Lisboa, 11 de Novembro de 2014 – Dia 5
Giorgio Agamben, o célebre filósofo italiano, tem uma bela imagem para se aproximar daquilo que considera ser a natureza do “contemporâneo”. Segundo ele o contemporâneo é aquilo ou aquele que sente um desfasamento em relação ao presente, que põe os olhos no seu tempo não para ver as luzes mas sim o seu escuro. Essa “inactualidade” é resultado de uma escuridão que se lhe dirige, tal qual a escuridão dos céus explicada pela luz das galáxias remotas que caminham na nossa direcção a uma velocidade inferior àquela a que as próprias se afastam de nós. Desta forma, a contemporaneidade implica este movimento de ver, no seio de uma profunda escuridão do presente, uma luz que a nós se dirige mas que nunca nos consegue alcançar.
Sob este prisma, nos 100 anos que se completam hoje sobre o fim da Primeira Guerra Mundial, Les Ponts de Sarajevo (Pontes de Sarajevo, 2014) podiam servir para ensaiar o inverso da proposta de Agamben. O filme colectivo, que reuniu realizadores de toda a Europa para repensar essa memória bélica a partir do epicentro da cidade balcânica, comporta, em toda a sua presentificação do luto ou na sua sentida homenagem, uma claridade respeitosa que, longe de encadear, parece provir de uma tentativa de iluminar o inexplicável do passado e arrumar sob as gavetas da cultura a experiência das trincheiras de 14-18.
Como lembra Jean-Luc Godard na sua Ponte dos Suspiros, episódio com rearranjos do seu Je Vous Salue, Sarajevo (1993): “La culture, c’est la règle; l’art, c’est l’exception”. Na grande maioria destas curtas, além da natural heterogeneidade, há essa tentativa de fazer com que a ponte entre o passado e o presente seja ela também uma ponte entre a cultura e a arte. A dor do passado não é um critério que afaste a lucidez da ilegibilidade da arte. Estamos hoje além da impossibilidade adorniana de fazer arte após o trauma ou da ideia que a perda ou destruição da experiência são exclusivos bélicos ou que impeçam um fazer-ver que tem por intuito precisamente fracturar a linguagem e pôr em movimento a imaginação como máquina do possível além dos constrangimentos político-culturais.
Godard, outra vez ele, foi também quem fez ver que quando o cinema começava a contar as suas histoires iniciava abismadamente o momento do traçar do seu futuro. Essa ideia de futuro, mesmo que falemos de cicatrizes de guerra, parece estar arredada destas pontes. Não são só os pessimismos como entidades de resistência que devem ser passíveis de organização. Também os optimismos carecem de tal elaboração. Além de Godard, que já estava nesse movimento de desenterrar o possível no interdito do massacre real e simbólico, só Puiu e Loznitsa têm esse olhar interpelante. O primeiro traz a ironia à visão segmentada da guerra num casal que na cama, antes de dormir, desmonta ideias feitas sobre a Guerra, o segundo ensaia, em formato demasiado curto para a ideia, o projecto de confronto imagético de tempos: as ruas com transeuntes inocentes e o fantasma de um outro quotidiano que passou mas que é daquele tão definidor como os risos ou os passos que se vêm agora.
Coincidência ou não estes são dois dos filmes mais escuros do “bolo”. De uma escuridão luminosa.
Lisboa, 12 de Novembro de 2014 – Dia 6
Ainda a pensar nos planos negros com que Ferrara filmou Pasolini – nessa potência de escuridão tão avessa à poesia pasoliniana – e descubro que Agamben foi um dos apóstolos de Il Vangelo Secondo Matteo (O Evangelho Segundo São Mateus, 1964). Isto anda tudo ligado.
Não percebo muito de Evangelhos mas de escuridão percebo eu bem. Foi nela que passei a tarde toda na companhia de duas mulheres. Cada uma mais bonita do que a outra. Uma é loura outra é morena.
A loura teve uma infância difícil, o pai deixava que os malandros do bar ilegal que possuía lhe mandassem piropos e a seduzissem o tempo todo entre dois copos de whiskey. Ela aprendeu a resistir, mandava-lhes café a ferver para as partes ou partia-lhe as garrafas na cabeça quando passavam das marcas. A morena não, nasceu em berço de ouro, pai milionário e lanches de gingerbread e licor de menta. À loura morre-lhe o pai e um dos poucos amigos afasta-a de uma carreira de stripper: “A woman, young beautiful like you has power in the world! […] You must use men, not let them use you. Be the master and make them your slave. […] Exploit yourself! Use men! Be strong! Use men to get the things that you want!” E ela que tanto odiava os homens vai para Nova Iorque. Eu sei porque fui eu que a deixei ir num vagão clandestino depois de beijos e amassos. A morena não. Acredita demasiado nos homens. Numa festa conheceu-me, eu Frederic March, bêbado que nem um cacho cantei-lhe ao ouvido, disse-lhe que ela era swell e quis casar logo comigo. A loura quis subir, beijo a beijo, o fálico prédio de um banco, de departamento em departamento até ao sucesso. Eu sei porque fui eu que lhe indiquei onde era o departamento do recursos humanos, fui eu que a apresentei ao meu patrão, que entrei na casa de banho da mulheres para meia hora de felicidade. Fui despedido, largado como todos os homens à medida que ela subia na carreira (a única maneira que tinha de o fazer pois era mulher). À morena dei-lhe uma anilha de saca rolhas em vez de aliança no dia de casamento. Não estava seguro de mim, bebia e, como sabem, tinha uma outra loura ainda na mente.
A loura fez-me trair a minha noiva, abandonar o meu emprego e matar-me. Mas o sacana do meu sogro, que também a queria só para ele, não se ficou a rir. Levou um tiro e foi para o céu. “Um acidente” disse ela, foi tudo o que aconteceu. Ela não era capaz de amar. Nem eu era. À minha morena entornei-lhe o frango que tinha feito para os amigos e mal tive uma oportunidade de ter a minha peça produzida em Nova Iorque lá fui eu para os braços do sucesso e da loura (a outra) que era quem sempre tinha estado pendurada na parede do meu quarto e que agora era a figura em palco da minha glória. A loura, olhar implacável, vítima e sedutora profissional queria dar o golpe final. Eu era presidente do banco (muito depois de a ter olhado e desejado como um alto e jovem John Wayne) e tentei afastá-la para Paris. Mas quando lá fui ver como paravam as modas dei-lhe boleia numa noite de chuva e ela pediu-me para casar. Aceitei. Casado estava eu com a morena mas como gostava da loura saí podre de bêbado uma noite e quando regressei propus-lhe: “the holy state of matrimony, modern style: single lives, twin beds and triple bromides in the morning”. Aceitou. Eu andava com a loura e a ela, a minha esposa morena, com o Cary Grant. Festas e suspiros.
A loura casou comigo e tinha uma mala com meio milhão de dólares e só esperava o momento em que arranjasse a outra metade. Mas eu fui à falência, o meu banco pôs-me na prisão e eu precisava de dinheiro. Ela olhou-me espantada e partiu. Custou-lhe muito a ganhar. As mulheres mantém o coração mas mudam de opinião e a minha morena, farta das minhas festas, dos meus whiskeys e dos meus beijos na cabeleira alva da minha amante deixou-me. “Nunca me disseste que me amavas em todo este tempo”. À loura girava-lhe o gira discos e nele as caras dos homens que a sua cara, a sua babyface, fez rodar a seu bel prazer. Tinha amor em si além do meio milhão. Depois da morena se ter ido embora para casa do pai eu percebi porque bebia, dei um chuto no rabo da loura e escrevi vezes sem conta “eu amo-te” em cartões de flores que nunca chegavam ao seu destinatário. A loura, que já estava no comboio para me deixar, voltou atrás, apaixonadíssima (efeitos dos códigos de censura certamente), mas eu já tinha dado um tiro em mim. Sem o meu amor e com o futuro na cadeia. Fui de charola na ambulância mas ela veio comigo. A mala dos milhões abriu-se na ambulância mas dela, a loura já não queria saber. Eu era amado, eu sobrevivi. A morena estava no hospital. Eu soube disse pelo imbecil do meu colega de jornal. Fui a correr para a ver, pensava que ia ser pai e que podia agora, finalmente, dizer que a amava. O bebé não sobreviveu mas eu, o seu bebé, fiquei deitado junto à minha morena. Eu amava, ela sobreviveu.
A loura chama-se Barbara Stanwyck e filmou-a Alfred E. Green em 1933 em Baby Face (A Mulher Que Nos Perde).
A morena dá pelo nome de Sylvia Sidney e foi filmada por Dorothy Arzner no ano anterior, em Merrily We Go to Hell (Quando a Mulher e Opõe).
Nesses dois anos, nesta tarde, amei-as às duas. Que me perdoe quem tem de perdoar.