Uma semana se passou e nos entremeios dos afazeres de quem tem que tratar dos seus assuntos o cinema surgiu como respiração e ritmo – por dar um novo fôlego ao dia e por imprimir novo impulso ao girar das coisas. O cinema como rotina; um filme por dia; o cinema como oração nocturna antes do adormecer; filmes-pausa: estas são algumas das expressões que podem enquadrar a minha relação com a programação deste ano do Doclisboa 2014. Foi portanto uma cobertura tranquila e pausada, onde nem o cinema se sobrepôs à vida nem ela a ele. Reacção oposta à típica azáfama que um compêndio de dezenas de filmes naturalmente gera. Por isso mesmo, nem sequer chego à dezena. 9 filmes espalhados por quase todas as secções que espero serem suficientes para lançarem um perspectiva (ainda que pontilhista) do que foi este festival.
Snakeskin (2014) de Daniel Hui
Existe uma diferença de princípio entre esquerda e direita na forma de ver e compreender o mundo. A tal dicotomia não é também imune a crítica de cinema. Uma, mais de direita – se é que os termos se aplicam de igual forma fora do reino da política -, prefere olhar para os objectos sem se nunca olvidar que existe neles uma linha narrativa (se não de outra natureza) bem definida que se deve seguir – e que esse processo devolverá ao filme a sua intenção original. Outra, mais de esquerda, deleita-se a não olhar para os objectos ou a ficar pelo espectáculo que este gera nos sentidos (e nos interiores), aceita sem pruridos as incongruências, os desvios, os enganos e os passos em falso por crer que eles revelam a beleza acidental do processo criativo – e que estar atento a eles é a melhor forma de amar as obras. Não é errado afirmar que cada uma destas visões é pior que a anterior. Ambas devem dar-se de beber e ambas têm a ganhar da seguinte. Neste sentido, parece-me que Snakeskin de Daniel Hui é um filme que tenta (e é, diria, moderadamente bem sucedido) o melhor destas duas visões e que uma análise crítica do seu filme que se dedique apenas a um desses olhares peca por claudicância.
Há pois dois vectores por onde o mais recente filme de Daniel Hui se rege: a problemática da memória na cidade(-nação) de Singapura – como já o era Eclipses (2013), com que o realizador venceu o prémio Novo Talento deste festival, na sua relação com a memória do avô de uma cidade que corre na mudança e de onde também origina o 16mm esbatido – e dos seus mitos criadores, e das suas histórias de múltiplas verdades e perspectivas sobre um passado histórico que já não passa de balada para adormecer; as formas heteróclitas das novas narrativas cinematográficas e a estética da colagem, da fractura da linha temporal e dos registos ficcionais (ou documentais) e das próprias linhas internas com que se cosem os filmes. Por isso mesmo Snakeskin é um objecto de onde as noções históricas, a sensação do passado e os referidos mitos criadores em vez de nos serem apresentados são apenas sentidos (ou talvez melhor pressentidos…) a partir da esquadria em rede onde pousam uma séries de depoimentos verdadeiros ou nem por isso encenados ou nem tanto – podemos olhar para os últimos trabalhos de João Pedro Rodrigues e Guerra da Mata, ou para Nicolas Provost, na forma como filmam as histórias que as cidades lhes contam e o cinema que elas trazem consigo para encontrarmos alguma forma de filiação cinematográfica. A par disso, tudo vem envolto por uma voz de mulher que procura num filme de Bollywood a sua mãe conservadora religiosa e por uma ideia de cinema de género de ficção científica. Através destas duas soluções o filme aponta sempre para o passado, só que pelo cinema aponta para um que nos antecede e pelo sci-fi para aquele que agora decorre. A película arde, o tempo tudo queima e o passado esquece-se: esta é a tese de Hui.
Mes Sept Lieux (My Seven Places, 2013) de Boris Lehman
A imagem acima funciona como resumo super-hiper-mega curto (ou como signo auto-interpretativo) das mais de cinco horas de duração de Mes Sept Lieux, o mais recente tomo da serie Babel – o quinto (e ao qual se devem seguir mais três, salvo erro, num total superior a trinta horas de projecção) onde Boris Lehman vai vivendo o seu cinema e filmando a sua vida, num gesto contínuo e auto-propulsionado onde as fronteiras entre um e outro se fundem e as linhas que dividem a rotina da encenação se esbatem. Mais de cinco horas de vida para mais de uma década de cinema, pensado bem até soube a pouco… É isso que verdadeiramente nos conquista no cinema de Lehman, a forma como para ele filmar é sempre um projecto a longuíssimo prazo, que envolve uma dedicação de vida e que ao contrário do resto do mundo não é a agenda que se deve moldar às rodagens são as rodagens que se devem moldar à sua vida – já que uma e outra se confundem. Este viver para o cinema é uma prova de amor que raramente se encontra e cada uma das ficções auto-cine-biográficas do realizador belga é mais um exemplo desse mesmo amor.
Mas dizia que a imagem acima funciona como a faísca que acende a leitura crítica do filme. Trata-se de uma fotografia tirada num dos aniversários do realizador onde cada um dos convidados enverga uma máscara com a cara do próprio Boris Lehman. Há portanto duas leituras que daqui podem surgir e provavelmente ambas correctas. A primeira passa por um gesto narcísco que o trabalho de Lehman sempre contém, isto é, o seu cinema é sempre sobre si mesmo, mesmo quando filma os que o rodeiam. Mais, sempre que filma alguém, Lehman está a enquadrar-se numa paisagem de amizades que o envolve. Por outro lado, podemos olhar para esse fotograma e lembrar o restaurante do subconsciente de John Malkovich em Being John Malkovich (Quem quer ser John Malkovich?, 1999) de Charlie Kaufman (ah, minto de Spike Jonze) onde todos os presentes eram o próprio actor – que já agora também fazia de si mesmo. Se nessa cena também se falava do egocentrismo do actor, a verdade é que se passa a um outro nível, já que literalmente se descia às profundezas (intermédias?) da psique. Isto para dizer que talvez, para toda a gente, os outros não sejam (nunca) mais do que versões externas de nós mesmos, que projectemos sempre nos outros aquilo que somos, que vemos, que pensamos… Isto para dizer que Boris Lehman em Mes Sept Lieux tem a coragem de olhar para si e entender essa natureza que está quase sempre presente em nós mas que tentamos (quase) sempre esconder. Aqui não só a admite como a expõe em motivos de festa. Ah, e nem falei desse afundanço na lama para recuperar os seus filmes perdidos, nem desse momento cândido em que a sua co-locatária planta uma trepadeira (que já sabemos ter sido arrancada), nem de uma série de pequenos instantes, pequenas teorias (das caixas, dos sapatos, dos casacos… os objectos para Lehman são também uma parte da sua vida – e, como as pessoasm explicam-no e contextualizam-no) e pequenos gestos que nos envolvem.
Motu Maeva (2014) de Maureen Fazendeiro
Motu Maeva foi a curta-metragem vencedora da competição nacional no Doclisboa 2014. Realizada pela estreante Maureen Fazendeiro, é um filme que combina imagens de arquivo com um depoimento gravado para contar a história de uma mulher, Sonja, que vive numa homónima ilha no Haiti. As imagens (em película 16 mm) pertencem ao espólio de Michel Ondré, que percebemos (ou somos levados a perceber?) ser do marido de Sonja: um misto de documentação etnográfica, filme turístico e olhar melancólico sobre a natureza – este último aspecto leva-me a duvidar da origem antiga do material aliás, porque descreve dois períodos demasiado distintos da vida da protagonista para poder preservar tão certeiramente o mesmo tom do registo (mas essa é com certeza uma questão secundária). No entanto, já não será tão secundária a opção estilística que se prende na película e na utilização do arquivo. Cada vez mais esta escolha se vem repetindo nos filmes deste século numa espécie de feticshização da película estreita e da imagem rugosa e granulada que só esses suportes conservam (uma espécie de regresso hipster às super8 como vai acontecendo com a fotografia analógica). Acaba por ser uma saída fácil que garante uma marca artística irresistível – e o mesmo já se começa a fazer sentir com o regresso ao vídeo -, uma espécie de caução cultural que nada prova em si e que não raras vezes é usada como fim e não apenas como meio. Talvez esse não seja exactamente o caso de Motu Maeva mas não deixa de ser sintomático que dos cinco títulos na competição nacional de curtas metragens do festival também Metáfora ou a Tristeza virada do Avesso e Um Filme Perdido seguissem um percurso semelhante – e se nos alargássemos a outras secções e a outros festivais os exemplos aumentariam exponencialmente.
Feitas as considerações sobre modas e demais recorrências fílmicas em tempos recentes olhemos para o filme. Motu Maeva começa na água. Não sabemos se vem da água como vindo das profundezas (ou das trevas) ou se vem da água que nem recém-nascido acabado de se libertar do líquido amniótico. Talvez um pouco dos dois. É que se o olhar da câmara parece simultaneamente inocente e espantado com a natureza e com as coisas que nela vai encontrado também é verdade que a narração de Sonja nos fala da guerra na Alemanha e na Bélgica, nos fala de uma mãe sem amor para dar (que detestava a filha por esta lhe fazer lembrar o pai e por ser demasiado bela – “não tarda até seres violada pelos soldados”). E dizia que talvez fosse um pouco dos dois porque apesar de todo o horror por que a personagem de Sonja passou agora, no final da vida pode encher-se de verdura equatorial, de águas e chuvadas abundantes, de gente simples e agarrada a terra, de dança e de fogo de artifício. E talvez por aqui se possa justificar o recurso à película, por esta se degradar com o tempo como também acontece com as memórias – ficando sempre mais doce com o passar dos anos.