Lisboa, 7 de Novembro de 2014 – Dia 1
Não se preocupem, não vou ser submetido a experiências maléficas subsidiada por um laboratório com nome russo e descrever os efeitos no meu corpo. Esta contagem serve apenas para tomar consciência do início de um diário que vai tentar manter uma estrita dieta alimentar de imagens num cardápio que faz tremer qualquer cinéfilo bulímico (redundância). Já que estou na comida começo com ela e um restaurante italiano perto do Cinema Monumental – há que dar substância ao corpo para que o espírito possa fazer o seu trabalho – e um empregado italiano que me pergunta o que vou ver quando lhe peço abruptamente a conta depois de uma lasagna. Respondi-lhe que ia ver um filme turco. E ele: você fala turco? E eu: não. E ele: Mas então como é que é isso? E eu armado em engraçadinho: suttituli. O empregado trouxe-me a conta, desejou-me bom filme mas antes de se despedir ainda veio com esta ou se vêem as imagens ou se lêem as legendas. Eu sei, não é nada profético, ainda para mais vindo de um país de dobradores de Stallone e Marilyn Monroe, mas mesmo assim pensava nessa coisa de ler nas imagens. Não tresler nas imagens mas ler, como se faz numa superfície. E ainda mais nisso pensei quando chego a casa e vejo que o argumento do vencedor da Palma de Ouro desde ano, Kis uykusu (Sono de Inverno, 2014) do turco Nuri Bilge Ceylan, demorou seis meses a escrever e tinha perto de 300 páginas. Era um romance, no fundo, e deram essas quatro horas e meia de filme, aqui reduzidas para três e vinte. É peso, é calhamaço. Como o protagonista quer vir a escrever um dia. Peso também pelo prémio, tudo parece intransponível, inabalável como o Hotel Othello escavado na rocha, do homem que ali está, ali vai ficar. e aonde chegam asiáticos ou motoqueiros que têm a ilusão que a viagem deve ser feita no espaço. Fala-se em tédio no filme e fala-se em tédio sobre o filme. Não creio contudo que ele seja um filme do, ou sobre o, tédio. O tédio é a oposição de um projecto e de uma convicção. Pode ser um luxo? Por certo mas este filme de Ceylan é esse projecto, um projecto que cita Shakespeare mas que se interessa em auscultar a natureza da maldade (dar a outra face para suscitar o arrependimento) e dos falsos equívocos da caridade.
De burro para cavalo:
A sonata nº 20 de Schubert serviu a Bresson para explorar a santidade mas acabava em morte no promontório. Com Ceylan tudo é mais aparadinho: o cavalo selvagem apanhado é para ser largado, o dinheiro é acendalha e a história do teatro turco há-de mesmo ser escrita. Ceylan dá-nos o sono a partir de um travelling para o interior da cabeça de Aydin, que em turco significa intelectual. Só aí começa o filme e o sono. Sono no frio, como hibernação bergmaniana sobre as relações (irmão-irmã/marido-mulher/patrão-empregado/senhorio-inquilino) e de onde há-de surgir uma flexibilidade nascida do peso da reflexão e do realismo soviético. Dostoiévski, Tchekov, gravidade, princípios como armas, armamento do julgamento moral.
Afinal de contas talvez este peso de Ceylan venha por via do isolamento, da neve, das longas cenas de diálogo e não tanto pelos sítios onde chega. Gostei de ouvir, não conhecia a expressão: se os velhos pudessem… e se os jovens soubessem… Bem verdade.
Lisboa, 8 de Novembro de 2014 – Dia 2
O que é que faz a vida funcionar e avançar? Lá mais para o final de Jauja (2014) ouve-se em voz off a pergunta enquanto o pai (Viggo Mortensen) procura a filha Inge, desesperado, sedento, descrente, pelo deserto argentino do século XIX. Lisandro Alonso não dá resposta como é óbvio. Mas a questão é que o realizador que começou a observar um madeireiro a comer, a trabalhar e a matar tatus em La Libertad em 2001 nunca até então se sentiu sequer tentado em fazer a pergunta. Esta observação é a de um purista em relação do cinema de Alonso que está habituado a que não haja linhas dramáticas escritas para ler, nem rimas visuais para iluminar. A co-produção com oito países, o uso sistemático dos diálogos, o trabalho com uma estrela de cinema e com um argumentista em Jauja são tudo experiências novas que prolongam a liberdade de Lisandro mas que lhe exigem mais certezas. Ainda esta semana o director de som Vasco Pimentel dizia, num outro contexto, sobre o Miguel Gomes, que a sua frase favorita era: “não sei.” Elogio de criatividade em construção, pois claro. Aqui, Lisandro parece pela primeira vez saber. Saber um pouco melhor o que está a fazer. Inversão de elogio.
Obviamente estamos mais uma vez na natureza inóspita por oposição à civilização, o tema dele, e até como em Liverpool (2008) um pai que vai ao encontro da filha por essas terras adentro. Mas só que o cozimento da viagem feito pelo porta-chaves do título é agora aqui um ponto cruz muito direitinho com o objecto-figura, um soldadinho de chumbo, a surgir várias vazes e a ligar espaços e tempos distantes, numa lógica de sonho. Continuo a ter Alonso como alguém que quer fazer filmes sobre passos, pedras, olhares e respirações como marcas de um primitivo mais fundo por oposição à punheta civilizacional. Esses giveaways que tornam Jauja num objecto menos límpido, menos linear (e mais legível) obrigam-me pela primeira vez a pensar em caminhos paralelos além da busca pelo deserto do engenheiro militar cuja filha foi levada por um soldado de barba escassa. E a viagem é longa e acidentada começando no Ethan Edwards do Ford, nos westerns psicadélicos de Glauber Rocha e Jodorowsky, da mitologia Kurtz do Heart of Darkness (que Alonso nos disse que nunca leu; terá sido desta?) que evoca o Colonel Zuluaga, o plano Apichatpong onde surgem as suas mãos peludas a roubar a arma e o chapéu, as caminhadas de Albert Serra, a comunidade dinamarquesa de Carlos Reygadas (Stellet Licht), a desmesura do fatum de Viggo Mortensen, personagem herzoguiana, kinskiana, procurando a filha, procurando Godot. Ok, estou a inventar palavras e a chatear todo o mundo. Só para terminar, talvez a diferença seja entre fazer uma viagem e ver a paisagem pela janela do comboio (tirando o comboio, isso é o cinema de Alonso até Jauja) e fazer a mesma viagem e nela esse exercício de tentar perceber o que nos faz lembrar o que estamos a ver. Pela primeira vez Lisandro Alonso faz lembrar outra coisa além de Lisandro Alonso.
Cores fortes, composição forte e marcada, é difícil esquecer o primeiro plano (aí em cima), 35 mm recortados, num espaço encaixotado no clássico onde um buraco na rocha pode dar para um palco. Tudo isto, parece, por receio de não se repetir. Quem não arrisca não inova. Lisandro refez-se num novo terreno, inóspito e talvez demore mais alguns filmes até encontrar um oásis. Ainda assim esta miragem deu-lhe o FIPRESCI Prize em Cannes.
Antes da sessão do Lisandro havia uma fila enorme para ver o Wes Anderson, chego a casa, ouço boas coisas sobre o novo Mike Leigh. Mas mantenho-me no regime. Um filme um dia. A cinefilia como doença: “não me deixeis cair em tentação mas livrai-me do mal”.
Seguem-se abstracts e outras parafernálias das academias alumiadas a CAFÉ.
Amanhã Cronenberg e as estrelas.