Lembrem-se dos primeiros dias, quando depois de terem conhecido a iluminação, vocês sofreram um grande assalto de pesares, ora expostos publicamente, ora obrigados a se tornarem solidários dos que o são…e aceitaram com alegria a espoliação de vossos bens, sabendo que haveríeis de ter um bem melhor e mais estável (uparxin).
in Epístolas pastorais de São Paulo
A representação recalcada no inconsciente permanece capaz de ação; ela, portanto, necessariamente conservou o seu investimento.
in O recalque de Sigmund Freud
A guerra, veja bem Bardamu, pela forma incomparável com que ela nos dá a conhecer o sistema nervoso, age à maneira de um formidável revelador (revelateur) do espírito humano.
in Viagem ao fim da noite de Louis-Ferdinand Céline
“Não se preocupe. Você só não volta a ver aquele que morreu; mas os vivos sempre voltam”. Testemunho do cinema como arte testamentária e prova de resistência da Memória às intempéries da História, Cabra marcado para morrer (1984) é um filme cujo registro documental é substancialmente assombrado, espoliado e finalmente submergido pelas vicissitudes do inventário historicista e do romanceiro familiar: o presente aqui nunca se dá integramente, nunca se deixa resgatar e formular em sua plenitude, pois é sempre apreendido como vestígio ou estilhaço da grande História, cuja trajetória implacável acabou por alienar aquela família de seus coloquiais, afetivos, present tense contos. À temporalidade sincrônica e sucessiva da narrativa teleologicamente orientada, substitui-se uma temporalidade intempestiva, inatual, em que o presente só existe como efeito, infinitamente prismático (o collage de vozes, discursos, diegeses do filme), do futuro: Cabra marcado para morrer, o filme de 1984, relendo o Cabra marcado de 1964.
A grande aposta do filme de Coutinho consiste justamente em assumir em seu próprio corpo estrutural esta irreconciliação dialética de que o itinerário da família de Elizabeth Teixeira forneceu a ilustração dolorosamente agônica, ao longo dos anos: fratura, cisão, Diferença radical. Elizabeth e família jamais puderam encontrar-se a si mesmos, reconhecer ao fim do caminho o Princípio (reconhecer-se); foram alijados de sua própria experiência, extraviados de si. Que melhor e mais justo (em ambas as dimensões: como justesse de ton e restituição cartograficamente precisa da experiência) testemunho destas vidas diferidas pela História senão um filme in progress, feito de alternâncias, precipitações e recuos em relação àquilo que narra? Esta urna funerária de estilhaços tenta traduzir uma idéia do Brasil contemporâneo como experiência do exílio radical: se o destino dos filhos de Elizabeth descreveu, ao longo dos anos e das fronteiras geográficas, uma tormentosa Diáspora, é preciso estar à altura desta história cindida, postergada – eles só irão reconstituir-se parcialmente como família a partir da reportagem investigativa de Coutinho, no início dos anos 80: um décalage essencial “de si para si”, um déficit cognitivo e mnemônico para com a própria história só passa a ser relativamente preenchido a partir da retomada arqueológica (genealógica) daquele filme inacabado de 1964. Sob a descontinuidade aparente de seu dispositivo polifônico,
Cabra marcado para morrer se funda sobre um partis pris mimético clássico, de que o cinema, como arte de reprodutibilidade técnica aperfeiçoada, é o depositário maior: pois como traduzir os revezes e acidentes que o objeto carrega em sua trajetória (este décalage em relação à própria narrativa, esta “partícula apassivadora” de alienação encravada no seio do pronome pessoal) senão acumpliciando-se formalmente com ele, manifestando as suas anfractuosidades, os seus devires irregulares? o collage de depoimentos, fragmentos “recém-filmados de ficção” (1984) e dos poucos planos que restaram do Cabra marcado originário compõem um puzzle que, à semelhança do exílio experimentado pelos personagens, jamais poderá aspirar à unidade reconciliada consigo mesma (o filme poderia fazê-lo, mas não nos mostra o reencontro da família; permanecemos, como eles, “ a caminho”). Cabra é narrado sob a perspectiva de um pronome impossível, indeterminado, errático, refratado entre vários discursos: à dispersão existencial sofrida pela família, corresponde esta heteróclita síntese de modos de enunciação, a saber jamais inteiramente “acabada”, fechada (sintética).
Uma hipótese ociosa: Em tempos de guerra, seria possível representar, como um dia Goethe, os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister como um itinerário ordenado, sucessivo e unitário, de que os encontros consecutivos com o Outro (a companhia de teatro, a Sociedade da Torre) configuram as etapas e representam as balizas de um conhecimento profundamente dialético de si mesmo, um Bildungsroman? Provavelmente não, pois faltariam a estabilidade e a homogeneidade de fundo para que se pudesse perceber as modificações no caráter do personagem, detectar as inflexões que o tempo e o Outro acabariam por infligir à sua consciência: para a percepção da Diferença, é indispensável uma ordem de continuidade, como o fundo à figura. Quando tudo ao redor vacila, e por fim naufraga, como podemos nos fixar em um objeto determinado – a rigor, defini-lo como objeto, ou pelo menos considerá-lo segundo o prisma metafísico de definição de objeto? “A primeira via de interrogação refere-se ao ser, e é impossível que este não o seja. É o caminho da certeza, pois esta acompanha o da verdade”. (Parmênides, Da Natureza).
Esta certeza, esta unidade, este arché e este telos (Princípio, Fins) faltam completamente à trajetória de Elizabeth e sua família; subtraídos uns aos Outros, privados de uma Origem (não sabem o que aconteceu à mãe, o que lhes aconteceu), exilados em sua própria terra e destino. É uma desterritorialização política e existencial que a estrutura de colcha de retalhos do filme evoca (mas também tenta esculpir, tornar visível no esqueleto de sua construção). Cabra marcado é uma crônica familiar projetada contra o fundo da Guerra, e portanto a sua relação com a Memória possui o mesmo caráter problemático característico de indivíduos ou comunidades colocadas sob o império do trauma.
O cinema é uma arte materialista (pelo menos o cinema no qual acredito, e crítica é antes de tudo valoração: o meu cinema). A restituição desta memória, portanto, não deve idealizar este legado – figurar como uniforme e contínua uma experiência a que só tivemos um acesso descontínuo e lacunar. Freud nos ensinou que o sintoma é um significante, privilegiado meio de ingresso à história secreta do indivíduo; o fantasma conta-nos toda a verdade, só que à sua maneira: críptica, enviesada. Se a afasia e a amnésia assombram esta H(h)istória, é necessariamente um discurso heteróclito e heterogêneo que a deve narrar, entrecortado de suspensões e dissonâncias, clivado e fracionário: entre o comentário, a reportagem, a auto-encenação psicodramática (a Elizabeth de 1984 reencontrando, no Brasil pós-Anistia, a Elizabeth de 64).
A reconstituição filmada de 1984 (em que a desenraizada Elizabeth de 60 anos “presentifica” a mulher de 30 anos de 1964) é, como o Rosebud de Kane ou as marcas deixadas pelo trenó em Spellbound (A Casa Encantada, 1946), a chave de acesso a uma espécie de refoulé, sentimental e histórico: o refoulé de uma memória, o luto por uma violação a que o Brasil e a família não tiveram direito em seu devido tempo. O Brasil oficial sepultou um clandestino na cozinha, interceptou suas garrafas lançadas ao mar (o filme), dissipou a posteridade de seus rastros, como D. Maria I aos traidores: “Que a terra onde foi edificada sua casa seja salgada, para que lá nada frutifique”. A perquirição arqueológica é o instrumento, a genealogia o fim, mas tudo se implica e relança em uma operação de reciclagem geológica do passado: é preciso escavar para encontrar o veio, ajustar o diapasão, modular o tempo onde a experiência conheceu uma Primeira vez; mas esta Primeira vez talvez consista na própria marcha do voltar-se para trás , de pôr-se a caminho. Talvez apenas e finalmente agora ela aconteça: haveria aliás para o cinema moderno um outro destino senão consagrar-se a esta inspeção sempre diferida da experiência-trabalho necessariamente a posteriori de ressignificação do luto? “A reprodução, aliás, não é nada além de uma repetição. (…) Um filme que não se situa em função do centro, mas de uma ‘sequência’ (suite). Sequência de palavras para tentar melhor explicar uma cena mal vista” (Frédéric Strauss sobre Número dois). É por Le mépris (O Desprezo, 1963) que devemos começar se quisermos entender Viaggio in Italia (Viagem em Itália, 1954); é a partir do Cabra de 1984 que o Cabra de 1964 começa a existir: o movimento genealógico compromete-se necessariamente com um trabalho de cicatrização de uma Primeira vez demasiado traumática, uma revelação excessivamente violenta em sua radical alteridade para poder ter sido absorvida pela experiência contemporânea (ao evento).
Lembremo-nos aí do significado de revelateur em fotografia, e portanto da inestimável relevância do tempo como vetor de advento da significação, mas também como o meio (de cultura) de sublimação do trauma. “A retina comporta-se como (…) uma placa sensível, cujo único revelateur seria a consciência” (Charles Lalo, Estética). Neste sentido, a encenação “psicodramática” dos eventos de 1964 pela Elizabeth de 1984 torna-se uma estratégia paradigmática para se compreender o movimento geral do filme: a vivência torna-se unicamente presente, finalmente advinda à consciência, por intercessão desta mediação, deste filme no “futuro do pretérito”- ela não seria nada senão o efeito retrospectivo desta inscrição segunda, cuja função reside em ativar, por meio da mise en scène (preto e branco contrastado, découpage claro, variado e articulado em seu storyboard de encenação ritualística), o numen de uma história precisamente demarcada em sua cronologia, mas fantasmagórica em termos de um reconhecimento existencial e afetivo. Não por acaso, o “último ato” do filme consiste em recuar (da História do Golpe de 64 e do relato de confecção do filme de 1964) e retomar para a família os seus direitos de Nomos e de Logos, de escritura de uma Origem evanescente, cujos contornos começam enfim a se debuxar: os últimos depoimentos com os filhos de Elizabeth. À medida em que o filme vai se embrenhando na história dos personagens, esta vai perdendo suas características de crônica ou memorial histórico, vai sendo intimada a revelar suas fissuras e desvãos afetivos. A épica vai sendo infiltrada pelo romanesco, a grande História afetada (afetiva) pela pequena: e tudo termina onde principiou. Se a reencenação do filme de 1984 catalisa o fantasma do filme natimorto de 1964, são os closes nas fotos das crianças do casal que nos servem de fio-condutor para esta interlocução entre a História do país e a intimidade da família.
Acho que é Jean-Paul Fargier quem, em um texto rico em associações genealógicas sobre Guitry, televisão, Godard e Adeus Philippine (O teatro do instante, Cahiers du cinéma, novembro de 1990), inspira-nos: “ A TV é o ‘ao vivo’. (…) A televisão é o fim da montagem. A arte da montagem no cinema consiste em grande parte a nos fazer esquecer que passamos de um plano para outro. A maior descontinuidade da filmagem se funde em uma harmoniosa continuidade do olhar. Na televisão, com várias câmeras filmando em continuidade uma cena, vê-se paradoxalmente todos os raccords. Nenhum découpage pode evitar que o espectador perceba que o que ele vê aparece por intermédio da passagem de uma câmera a outra. Na televisão, não existe montagem, só há a filmagem do filme. (…) é mesmo a ausência de todo raccord que preside à colocação em imagens ( mise en image) televisual”.
Em um certo momento, um rapaz que a reportagem interroga acerca do paradeiro de um dos filmes questiona o cineasta: “Vocês são de onde? É da Globo”. Ao que Coutinho retruca: “Não. É uma reportagem, mas não é TV não; é cinema”. Cabra marcado para morrer é cinema (moderno) em sua acepção mais orgânica, seguindo aqui a lição de Fargier: todos os raccords se dão a ver, as filiações a inferir, a continuidade do romanceiro familiar a sismografar sob a trajetória dos estilhaços mortíferos. É neste sentido que a ideologia de compromisso da televisão manifesta inapelavelmente seus trunfos: a tv pretende elidir (ou sobretudo: dar a impressão de ) toda e qualquer mediação, de trabalho da temporalidade sobre o sentido; ela se quer transparente, direta, plana, sem rodeios. O cinema sabe que entre a representação e o Real existe um longo caminho a percorrer – e que talvez o Real, este fantasma (Lacan), jamais seja alcançado. Daí as interrupções, os extravios, as retomadas como norma (a evidência do raccord como sutura de montagem, a irredutível diferença entre o documental e a mise en scène das sequências do filme de 1984): o cinema assume a diferença (o diferir) como vetor inventivo do Real, e portanto a montagem como sua indispensável mediação. Não é o ‘ao vivo’, o presente hebdomadário do registro televisivo: aqui, agora, destacado de tudo (contexto, História, significação). Uma outra temporalidade se reivindica aqui, uma outra cognição e fenomenologia: no cinema, a Primeira vez pode ser às vezes muito antiga, e desaguar no arquetípico e no imemorial.
Eduardo Coutinho merecerá uma retrospectiva na Mostra de Cinema da América Latina, que decorrerá entre 10 e 14 de Dezembro em Lisboa e entre 30 de Janeiro e 1 de Fevereiro no Porto. Cabra marcado para morrer é estreado em Portugal no dia 3 de Dezembro pela mão da Nitrato Filmes.