Apesar de um discurso algo céptico ao longo dos anos, que se prende com os apoios financeiros ao festival, Paulo Branco, o director do Lisbon and Estoril Film Festival (LEFFest), não cessa de aumentar a parada, de ano para ano. Sob o signo da multidisciplinaridade, cruzando cinema, arte, sociedade, investigação e política, este é um festival extravagante na dimensão e extravagante no conteúdo. Apesar dessa extravagância, a verdade é que, passo a passo, o LEFFest vai cimentando uma identidade própria. Este ano um tema grande cobre, como um guarda-chuva, uma boa parte dessa diversidade. Para falar sobre a sociedade da transparência e da vigilância, são chamados ao espaço do festival nomes tão diversos como Julian Assange (por videoconferência, seguramente), Noam Chomsky (entrevista pré-gravada projectada), Edgar Morin, Nan Goldin, Rui Tavares e José Pacheco Pereira. Ao lado do debate, que terá lugar no CCB, projecta-se um ciclo de cinema debaixo de um mesmo título, “Ficção e Realidade: Para Além do Big Brother”, onde se poderá ver ou rever filmes de David Cronenberg, Peter Weir, Steven Spielberg, Francis Ford Coppola, entre outros. É um tema actual, interpelador das nossas angústias e desejos contemporâneos e, contudo, nunca sairemos totalmente do território que nos interessa: o cinema. Este é o exemplo mais coeso do que se pode apelidar de boa programação de cinema. Mas há mais, muito mais nesta edição do LEFFest, que começa no dia 7 e termina no dia 16 de Novembro. Façamos como Assange e abramos o jogo.
É raro apetecer-me começar uma antevisão de um festival com os filmes da competição. Ora, neste LEFFest algumas das sessões mais esperadas por mim concorrem para o prémio Melhor Filme ou o prémio especial João Bénard da Costa. (O À pala de Walsh está a oferecer bilhetes para estas sessões na sua página de Facebook.) Nesta competição, com um valor muito acima das de anos anteriores, destaco os mais recentes filmes de Hong Sang-soo, dos irmãos Safdie, de Lisandro Alonso e de Christian Petzold. História típica em Hong em torno de um desencontro amoroso, Hill of Freedom (2014) promete ser uma investigação sobre o íntimo de duas personagens comunicando à distância por um monte de cartas (sim, ainda se escrevem cartas no cinema de Hong), cuja sucessão de leitura, acidentalmente não cronológica, acompanhará o desenrolar do filme. Altas expectativas para estas “leituras”. Outro regresso muito esperado por estas bandas é o dos irmãos Safdie, cinco anos depois da sua anterior longa-metragem de ficção, que mereceu três títulos diferentes: Daddy Longlegs, Lenny and the Kids ou, o título de distribuição em Portugal, Go Get Some Rosemary (Vão-me Buscar Alecrim, 2009). Heaven Knows What (2014) é uma história que nos devolve às ruas de Nova Iorque, mas prometendo um registo mais duro que Go Get Some Rosemary, já que se aí o papá era “o herói” aqui o papá passará ser o dealer. História de uma vida a dois sobre droga e amor maníaco que promete acentuar o lado hard, até ver mais implícito do que explícito, na obra dos irmãos Safdie.
Jauja foi descrito pelo próprio Lisandro Alonso ao À pala de Walsh como um turning point na sua carreira, uma espécie de desvio em relação à linearidade pura que havia desenvolvido desde La libertad (2001) até Liverpool (2008). O facto de trabalhar com um actor profissional e uma big star como é Viggo Mortensen sinaliza à superfície esse desejo de mudança. Pelas informações que me chegam de quem já viu o filme parece que pode haver em Jauja qualquer coisa de “western alucinado monte hellmaniano”, mas pelo trailer e sinopse vêm-me mais ao espírito outras referências, sobretudo a respiração e os tempos mitologizados de Carlos Reygadas e Albert Serra. Aposta mais segura, pois as reacções têm sido extremamente positivas, será Phoenix (2014), o mais recente filme de Christian Petzold, cineasta alemão que tem em Nina Hoss, actriz convidada do festival, a sua grande musa. E este parece ser o seu maior desafio, animando das cinzas a memória do holocausto, mas talvez, como acontecia em Barbara (2012), tendo a História como pano de fundo para explorar a relação de uma mulher com um homem – história de uma espécie de “torcedura sentimental” que promete cravar-se fundo na memória do espectador.
Fora da competição, temos um double bill imprescindível para quem segue com interesse a evolução da obra de Abel Ferrara. O que Welcome to New York (2014) e Pasolini (2014) têm em comum será, provavelmente, objecto de inúmeras discussões. Afinal, não é todos os anos que o realizador de Bad Lieutenant (Polícia Sem Lei, 1992) lança duas obras e, originalidade maior, duas obras baseadas em figuras reais, de carne (muita carne num dos casos) e osso (muito osso no outro). Será interessante ver como dialoga a carne de Dominique Strauss-Kahn – e o seu crime, de pecado ou de justiça? – com “o empirismo herege” difícil de roer de Pasolini. Ou como Ferrara “usa” estas duas figuras para falar de problemas que o inquietam ou para desmontar por dentro, como um terrorista de si mesmo, o seu próprio cinema. Espero muito de cada um destes filmes, mas ainda mais desse potencial diálogo que pode significar, também para Ferrara – já falámos desse efeito em Lisandro Alonso -, uma mudança de capítulo no conjunto da sua obra. Um cineasta que se vira bem de frente para os seus próprios fantasmas é David Cronenberg. Na realidade, vira o bisturi da carne humana para a pele fina da estrelada – como o céu ou como o ovo – capital do cinema: Hollywood.
Maps to the Stars (2014) alinha-se, desde já, na constelação de filmes que fazem Hollywood ver-se ao espelho como a bruxa má de A Bela Adormecida. Paul Schrader com The Canyons (Vale do Pecado, 2013), filme que foi directo para DVD em Portugal este ano, e Terrence Malick no anunciado Knight of Cups são dois outros realizadores que têm estado particularmente sensíveis à duvidosa ética e modus vivendi do showbiz. Como o show é intrinsecamente perverso em Cronenberg, julgo que o cineasta canadiano vogará por estes meandros como peixe na água. A reacção da crítica, contudo, não tem sido muito animadora. Outro cabeça de cartaz, se calhar o maior entre estes que aqui expus, é a Palma de Ouro do último festival de Cannes: Kis uykusu (Sono de Inverno, 2014). Filme com mais de três horas que, tem-se lido, irá elevar a arte de Nuri Bilge Ceylan à sua expressão máxima. O ambiente audiovisual trabalhado até ao último floco de neve oferece garantias de experiência estética total. Se o espectador não quer tomar riscos, então aqui está a aposta mais segura: dificilmente não será o maior filme de Ceylan, o que já me deixaria satisfeito.
Um dos filmes-sensação do último Festival de Veneza, onde ganhou o prémio de Melhor Realizador, Belye nochi pochtalona Alekseya Tryapisyna (The Postman’s White Nights, 2014) poderá ser o início de uma segunda vida para o cineasta russo Andrey Konchalovskiy, cuja popularidade atingiu os píncaros quando, trabalhando no mainstream norte-americano, assinou o filme de acção com Sylvester Stallone e Kurt Russell Tango & Cash (1989). Anos antes, realizou o clássico de culto Runaway Train (Comboio em Fuga, 1985) com Jon Voight, filme que envelheceu bastante bem. Todavia, a acção agora é outra. Aliás, o que impressiona mais no seu trailer é precisamente a inacção de tudo, uma linguagem de silêncios e mistério que parece esconder o que esperamos ser um grande filme. E já que falámos aqui de “novos começos”, pois bem: Konchalovskiy propõe uma reinvenção do seu cinema a partir de um projecto que demorou vários anos a realizar. Já sabe: Xavier Dollan é o enfant terrible do momento e quer chamar a atenção. Mommy (2014), filme que deu muito que falar no último festival de Cannes – onde não ganhou a Palma por uma unha negra – afirma-se logo pelo uso do formato 1:1, próprio dos pequenos vídeos de telemóvel que se multiplicam viralmente pelas redes sociais. O conteúdo, pelo que pude ler, é candidato forte a “drama feel good” do ano. Não encontrará nada mais contemporâneo e “empático” com os nossos tempos que isto. Eu mantenho uma reservada distância, mas também alguma curiosidade (nem que seja voyeur).
Nem dentro nem fora da competição temos a retrospectiva dedicada a Philippe Garrel, um dos acontecimentos dentro do festival que é proibido perder, sobretudo porque o realizador francês estará em Lisboa para apresentar algumas dessas sessões. De um lado, os mestres veteranos, do outro lado, os iniciantes. Para os portugueses que não puderam ver O Som ao Redor (2012), poderá ser interessante ver esta como as outras obras do brasileiro Kleber Mendonça Filho [sobretudo Crítico (2008), documentário que problematiza a relação entre “artista e observador, criador e crítico”, logo, um filme propiciador de auto-reflexão junto de quem escreve sobre cinema]. Também em Lisboa estará Wes Anderson para falar de cinema, não tanto o seu, mas o de outros, como Clarence Brown e Vittorio De Sica. Wes Anderson, o programador, escolhe Sadie McKee (Uma Mulher Que Venceu, 1934) e L’oro di Napoli (O Ouro de Nápoles, 1954).
Outra carta branca a não perder tem como convidada a fotógrafa norte-americana Nan Goldin, que nos traz, para além do seu trabalho a ser exibido em slideshows, um leque de filmes absolutamente excepcional, que pode funcionar, para os interessados nas imagens de Goldin, como auto-retrato cinéfilo. Destaco: a passagem do belíssimo Nothing But a Man (1964) de Michael Rommer, grande filme sobre a condição negra nos Estados Unidos que está na génese do cinema independente norte-americano; provavelmente aquela que é a obra-prima maior de Jean-Pierre Melville, L’armée des ombres (O Exército das Sombras, 1969); e Peeping Tom (A Vítima do Medo, 1960) de Michael Powell, filme que, neste contexto, aparece como interlocutor perfeito com a Goldin fotógrafa (sobretudo no que toca ao uso “agressivo” da palete de cor, à frontalidade e voyeurismo da sua arte). Por fim, noutra secção paralela não temos a presença do realizador, mas, neste caso, teremos acesso em primeiro mão – “estreia mundial”, lê-se no site do festival – ao mais recente filme de Jean-Marie Straub, La Guerre d’Algérie (2014), numa sessão conjunta com Kommunisten (2014). Outro momento altíssimo, a que o próprio Straub não ficaria indiferente, será a reposição – com apresentação de um dos maiores críticos de cinema italianos, Adriano Aprà – dos filmes pedagógicos de Roberto Rossellini feitos para a televisão, de Luís XIV a Jesus Cristo, numa secção que pensa a relação entre o grande e o pequeno ecrãs. Todo o (cinema do) mundo parece caber aqui. Feitas as apresentações, calculadas as expectativas, vamos aos filmes. Boas sessões!