Ao contrário de Taken (Busca Implacável, 2008) onde o protagonista tem que se salvar a filha das garras de um malvado, ou das pretensas motivações sócio-políticas de The Expendables (Os Mercenários, 2010) ou dos Rambos, para John Wick, o protagonista homónimo, a carnificina (ele sozinho mata 80 marmanjos – e creio que nenhuma marmanja – em pouco mais de 100 minutos de filme) inicia-se porque lhe mataram o cão e lhe roubaram o carro. Convenhamos que não será coisa de somenos, um carro daqueles vale uma pipa de massa e o cão, além da vida que se extinguiu, representava para o protagonista a estima da sua mulher falecida. De qualquer forma não podemos dizer que as motivações estejam na mesma ordem de grandeza – e os protectores da vida animal vão prontamente declarar-me morto por ter escrito tal infâmia. Mais ainda, fechado o arco narrativo, John Wick entra num abrigo de cães abandonados e arranja, sem grande demora, um novo companheiro de quatro patas. Daqui surgem-me três possíveis visões sobre as intenções dos realizadores, David Leitch e Chad Stahelski.
Intenção primeira: John Wick é um filme sobre o desprendimento do valor afectivo das possessões materiais (animadas ou inanimadas). Ou seja, embora John tenha ficado sem os símbolos da afectividade marital, depois de um prolongado acto intermédio de tiroteios e explosões – uma catarse emocional e a expiação de um luto -, essa representação deixa de ter importância já que a memória permanece e o simbolismo pode sempre ser transferido para outro bem, ou no nosso caso para outro animal. Neste sentido podemos olhar para Wick como um homem em transição (ou em regressão, já lá iremos…). Transição de um mundo onde habitava uma casa típica, com um mulher típica, num qualquer subúrbio típico, comendo cereais de pequeno almoço típicos e acordando com um típico despertador às típicas horas madrugadoras para um mundo onde já nada disso importa porque já nada do que é rotineiro ou granjeável por meios monetários vale o que seja – um mundo onde só o chumbo da bala e o ouro das moedas marcam presença, literalmente! Há portanto qualquer coisa de profeta iluminado em Keanu Reeves que se libertou de todos os grilhões sociais e capitalistas já não tendo nada a perder, e por isso mesmo tudo o que vier é um ganho, até uma naifada no estômago… [A esse respeito repare-se num enquadramento que dura pouquíssimos segundos onde Reeves surge com uma auréola encarnada sobre a cabeça (na discoteca Red Circle…), qual anjo exterminador – uma espécie de padre de Playtime (Play Time – Vida Moderna, 1967) versão hardcore]
Intenção segunda: John Wick é um filme niilista que despreza o valor da vida humana, para o qual a carne é um alvo e um gatilho o play button de selvajaria sanguinária de pipoca. Isto é, a matança que John Wick propela é acesa não na base da simples vingança – o que já seria suficientemente mau por si… – mas na total ausência de motivo outro que não o luto. Portanto Wick mata para esquecer a morte da mulher (e do cão de ambos) da mesma forma que outras pessoas escrevem um livro, fazem jogging ou simplesmente vão ao cinema ver comédias românticas e chorar desalmadamente. Neste sentido ambos os realizadores são certamente responsáveis (em grande medida), já que embora seja esta a estreia de ambos na realização, são já há vários anos duplos ou coordenadores de duplos – em particular em filmes como Matrix (1999)… Portanto não é com certeza abuso de leitura juntar os dados e supor que as magníficas coreografias de tiroteio (em que o head shot funciona quase como elemento rítmico) são nada mais do que demonstrações de virtuosismo e portanto completamente gratuitas.
Intenção terceira: John Wick é o resultado cinematográfico da absorção da linguagem visual (existe tal coisa?) dos vídeo jogos first person shooter (ainda que o recurso a planos subjectivos seja raro – se é que acontece se quer… – ao contrário de várias produções recentes de larga escala como por exemplo The Amazing Spiderman (O Fantástico Homem-Aranha, 2012). E aqui não me refiro necessariamente à construção narrativa em níveis progressivamente mais difíceis a terminar num boss malvado (e numa batalha à chuva), não, o que me refiro é ao modo como uma cena de tiroteio passou a ser encarada menos como um espaço de tensão (como tradicionalmente o western nos habituou e que os italianos levaram ao extremo e que o Tarantino tanto gosta de elevar ao paroximso) e mais pelas suas possibilidades de bailado contemporâneo. Essas sinfonias de pólvora para duas mãos estão hoje cada vez mais presentes no cinema e julgo originarem das consolas caseiras e seus games. Perde-se em suspensão e apertos de coração, ganha-se em maravilhamento e fogo-de-artifício sonoro e visual (que prontamente se esgota).