A arte não deve dominar. A arte deve mostrar a justiça a todos.
Sócrates, in Socrate (1971) de Roberto Rossellini
A Civic TV sai da sala de estar para entrar numa sala de cinema. Não estarei, atenção, a desvirtuar o objecto destas crónicas. Falarei, ainda assim, de cinema feito para televisão. Para ser mais exacto, aproveito o ciclo que o LEFFest dedicou ao cruzamento entre o cinema e a televisão para motivar esta espécie de visita de estudo por algumas das obras didácticas que Rossellini realizou para a televisão, desde o ano de 1963 até ao fim da sua vida. Algumas destas sessões de “televisão em público” foram acompanhadas de uma apresentação curta da responsabilidade de um dos maiores críticos de cinema e seguramente o maior especialista na obra de Rossellini: Adriano Aprà. Estes filmes preciosíssimos caíram no esquecimento geral e foram consecutivamente desmerecidos pelo meio do cinema – já nesta altura grassava a “sangrenta guerra” entre cinema e televisão, uma que o próprio Rossellini considerava nociva aos dois meios.
Há dias, Slavoj Žižek foi convidado a visitar o quartel-general da editora de DVDs The Criterion Collection, para escolher os seus filmes favoritos da colecção. Entre a caixa da “Trilogia da Guerra”, a caixa da fase Ingrid Bergman e a dos filmes televisivos, o filósofo esloveno escolhe esta última e justifica-se: “Os filmes históricos de Rossellini. Eu prefiro-os. Estes filmes televisivos tardios, longos e chatos. Penso que os chamados grandes filmes de Rossellini, como Germania, anno zero (Alemanha Ano Zero, 1948) e por aí fora, já não resultam. Penso que este é o Rossellini a ser reabilitado”. De facto, nos últimos anos, tem-se assistido a um esforço de reabilitação destes objectos, que, do meu ponto de vista, é para ser levado muito a sério, bem para lá da obra-prima consensual que é La prise de pouvoir par Louis XIV (A Tomada de Poder por Luís XIV, 1966). Todos estes telefilmes inserem-se num projecto cinematográfico, com uma ambição dificilmente equiparável na história do cinema, que procurou fundir arte, filosofia e ciência à guisa das acções revolucionárias dessa galeria de heróis históricos onde se incluem, entre outros, Sócrates, Leon Battista Alberti, René Descartes, Blaise Pascal e Jesus Cristo.
Que o gesto sobre uma revolução seja o de uma (tentativa de) revolução deverá motivar o interesse ao “próximo cinéfilo”, uma vez que torna Rossellini numa avis rara na história do cinema. Não se pode esperar demasiado da última etapa de vida dos grandes mestres. Entre obras de despedida mais ou menos fulgurantes e filmes auto-indulgentes e politicamente estéreis, na história do cinema não faltam exemplos de cineastas que com maior ou menor subtileza foram amenizando ou “amestrando” o seu génio convulso. Rossellini foi fiel à sua genética incapacidade de seguir tendências, isto é, à sua endémica necessidade de “provocar novas tendências”, sem se auto-excluir dos debates maiores do seu tempo. Não é que Pascal ou Descartes fossem assuntos urgentes nos anos 60, mas a televisão era-o seguramente.
Rossellini, dedicado ao estudo e à investigação científicas, vai mudar de meio, do cinema passa para a televisão, como que passando também uma certidão de óbito ao espaço onde se celebrizara como um maiores “documentaristas” do rasto de injustiças, sofrimento e de ruína deixado pela Segunda Guerra Mundial. Pelo cinema, havia mostrado os destroços da guerra e o labirinto existencial que se elevara sobre as cinzas do Holocausto. Pela televisão, cabia-lhe agora evitar que o homem, como o disse citando Karl Marx (Rossellini iria fazer um telefilme sobre Marx depois de adaptar a história de Jesus Cristo), deixasse de se reconhecer na sua humanidade. O pequeno ecrã tinha essa capacidade: levar conhecimento e informação a um público mais vasto. E esse conhecimento e informação poderiam surgir sob a forma do cinema. Em certa medida, Rossellini cria uma “forma cinema” pensada directamente para a exibição no pequeno ecrã, com o fito de, como também o escreveu, acabar com a ignorância.
O seu livro de ensaios científicos tem um título, retirado de Platão, que elucida bem o alcance deste seu projecto: “Um espírito livre não deve aprender como escravo”. Quem perpetuava essa escravidão nos anos 60? Precisamente a televisão, na instituição de uma “semi-cultura” onde a propaganda de Estado agia mascarada de conteúdos audiovisuais para toda a família. Como escreveu o próprio sobre a relação entre cinema e televisão pública, “Uma televisão estatal só se justifica se actuar realmente, segundo a lei prescreve, como um ‘serviço indispensável com carácter de interesse geral’ e ‘participa no desenvolvimento social e cultural do país'”. Rossellini intrometeu-se no território inimigo com o objectivo de o libertar da tirania ideológica a que estava cada vez mais submetido. Ele agia sobre a televisão como os resistentes anti-fascistas de Roma città aperta (Roma, Cidade Aberta, 1945) agiram sobre o inimigo. O seu modo de acção (revolucionário) é confundido por muita gente com uma conformação careta e aburguesante ao “audiovisual”. O que digo aqui é que essa gente está errada. Essa gente não percebeu os riscos e a ousadia de Rossellini na fase final da sua obra, a mais inconformada, recalcitrante ou, diria até, “terrorista” de todas – anos mais tarde, Godard e Gorin procurariam fazer a sua revolução esquerdista, debaixo do chamado Grupo Dziga Vertov, através de uma vampirização relativamente semelhante dos recursos televisivos.
Falo, portanto, de uma “forma cinema” feita para a televisão. Como se caracteriza essa forma? Adriano Aprà, nas suas introduções às projecções no LEFFest, falou apropriadamente de “ficções ensaísticas” realizadas com o intuito de transformar as salas de estar de todos os telespectadores numa espécie de regresso à escolinha. O tom didáctico promove, e a palavra é do próprio Aprà, um détachement dramático e estilístico que causará estranheza – até um certo desnorte – no telespectador moderno. Estes telefilmes e mini-séries não têm nada que ver com o que vieram a ser os típicos telefilmes e mini-séries. A sua linguagem – a sua “forma cinema” – pertence por inteiro a Rossellini. Por esse motivo, proponho uma leitura diferente daquela que Aprà apresentou, aproximando-me mais das palavras que um dia Isabella Rossellini disse sobre o lugar dos filmes para televisão que o seu pai realizou: o seu cinema é para ser visto “ao contrário”, começa em Socrate e Il messia (1975) – ou em L’età del ferro (1965), série em cinco episódios que ainda não descobri – e termina em Il generale Della Rovere (O General Della Rovere, 1959) ou nesse filme sobre as experiências perigosas sobre as formas do amor contemporênao que é La paura (O Medo, 1954). Vejo, nessa linguagem, nessa “forma cinema”, menos uma ruptura que um movimento de continuidade e depuração por relação aos seus filmes anteriores.
É útil pegar aqui numa reflexão aduzida por Tag Gallagher a propósito do magnífico Il messia, última obra na filmografia de Rossellini, que, portanto, termina “no berço” da civilização europeia, aquela que depois se vai arquitectando pelas mãos dos mártires e heróis (heróis como mártires) que Rossellini encontrou não só em Santo Agostinho, Alberti, Descartes ou Pascal nos seus telefilmes como nos resistentes anónimos na sua segunda (sobre a primeira, também esquecida, escrevi aqui) “Trilogia da Guerra” ou na Joana D’Arc com Bergman ou em São Francisco naquele que será, provavelmente, o seu filme mais importante, no corpo como no espírito: Francesco, giullare di Dio (O Santo dos Pobrezinhos, 1950). Ora, Gallagher diz no seu vídeo-ensaio: “Em Il messia tudo está reduzido ao mínimo”. Com que grau de estranheza devemos encarar estas palavras? Na minha opinião, com nenhum. Em todo o Rossellini, não estará “tudo reduzido ao mínimo”, não é ele o epítome dessa arte (moderna) da ablação de que falou um dia Luc Moullet? Qual a diferença então? Bem, aqui volto eu a preferir pensar mais na palavra “continuidade” do que na palavra “ruptura”. De tal maneira é assim que até podemos dar uma volta maior à frase de Gallagher e dizer que, em Rossellini, tudo, esse tudo “reduzido ao mínimo”, tem uma dimensão messiânica. No cinema, o mínimo dos mínimos será o corpo, o corpo como espelho mais perfeito da alma. Haverá cinema mais poderoso que o de Rossellini a transformar em carne viva a injustiça e a intolerância humanas? A piéta de Roma, città aperta – o padre que segura a personagem de Magnani depois de esta ser fuzilada pelos nazis – é a piéta de Il messia. “O que é a piedade?” A pergunta é feita por Sócrates no filme que Rossellini lhe dedica e a sua humilhação no julgamento, a violência que sobre ele se exerce – uma violência que atinge o corpo e clama pelos Deuses! – acaba por comunicar (com) todas as vias-sacras que atravessam o cinema de Rossellini antes das experiências televisivas: São Francisco em Francesco…, Magnani em L’amore (1948), Bergman em Stromboli (1950)… e Il generale della Rovere, ou não será a “morte injusta” de Sócrates uma prequela para a “morte justa” da personagem interpretada por Vittorio De Sica? Em qualquer um dos casos, a morte salva, transcende.
A História segundo Rossellini é uma longa reportagem de martírios, de trabalhos de resistência contínuos contra os dogmas e preconceitos enraizados. Descartes funda o seu método nessa renuncia às verdades sofísticas, algumas delas devedoras do pensamento clássico filho de Sócrates, Platão e Aristóteles e da doutrina católica que tem em Jesus o seu grande professor. Sócrates é acusado de corromper a juventude com o seu desinteressado questionamento do mundo, na sua procura pela Verdade baseada na certeza de que só sabe que nada sabe – Descartes formulará outra, cogito, ergo sum. Pascal será posto de parte, as suas teses científicas sobre o vazio serão vistas pelas autoridades religiosas como uma tentativa de questionamento da existência de Deus. Alberti conhecerá tempos mais favoráveis para elevar a arte a ciência e a ciência a arte, desenvolvendo o estudo da perspectiva a partir da observação do corpo humano com o fito de encontrar a harmonia una do cosmos, logo, a medida justa de toda a arte. Alberti é uma excepção nestes retratos (ou auto-retratos?) de Rossellini. A sua aventura – do espírito, da mente – desenrola-se sem obstáculos, mas o cineasta italiano torna claro: tal não teria sido assim sem o apoio político e financeiro do banqueiro e mecenas Cosimo de’ Medici. Os dois, portanto, são heróis na mini-série, com três episódios, que realizou rodava o ano de 1972. Fora este caso, o caminho é pedregoso. Esse caminho lembra a metáfora que André Bazin, no seu texto «Defesa de Rossellini», encontrava para o cinema moderno: “(…) as pedras de cantaria que compõem uma ponte (…) [e]ncaixam-se perfeitamente para formarem a abóbada. Mas os blocos de rochedos espalhados num vão são e continuam a ser rochedos (…) saltando de um para outro, utilizo-os para transpor a ribeira”.
De uma margem à outra da ribeira, o telespectador acompanha o herói martirizado na sua caminhada rumo à verdade, a uma ideia de verdade. O caminho é imprevisível e sobre ele bruscamente pode precipitar-se o fim. O ambiente da maior parte destes filmes é soturno. A fotografia apresenta tons escuros, as acções são secas e bruscas – sempre o foram em Rossellini – e a tormenta interior das personagens é exteriorizada como uma revelação tenebrosa. A música que acompanha Blaise Pascal (1972) e Cartesius (1974) parece pertencer a um filme de terror. As suas personagens entram na floresta da dúvida em busca de (novas) certezas como alguém que ousa desafiar o maior monstro de todos: os dogmas do seu tempo. Há medo nestes filmes e, nesse aspecto, eles não se destacam (destacar como détacher) tanto de nós quanto é dito. É aliás por via das ideias – “O que interessa são as ideias, não as imagens”, dizia Rossellini aos Cahiers du cinéma – que estes filmes absorvem o terror, ou o Horror, que perpassa os filmes maiores da obra rosseliniana. Mas, atenção, as imagens estão lá e estão lá como nunca antes. Estes filmes televisivos estão entre as obras mais formalmente lúcidas de Rossellini. O lado convulso, auto-devorador, da sua montagem pré-televisiva dá lugar a uma duração estendida no quadro e em profundidade, valorizando, como nunca antes, uma certa ideia de perspectiva e de composição, diria, albertianas. O uso do zoom, telecomandado por Rossellini por um joystick, é um dispositivo inventado por si – maquinaria digna de Alberti (restará alguma dúvida de que todos estes retratos são auto-retratos?) – que permite, notou Aprà, “mobilizar o olhar” sobre o plano, evitando, deste modo, o uso excessivo do corte. Em televisão, Rossellini descobre algo que lhe faltava, uma falta, aliás, que Bazin nunca soube encarar muito bem: o trabalho quase primitivo sobre a duração.
A montagem aqui está muito mais “interdita”, usando o adjectivo de Bazin, que nos seus filmes mais célebres. Apesar disto, tudo aqui é movimento – mesmo que movimento indeciso, como existe tanto em Bergman no labirinto de Stromboli ou de Pompeia (a História vaporizando-se nas acções) como nos heróis históricos da televisão (os corpos da História em acções vaporizadas por ideias). Esse olho móvel acompanha o movimento de tudo. “As pessoas estão sempre em movimento”, nota Gallagher a propósito de Il messia, mas podia dizê-lo para os demais filmes didácticos. Até mesmo na morte Rossellini encontra um movimento. O cúmulo do pathos será a queda de Magnani em Roma città aperta, mas em Socrate temos a força desse gesto num estado de depuração máxima. Se a morte de Magnani é uma morte em corrida, em Sócrates é uma morte em passo lento – o movimento embala a morte, lenta e angustiadamente. Anuindo à sentença de morte do tribunal, o carrasco dá a taça com veneno a Sócrates, diz-lhe para beber e, depois, para andar até sentir as pernas pesadas. Sócrates anda de um ao lado para o outro e a câmara acompanho-o em panorâmicas pendulares até ao momento em que o filósofo pára, baixa-se e estende-se na cama para proferir as suas últimas palavras. Um final abrupto, como o desta crónica.