninguém”) ganham aqui a dimensão de comentário social (o choque com a realidade das famílias que a acolhem, que são de tez escura e vivem em casas pobremente construídas e mobiladas). O resultado desta fábula sociológica podia ser um equivalente chic-arty do típico moralismo de telenovela, segundo o qual “os ricos são maravilhosamente prósperos em dinheiro e coisas mas pobres em amor e alegria”. Lordello percebe o desafio que tem pela frente e vai conseguindo criar, aqui e ali, “distâncias seguras” com os lugares comuns da televisão. Ainda assim, sobretudo a partir do momento em que a princesinha regressa ao seu triste “castelo reluzente”, Eles Voltam acaba por não ser mais que isso: a verificação do combate de um cineasta independente contra os estereótipos da ficção televisiva brasileira. Entenda-se: ele combate, mas nunca chega a resolver completamente a equação moral, terminando mesmo derrotado por ela.
Em Novembro de 2013, João Lameira começava a sua crónica Em Série cautelosamente, já que se preparava para invadir o território desta Civic TV ao lançar-se no elogio a um telefilme de David Mamet sobre um famosíssimo produtor musical que, na presente data, cumpre pena de prisão pelo assassínio de uma actriz. Agora pilho eu a sua crónica para (re)dizer que Phil Spector é mais um magnífico filme de Mamet que se arrisca seriamente a passar despercebido. Para o cineasta norte-americano (também muito activo dramaturgo), tudo é um jogo e neste jogo não há “tempos mortos”, nem mesmo os segundos que o espectador demorará a ler aquele primeira cartão enganador que abre o filme com o aviso: este filme não é baseado em factos verídicos. Parece que Mamet quer dizer: não é este filme nem é verdadeiramente o próprio julgamento no qual ele se baseia. Para Mamet, o julgamento – este como qualquer outro, aliás – é um teatro de simulacros, um palco retórico onde o “fazer prova de…” é não mais que um acto performativo. O cinema intrínseco ao julgamento funciona como mecanismo para entrarmos no cinema de Mamet, cineasta fascinado desde a sua primeira e magnífica primeira obra por jogos de máscaras, bluffs que viram e reviram as expectativas do espectador enquanto este é alvejado por palavras lançadas pelas suas personagens-peões como dardos venenosos.
Nada é o que parece ser em Mamet, leia-se, nada pode ser “verídico” em Mamet, salvo a própria farsa. Os seus filmes, quase todos eles, são mais baseados no engano do que numa verdade por embrulhar. Aquele cartão, por isso, é mais um golpe do seu cinema, uma “carta na manga” que também iludirá o seu estatuto de telefilme produzido pela HBO. Ora, apesar da premissa “docudramática”, Mamet vai progressivamente debitando Mamet até não haver sinais do típico e SECAnte telefilme. E fará isso guiado por uma actriz fenomenal chamada Helen Mirren e esse poço de carisma chamado Al Pacino. Quando chegamos à longa, intensa e lúdica sequência do julgamento simulcral, Mamet atinge o seu “ponto de rebuçado” – a muito incisiva aparição “do nada” de Chiwetel Ejiofor, que protagoniza o filme anterior de Mamet, Redbelt (Redbelt – Código de Honra, 2008), sinaliza, qual bandeira no topo da montanha, o êxtase pós-escalada. Tudo até aí era uma longa lista de performances atrás da cortina do show final, que seria o julgamento propriamente dito – em State and Main (State & Main, 2000) era o filme propriamente dito -, mas que a Mamet interessa pouco, porque o big game estava antes na preparação da “defesa impossível” (a tal escalada) a cargo da advogada interpretada por Mirren, ela que padece, pormenor que também se expande ao longo do filme, tanto dos sintomas de pneumonia como dos sintomas de dúvida razoável. A força da interpretação de Mirren é tal que no fim senti-me com a garganta atingida e crises de tosse prestes a eclodir. Na certeza do seu brilhantismo controlado, o filme estalou em mim uma constipação de dúvidas, mais benignas que malignas, quanto à estranha personagem que realmente é Phil Spector. A farsa mametiana volta a acertar em cheio no seu alvo predilecto: o espectador. Atchim!
Se na nossa TV há pouco ou nenhum cinema brasileiro, se há poucos ou nenhuns telefilmes e há poucos ou nenhuns telefilmes de qualidade como este de Mamet, o que dizer de exemplares do grande cinema mudo? É outro dos traços da nossa televisão pública que não a diferencia da televisão privada, mas que a distingue pela negativa de outras televisões na Europa, como pude constatar noutro número desta crónica, a saber: raras são as vezes em que o espectador adulto é surpreendido, durante o zapping, com um filme mais velho do que ele mesmo e, no entanto – surpresa! -, o cinema é uma arte com mais de 100 anos de história. Pois no canal TVCine 2 tem passado, com alguma regularidade, uma obra-prima octogenária intitulada Wings, o monumental épico de guerra realizado por William A. Wellman que é conhecido por ter sido o primeiro filme da história a ser premiado com o Óscar de Melhor Filme. Se é possível resumir numa palavra o trabalho de Wellman, eu arriscaria talvez esta: ousadia. Ousadia na escala das cenas de guerra, pelos ares e por terra, mas também nas sequências onde a mensagem é “make bubbles, not war”. Pretendia-se que este filme fosse um tributo à coragem da Força Aérea norte-americana no palco da Primeira Guerra Mundial, mas, graças à mestria do seu realizador, acabou por ser muito mais do que um mero pedaço de propaganda bélica. Aliás, ainda mais impressionante que as perseguições pelos ares é a beleza estonteante dessa paisagem monumental feita de nuvens: os céus. São conhecidas as dores de cabeça que Wellman provocou na equipa de produção por causa da sua insistência em aguardar pelas configurações certas do céu. Dores de cabeça mais que justificadas: é que hoje o resultado dessas dispendiosas esperas tem a capacidade de pôr em segundo plano os tiros e as explosões.
O que ganha relevo em Wings é a dança das avionetas sobre o branco das nuvens, uma dança da morte que o cinema só voltou a coreografar assim em Krylya (Wings, 1966) de Larisa Shepitko. A ousadia não se ficava por aqui. No início, temos a história banal da disputa de dois homens, Jack e David (Buddy Rogers e Richard Arlen), pela mesma mulher. Quando a guerra rebenta, os dois homens são enviados para a frente de batalha. Antes de ascenderem aos céus infernais (chegam mesmo a ser infernais no filme ou nunca deixam de ser etéreos?), a amizade que os liga já suplantou a mais tradicional narrativa amorosa dos primeiros minutos. Nos dramáticos instantes finais, ensaia-se uma inversão trágica dessa ligação: no céu, mor de um estuporado equívoco, um ponto, Jack, persegue outro, mas no avião alemão não está o último “foe” da guerra, mas antes o seu primeiro “friend” David, que aquele julgara morto. A paixão atinge as mais altas alturas no momento em que Jack reconhece o aviador que abateu na convicção de que era um inimigo alemão. “C’est la guerre”, lamenta um soldado francês. Jack envolve David nos braços e, entre palavras de despedida, dá-lhe um beijo duradouro no rosto, ao lado da boca. Nas portas da morte, parece que Wellman procurava mostrar qualquer coisa entre aqueles dois homens que não pertencia apenas ao reino da amizade.
A mesma ousadia terá propiciado o meu “bloco” preferido do filme, que, por sinal, não se passa nos ares, mas em terra, mais especificamente em Paris. Numa festa com meninas e champagne, o nosso herói Jack deixa de ver direito: dos copos e das garrafas saem bolhas que se desfazem no ar. Também a menina que o acompanha começa, a certa altura, a libertar bolhas. O desejo etilizado passa, então, a significar-se deste modo – o desejo etilizado é um desejo estilizado. Quando a amada Mary (interpretada pela super-estrela da época, Clara Bow) entra em cena com o seu vestido de brilhantes a sua imagem vai fazer borbulhar ainda mais o campo de visão de Jack. Através de simples soluções visuais de animação, Wellman monta esta sequência maravilhosa sobre festa, embriaguez e sexo. Nela o poder erótico das imagens suplanta a finalidade narrativa – também as cenas de combate tinham essa qualidade de “borbulhar” nos céus uma poesia difícil de pôr em palavras. É por causa desse poder que Wings continua a ser hoje um espectáculo de muita sedução e muitas vertigens. Há nestas imagens qualquer coisa que, parafraseando um conhecido slogan publicitário, “dá asas” ao espectador. Ora, são essas mesmas asas que fazem voar alto um canal de cinema. Pode ser que ante a visão destes céus o espectador TVCine se descubra um dia a querer ver mais filmes de Wellman, no YouTube, em DVD ou na Cinemateca. Mais: talvez depois destes céus possa vir a reclamar por mais Cinema, com um “c” maiúsculo erguido em alturas, e menos “tele-lixo tuga” sancionado por júris da SECA. Escrevo “talvez”, mas penso “de certezinha”. Penso mal?