Lisboa, 13 de Novembro de 2014 – Dia 7
Este é o primeiro filme que vejo de Christian Petzold e nele depositava as minhas expectativas e frustrações por, indecente como sou, não ter visto os anteriores. Phoenix (2014) tem um bom coração e um bom ponto de partida. O alemão quer com certeza mostrar – através da história de uma judia sobrevivente dos campos de concentração (Nina Hoss, a musa de Petzold) que encontra o marido, músico alemão, mas que não a reconhece devido ao rosto desgastado pelo sofrimento e maus tratos – quer mostrar dizia, as marcas deixadas pela guerra e neste caso a ideia de que os que se mantiveram fora dos campos idealizam uma coisa sem figuração possível. “Tu pensas que é assim que se sai dos campos?” diz a personagem de Nina ao marido um par de vezes. Esse confronto entre as marcas do rosto e o vestido vermelho, que é preciso mandar apertar, ou entre as cicatrizes interiores e os sapatinhos de Paris é a ideia forte de Phoenix, juntamente com a homenagem ao noir, à Alemanha de escombros pós-guerra que vai rimar quer com os cabarets de Dietrich quer com o que se canta lá dentro “Night and Fog”. E, pois claro, o não reconhecimento do marido pela mulher é desses ases dramáticos que se guarda na mão para a jogada decisiva.
O problema talvez comece aí, nessa antecipação do jogo. Petzold joga o seu ás muito cedo no filme e depois fica sem trunfos. Ou melhor, joga no aclaramento interior das situações, uma espécie de jogo subterrâneo com subtilezas e bluffs a concorrerem uns com os outros. Fez-me lembrar uma frase de Thomas Elsaesser sobre o cinema americano citada na introdução de uma colectânea sobre os principais textos dos Cahiers dos anos 50:
Not only is Hollywood ideologically transparent in the way films aim at internalizing and psychologizing the public and social issues of American history, but their aesthetic and stylistic devices are geared towards locating the value and purpose of that experience in recognizably commonplace situations and everyday contexts, mainly by means of a visual dramatic rhetoric, a strategy of persuasion as ‘classical’ and subtly adaptable as any which past civilizations have produced in periods of hegemony.
Aonde quero chegar é aqui. Parte do cinema clássico norte-americano foi recuperado a partir dos anos 50 pela crítica francófona uma vez que conseguia traduzir um pensamento exterior, a partir das coisas: uma profundidade atingida pela superficialidade. Em Petzold a ideia exterior, simples – o não reconhecimento – é depois seguida de cenas onde só há exterioridade para servir a interioridade das personagens (o amor, o sofrimento de dentro). Como se a “atitude americana”, que Godard reconhecia no cinema além Atlântico (e que intimava o cinema francês a encontrar a sua), fosse aqui uma “atitude europeia” pesarosa, de rigidez, que torna Phoenix num filme longo e onde a cena final, que retoma novamente o peso certo da exterioridade pura – funcionasse como twist de uma ideia de curta metragem. Como se uma certa ideia de política denunciada, vista nos gestos lentos e sofridos de Hoss, tivesse uma excessiva consciência de si própria. É que nós, ratos que nos sentamos na sala escura, somos peritos a caçar ideologias e a política das formas, dos gestos e das palavras. Se no-la dão de barato, o pobre desconfia. Foi o que fiz.
Lisboa, 13 de Novembro de 2014 – Dia 8
Cada um dos filmes de Hong Sang-Soo é um filme de Hong Sang-Soo. Em 1954, François Truffaut escrevia isto a propósito de Jacques Becker e eu adapto pois tenha o filme o tempo que tenha, o de hoje apenas 66 minutos, basta uma cena para perceber como filma o coreano, como cada cena é uma variação do todo e como cada filme uma variação da sua carreira. Um todo artisticamente coeso feito a partir de momentos, do elogio dos mesmos, onde as cenas de diálogo, o centro do seu cinema, mais do que situações são encontros que tocam sempre de forma invisível, imperceptível, quase todo o espectro das emoções-tipo. Entre um abraço, um copo de vinho, um sorriso pode estar a passagem da profundidade das lágrimas ao riso da cumplicidade e ao absurdo das pequenas grandes coisas. Entre a violência ribombante do presente ou a solenidade pesada que a contra ataca, há em Sang-Soo a medida certa do presente, entre o peso e a leveza, uma flor intacta e serena que nasce no meio do barulho dos carros que passam e dos risos histriônicos de glamour e batom.
Ainda não falei do filme. Sobre este Ja-yu-eui eon-deok (The Hill of Freedom, 2014), Richard Brody escreve que se lhe pode aplicar a M-Word e quem sou eu para o desdizer. Uma obra-prima sobre o tempo, uma releitura dos primeiros dois filmes de Resnais Hiroshima Mon Amour (Hiroshima Meu Amor, 1959) e L’année dernière à Marienbad (O Último Ano em Marienbad, 1961), aqui numa espécie de romance epistolar desordenado. Um japonês que vivia em Seoul conhece uma coreana numa escola de línguas. Mais tarde ela recebe uma série de cartas dele que deixa cair ao chão antes de ler. Desordenadas ficam elas e desordenados ficamos nós e é assim que ficamos a saber como foi quando ele veio do Japão para a reencontrar. Ele, o actor Ryo Kase, enquanto procura a sua amada anda a ler sobre o tempo e numa das cenas diz a uma empregada do café Hill of Freedom que o tempo é essa coisa que nós vemos como linear mas que não existe assim cronologicamente. É tudo uma construção da nossa mente. Ela ri-se muito e diz, como quem enxota uma mosca, “que engraçado, contas-me isso mais tarde”.
Esse mais tarde é o próprio filme que obriga a construir um todo – o tempo como conceito fechado – a partir da única coisa que temos que são bebedeiras, apertões a cãezinhos, uma boa refeição, um abraço a um desconhecido que se torna um amigo. Numa das cenas Mori, o rapazinho japonês que busca, impaciente, a sua amada, conversa com a dona do hospedaria onde ele passa os seus dias. Ela diz-lhe que gosta muito dos japoneses porque eles são “simpáticos e asseados”. Mori agradece mas não gosta de falar em geral, é um pouco parvo dizer os coreanos ou os japoneses no geral são isto ou aquilo. Essa resposta tem lá dentro todo o cinema de Hong Sang-Soo. Ele é feito de meios simples, pessoas concretas, cenários repetidos ao ponto da abstracção mas sempre com base no encontro único e individual de cada personagem. É essa a sua chave, o encontro de pessoas e culturas [como no filme do ano de 2013, Da-reun na-ra-e-suh (Noutro País, 2012) com Isabelle Huppert] para lhes extrair o tempo único que é preciso aproveitar. Para Mori, memento mori. Para nós memento mori. O cinema é feito de momentos individuais, de imobilidades que o olho torna móveis. Henri Bergson dizia isso não é? Que engraçado, conto-vos mais tarde.
Neste jogo de fragmentos que vamos colando – uma cena uma carta desordenada no tempo – desse tal contínuo do tempo que só vemos como um ideal ou um fora de campo, há coisas que nunca chegaremos a ver. Como é que Mori salvou o cãozinho da empregada do café? Como é que foi quando ele andou à porrada e ficou com um hematoma na testa que todos lhe elogiaram a coragem? E agora um spoiler para terminar em grande: como foi viver um final feliz, como cena penúltima, antes de tudo realmente acabar, agora como se tudo fosse um circuito de revisitação e recomeço?
Perguntam a Mori duas vezes o que lá foi fazer à Coreia. Business ou pleasure? Ele responde, triste, nenhum. Perguntem-me isso a mim sobre ontem à tarde: business ou pleasure? E eu respondo: os dois.