Ao longo dos anos o IndieLisboa vem seleccionando consecutivamente a quase totalidade dos filmes de Radu Jude: algumas das suas curtas e as suas duas primeiras longas-metragens (ambas na competição do festival) – sendo que Cea mai fericita fata din lume (The Happiest Girl in the World, 2009) venceu o prémio FIPRESCI na edição de 2009. Posto isto, e a propósito da primeira edição da Festa do Cinema Romeno (a decorrer na Culturgest de 19 a 23 de Novembro), a organização decidiu dedicar um retrospectiva integral à obra deste ainda jovem realizador. A entrevista que se segue foi feita por e-mail (daí que se perca alguma da habitual interacção), ainda assim é o suficiente para despontar um pouco daquilo que é a força criadora de Radu Jude. Fala-nos um pouco da sua obra passada e do seu processo, mas é sobre o que está por vir que mais se entusiasma, como se o seu melhor trabalho seja sempre aquele que está por fazer, ficamos esperando… Quanto ao resto é ler e não perder a oportunidade de ver (ou rever) em sala alguns dos filmes deste nome cimeiro do novo Cinema Romeno, ainda pouco conhecido do púbico português.
A sua estreia na realização, a curta-metragem Lampa cu caciula (The Tube with a Hat, 2006), recebeu muita atenção e prémios em vários festivais. Sente que a forma como o seu primeiro filme foi recebido foi algo positivo e que o ajudou a montar os projectos seguintes ou foi mais como um fardo? Muitas pessoas dizem que o mais difícil não é fazer o primeiro filme, mas sim o segundo, dadas as expectativas que se criaram…
Sim, a boa recepção da minha primeira curta ajudou a encontrar financiamento para a minha primeira longa, por isso em retrospectiva posso dizer que foi muito importante. De outra forma não houve qualquer fardo de que me possa queixar, o desejo de fazer um filme ou outro não tem nada que ver com noções de sucesso, expectativas, etc. Eu simplesmente não penso nesses assuntos, seria muito neurótico de minha parte se o fizesse.
Há uma grande simplicidade nas suas histórias, reescreve muito os seus argumentos de modo a reduzi-los ao essencial? Nos seus filmes trabalha muitas vezes como co-argumentista, escrever acompanhado ajuda-o?
Eu escrevo com outra pessoa, sim, especialmente porque preciso de confirmar constantemente as ideias que vou tendo com alguém cujo intelecto eu confio. E como os filmes falam de temas que partem, pelo menos parcialmente, de fora das minhas próprias experiências, outras opiniões podem sempre ser úteis. Além disso creio que não há grande reescrita, mais um trabalho constante no próprio texto. Aliás, com uma boa memória não haveria necessidade de escrever um guião. Eu só o faço porque não consigo lembrar-me de tudo. Portanto, é mais fácil se tiver as coisas apontadas em papel. O guião é um enorme lembrete.
Mas a simplicidade também está presente na própria realização… Estou a pensar, por exemplo, em filmes como Dimineata (In the Morning, 2007), Trece si prin perete (It Can Pass Through the Wall, 2014) ou ainda Film pentru priteni (A film for friends, 2011) que ocorrem num só décor (um taxi, um quarto) e por vezes num só plano-sequência (o caso dos últimos dois). Isto é algo que tem sempre presente, algo que procura? Além disso os seus últimos filmes passam-se em espaços muito apertados, apartamentos pequeníssimos e por aí… ao contrário dos primeiros que se passavam em espaços abertos (no campo, em praças). Alguma coisa mudou?
Bem, eu gosto de teatro, gosto de kammerspiele, mas não há uma decisão consciente de filmar em espaços interiores; o meu último filme, Aferim! (Bravo!, 2014) decorre muito em exteriores. Tudo o que eu posso acrescentar é que o espaço é extremamente importante para a dramaturgia de um filme e que eu sempre tentei (não sei se sempre o consegui) procurar espaços que pudessem comunicar mais, espaços que são importantes de um ponto de vista narrativo mas que ao mesmo tempo podem comunicar algo a um nível simbólico.
Para muitos realizadores a curta-metragem é um formato que funciona como ponte para as longas. Na sua carreira tem trabalhado em ambos os formatos mais ou menos alternadamente. Isto é devido a uma questão de dificuldade de arranjar financiamento ou acha que algumas das suas histórias são simplesmente mais curtas?
Ambos os casos. Até certo ponto, devido à dificuldade de angariar financiamento para projectos de longas metragens, decidi fazer curtas de muito baixo orçamento; mas penso que, simultaneamente, o formato da curta-metragem tem as suas vantagens: as coisas são apresentadas de uma forma menos complexa. E esta falta (aparente) de complexidade pode funcionar paradoxalmente como um dos pontos fortes do filme, como é o caso na literatura. Pense no [Raymond] Carver ou no [Anton] Tchekhov, eles falam de assuntos tão profundos de uma forma profundamente elusiva e tudo o que o leitor vislumbra são apenas fiapos disso. O suficiente para ver, por um segundo que seja, uma enorme profundidade.
Ainda sobre esta questão, as personagens da sua curta Alexandra (2006) foram posteriormente desenvolvidas na longa Toata lumea din familia noastra (Everybody in Our Family, 2012). Isto deu-se porque se apercebeu que ainda tinha algo para dizer sobre elas ou usou-as de novo porque como já lhe eram familiares facilitavam o processo?
De novo tenho dificuldade em responder à sua pergunta, já que muitas dessas decisões escapam ao meu consciente. Eu posso racionalizar e tentar dizer que tinha mais coisas para explorar ou que tenho razões pessoas que me aproximam dessas personagens e dessas situações, mas a resposta sincera é que eu realmente não sei.
Olhando para o conjunto dos seus filmes há um tema que emerge constantemente, a relação de uma criança só com um pai ou um parente próximo, de Lampa cu caciula até o mais recente Trece si prin perete. Acha que há uma razão para que isto seja algo que aparece frequentemente nos seus filmes?
Não sei.
No início da nova vaga do Cinema Romeno houve a sensação de que havia uma união e uma unidade nesse movimento cinematográfico. Agora, pouco a pouco, começamos a ouvir as diferentes vozes. No entanto muitas ainda nos são desconhecidas. Por exemplo, o Radu Jude fala com muito carinho de Mircea Daneliuc e Radu Muntean mas com excepção do Marti, dupa craciun (Terça, Depois do Natal, 2010) nenhum dos filmes deles estrearam em Portugal… e já agora nenhum dos seus… Porque razão se contam pelos dedos de uma mão os realizadores romenos que ganharam reconhecimento global?
O problema do sucesso, do reconhecimento e afins é tão complexo que eu próprio não o consigo explicar. Muitos factores entram em acção, por isso… Tudo o que posso dizer é que, devido a virmos de uma cultura pequena com uma língua só falada por nós, algumas grandes obras de arte criadas aqui são muito pouco conhecidas fora da Roménia. Se [Eugène] Ionesco e [Emil] Cioran, por exemplo, tivessem escrito na Roménia e em romeno, muito provavelmente o seu trabalho não seria reconhecido em todo o mundo. É algo que é verdadeiro para todas as artes e para todos os paises com uma cultura pequena. Poder-se-ia dizer que não é justo, mas pouco importa, é o que há. Existem alguns filmes romenos realizados antes da revolução de 1989 que são praticamente desconhecidos: filmes maravilhosos de Lucian Pintilie, Mircea Daneliuc, Alexandru Tatos… Como posso eu convencer alguém a ver esses filmes? Penso que se trata de uma batalha perdida desde o início… De qualquer forma o IndieLisboa oferece-me uma bela oportunidade para apresentar em Lisboa um filme de um realizador mais velho. Escolhi Baloane de curcubeu (Rainbow Balloons, 1982) do Iosif Demian, um filme que é desconhecido até na Roménia, que foi proibido pela ditadura comunista. Espero mesmo que os portugueses o venham ver. É um filme de ficção, mas considero que é também o melhor documentário sobre a Roménia rural nos anos 80…
De qualquer forma, parece-me que muito do recente Cinema Romeno é muito desconfortável para o espectador, o seu em particular. Eu retorço-me todo com algumas cenas dos seus filmes. Gosta de provocar as audiências dessa forma?
Que audiências? Não existem cinemas art-house na Roménia, os multiplexes não exibem estes filmes em condições, as chamadas general audiences preferem ver telenovelas e filmes americanos. Os filmes que refere são acima de tudo vistos apenas por pessoas com um verdadeiro interesse pelo cinema, ainda que esperemos que esta situação mude. Mas quando o governo não investe na educação nem sequer na cultura penso que a situação vai piorar cada vez mais. Talvez esteja a ser demasiado pessimista…
No entanto, os seus filmes jogam muitas vezes com um humor muito abrasivo e ácido em cenas que poderiam ser muito dramáticas e que, por isso, se cobrem de ridículo. De que forma procura essa zona cinza entre o drama e a comédia?
Creio que é algo simplesmente óbvio. Num mundo onde todos vamos acabar por bater as botas, todos os problemas, se os olhares de um certo ângulo, parecem ridículos. Isto é exactamente o que uma personagem d’O Tio Vânia descobre: o estado natural do ser humano é ser ridículo.
Outro assunto que surge em alguns dos seus filmes e muito evidentemente no O umbra de nor (A Shadow of a Cloud, 2013) é a crítica à religião. É um comentário sobre a sociedade romena de hoje em dia?
Não era minha intenção que essa curta fosse uma crítica à religião, eu apenas tentei falar sobre a relação complicada entre a prática do quotidiano e a vida espiritual. Mas falando da Igreja oficial da Roménia, os últimos tempos têm-me causado náuseas, já que a Igreja se envolveu na campanha eleitoral e apoiou directamente um candidato, atacando um outro por não ser cristão ortodoxo, mas sim um protestante! Vergonhoso! Eu agora sinto repugnância pela maioria dos padres romenos (só alguns tiveram a dignidade de vir a público demarcarem-se deste caso e afirmarem que não se querem envolver na política…).
No Verão esteve em rodagem do seu novo projecto Aferim!, um filme de época sobre a escravatura dos ciganos no século XIX. De que forma é esse tema importante na Roménia actual?
Penso que é crucial já que tudo o que somos hoje em dia é um resultado – pelo menos em parte – daquilo que sucedeu no passado. Já agora, esta é a única razão para fazer tal filme e para estudar história… Os neurologistas têm por hábito dizer que uma pessoa saudável é aquela que sabe onde está, de onde vem e para onde vai. Parece-me que isso e também verdade para países. Um país não pode ser saudável se a memória colectiva esquece eventos que foram desagradáveis. Somos suficientemente maduros para, como sociedade, nos confrontarmos com o nosso próprio passado, aceitarmo-lo e aprender algo com ele. Aferim! é uma pequena contribuição para este olhar crítico do passado. Não mais e, espero, não menos.
Vários realizadores por todo os mundo que são associados com, chamemos-lhe assim, cinema observacional (como penso ser o seu) viraram-se para filmes de época – penso no Jauja (2014) do Lisandro Alonso, no Meek’s Cutoff (O Atalho, 2010) da Kelly Reichardt, no V tumane (No nevoeiro, 2012) do Sergei Loznitsa… – mas através de um olhar muito contemporâneo. Podemos encarar Aferim! dessa maneira? De que forma o facto de ser um filme de época altera o modo como filma ou como pensa na história e de como a quer contar?
Nos últimos anos a minha crença sobre certas noções de “verdade”, “realismo”, “verdade artística”, “realidade” foram profundamente abaladas. Deveu-se ao meu próprio pensar sobre estes problemas, mas também pela leitura de filósofos como [Heinz von] Foerster, [Ludwig] Wittgenstein, Thomas Kuhn, [Paul] Watzlawick, [Hans] Vaihinger, etc. Resumindo, tornei-me naquilo a que se pode chamar um relativista, do ponto de vista filosófico. Já não acredito que exista uma “verdade” (no sentido absoluto), não acredito que “realismo” seja uma noção com qualquer significado, não acredito que um filme possa ser “verdadeiro”. Penso, sim, que qualquer filme, seja ficção ou documentário, é apenas uma construção artificial, um produto visual que contém a sua própria realidade de uma ordem diferente e apenas uma vaga ligação ao mundo real. Esta conexão é tão frágil que considero totalmente ilegítimo usar a palavra “verdade” quando se trata de cinema, mesmo que seja um documentário gravando uma situação simples. Claro que o cinema pode dar alguma informação no que respeita à realidade, mas tal informação deve ser sempre questionada no que corresponde às noções de “veracidade”. Então porque se há de fazer cinema? Bem, eu acredito que um filme, mesmo não dando qualquer verdade absoluta, pode ajudar-nos a questionar as nossas convicções e ideias, pode levar-nos a interrogar sobre os nossos preconceitos de uma forma única. Isto é, penso que Aferim! é, no melhor dos casos, apenas um instrumento para despertar o desejo do espectador de pensar e investigar os temas nele contidos. Poderia dizer que aquilo que é para mim da máxima importância não é o que acontece ao espectador quando vê um filme meu mas, sim, aquilo que acontece na sua mente depois de sair do cinema (ou da frente do televisor ou…). Com isto presente, construí um filme que se mostra, de vez para vez, ao espectador como sendo apenas um filme. Quero que os espectadores estejam conscientes a todos os momentos da artificialidade e da natureza convencional do filme e do cinema em si. Não quero vender o meu filme como “realidade”. Não é realidade. É um jogo. Um jogo mental. O mesmo será também verdade para o meu filme seguinte, uma adaptação da magnífica novela de Max Blecher, Scarred Hearts. Sem querer ser desrespeitoso, poderia dizer que pouco me importa se um filme é bom ou mau, emocionante ou chato, só quero estimular o pensamento do espectador. E já que mencionou a questão da escravatura dos ciganos como um tema do filme, poderia acrescentar que para mim são ainda mais importantes, mesmo se menos óbvios: a forma como a linguagem é usada para transportar ideias como um vírus de pessoas para pessoa e os limites da representação da realidade pelo cinema, mais precisamente aquilo que convencionalmente chamamos “a realidade histórica”.
Em várias entrevistas refere-se a diferentes realizadores como sendo influentes (romenos mas não só). É um cinéfilo? De que forma é que isso se nota nos seus filmes (se é que se nota sequer)?
Se um cinéfilo é alguém que vê imensos filmes, então não o sou. Eu vejo apenas um filme por semana, talvez dois. Mas vejo-os muito cuidadosamente e penso muito neles, talvez mais do que os cinéfilos que vêem mais de cem filmes por mês. Não me parece que ver filmes seja algo muito diferente de observar a realidade, ou ler livros, ou pensar, ou ouvir música. É um contínuo, realmente, uma contínua busca pela forma como se deve viver melhor.