À laia do que define a identidade do LEFFest – a multidisciplinaridade – , quisemos sair da nossa zona de conforto e convocar neste espaço de cinema outras visões e outros saberes. Aproveitando a sua presença numa das mesas do simpósio “Ficção e Realidade: Para Além do Big Brother”, deslocámo-nos ao CCB para falar com Rui Tavares, historiador, ex-deputado europeu, cronista, um dos fundadores do blogue de esquerda Barnabé (blogger activo em www.ruitavares.net) e do partido LIVRE, que precisamente hoje celebra o seu primeiro ano de vida. Falámos com este Rui Tavares, mas também falámos com outro: Rui Tavares, o cinéfilo. Aproveitámos os temas do simpósio (espaço público, vigilância e controlo) para falarmos com este cinéfilo inconstante, mais tecno-optimista que tecno-pessimista, sobre os usos, costumes e (maus) vícios que marcam hoje a actualidade da experiência cinematográfica, mas não só.
– Hábitos Cinéfilos –
Carlos Natálio – Considera-se um cinéfilo?
Rui Tavares – Eu sou um cinéfilo com uma cultura cinematográfica muito parcelar e fragmentária. Tive na minha vida várias fases em que fui ver mais cinema e depois grande hiatos… Portanto, cinéfilo, mas provavelmente não o melhor dos cinéfilos.
CN – Se eu lhe pedisse para nomear um filme ou cineasta, qual nomearia?
RT – Um que tem a ver com as coisas que temos estado a discutir aqui: o Fahrenheit 451 (Grau de Destruição, 1966) do Truffaut. Embora goste muito do livro de Bradbury, é um dos casos em que acho que o filme é melhor que o livro. Tem mais ludismo, tem mais densidade existencial. Esteticamente é muito bonito. Envelheceu muito bem. Tem um actor fantástico que faz de Montag. É um actor alemão [Oskar Werner] que também aparece no Jules et Jim (Jules e Jim, 1962), que é outro filme de que gosto muito. Não sei se Truffaut seria o meu cineasta de eleição, mas, bem, acho que é suficientemente bom para ser de eleição.
Luís Mendonça – Existe um condimento político bastante particular nesse filme. Costuma conjugar a preferência cinéfila com a dimensão da mensagem política?
RT – Não, até porque outro filme que costumo sempre aduzir como um filme de que gosto muito é o In the Mood for Love (Disponível para Amar, 2000) do Wong Kar-wai, que é mais ou menos o oposto disto. É um filme muito estetizado, sobre as questões do amor, do ciúme e do medo e nada sobre política. Não sou nada partidário daquela tirada, típica dos intelectuais de esquerda, que diz que tudo é política. O amor pode ser política, mas em geral não é. A amizade em geral não é política. A literatura, a filosofia… há uma série de coisas que não é política. O cinema também não é todo ele política e nem sempre o melhor dele é político. O filme do Truffaut é um caso em que há política nesse filme, mas há mais que isso: há uma espécie de nostalgia por antecipação de um mundo em que se possa deixar de ler livros. Acho que isso é o fundamental. Diz respeito a toda a gente que tem uma memória de leitura. Depois, a minha formação foi mais livresca do que cinematográfica.
LM – Considera-se um espectador mais de sala ou caseiro?
RT – De preferência de sala, se puder. Em casa, pouco consigo ver cinema de longa-metragem. Tenho apanhado algumas séries agora. Já é uma banalidade dizer que estamos numa idade de ouro das séries televisivas. Mas para cinema prefiro a sala.
– O Discurso Político Lido pelo Cinema –
CN – Há uma palavra que foi utilizada há relativamente pouco tempo por José Sócrates e que costuma ser muito usada por críticos e estudiosos do cinema: narrativa. Diz-se, nomeadamente no âmbito deste simpósio, que a realidade se arrisca a ser ultrapassada – se não foi já – pela ficção. Pergunto-lhe também se a política não é também ela cada vez mais produzida e produtora de uma ficção?
RT – Há dois planos para essa resposta. Um é o das ficções que todos partilhamos e que nos mobilizam como seres humanos. Em certa medida, os nossos movimentos, os nossos ideais, etc. são narrativos e são ficcionais. Nesse plano muito profundo acho que todos participamos disso. Nós vivemos na cultura como os peixes vivem na água. Se um dia formos a outro planeta é porque a cultura nos levou lá. Num plano mais específico, acho que a política se arrisca a ser uma técnica completamente ressequida de emoção ou de filosofia ou até de cultura quando, por exemplo, as pessoas acreditam em algumas banalidades sobre política, do género “eu separo o plano pessoal do plano político”. Um erro, porque isso é mostrar carta branca para fazer no plano político coisas que julgaríamos desonestas ou impensáveis no plano pessoal. Ou quando as pessoas dizem “é melhor ser temido do que ser amado”, porque leram isso no Maquiavel e acham que isso também nos dá carta branca para acreditar numa coisa que no fundo, se pensarmos bem nela, é desumana. Ou que “o poder corrompe” ou “o poder absoluto corrompe absolutamente”, que é uma frase que acaba por terciarizar a nossa relação com o poder. Aos que não têm poder, diz “nós somos puros, porque não temos poder”. Aos que têm poder e se corrompem permite-lhes aquela escapatória de dizer “não fui eu, foi o poder”. Esta constelação de crenças acerca da política está a fazer da política uma técnica ressequida, sem coração, esvaziada de humanidade e isso é muitíssimo perigoso. Não esquecendo Maquiavel, pelo seu lado republicano principalmente – se calhar não pelo resto – talvez se deva voltar a Montaigne para a política e injectar humanidade na política.
CN – No cinema clássico a figura do herói é aquela que sacrifica os seus interesses pessoais (por vezes a sua vida) pelo bem comum. Hoje em dia há um pouco a visão inversa dos políticos. O que pensa disto, acha que os políticos são esses anti-heróis?
RT – É muito danosa essa visão para ambos os lados, porque impede as pessoas de se motivarem para alguma acção política. Eu diria não certamente para se tornarem fanáticos ou profissionais da política, mas para terem alguma acção política. Elas sentem essa acção política como conspurcadora da sua humanidade, como possível de entrada no campo do sacrifício do bem comum para interesses pessoais. Ainda por cima, em Portugal, essa visão vai repousar numa visão ainda mais antiga que é aquela de que o José Cutileiro, o embaixador, falava enquanto antropólogo, quando foi estudar uma aldeia no Alentejo, onde as pessoas que tinham de cumprir uma função cívica eram vistas simplesmente como vaidosas, porque estavam ali a defender o seu interesse pessoal. Se pensarmos bem, esta visão serviu muito bem a ditadura em Portugal, porque permitiu aos poderosos dizerem “deixem para nós, vocês não querem participar desta coisa feia e vergonhosa que é o poder, por isso, fiquem na vossa vida normal que nós dominamos o resto”. Diziam isto quando aquilo que nós precisamos é de distribuir a política no que tem de algum sacrifício político pessoal pelo bem comum e, portanto, fazer uma espécie de partilha dessa heroicidade. Nós não precisamos de uma herói. É aquela coisa dos 15 minutos de fama do Warhol. Se toda a gente tiver 15 minutos de heroísmo a trabalhar numa ONG para tirar os refugiados dos campos de refugiados ou para salvar um parque ou para melhorar os mecanismos democráticos, se todos déssemos 15 minutos a isso se calhar ninguém precisava de se conspurcar.
LM – É interessante que diga que não precisamos de um herói, porque existe, por assim dizer, um vício, talvez retórico, no discurso político que consiste em opor heróis a vilões como cowboys a índios. No cinema, esta visão do mundo “a preto e branco” é vista com alta desconfiança pelo espectador informado. Há uma sábia frase de Jean Renoir que desfaz estes dualismos simplistas: “O que é terrível neste mundo é que cada um tem as suas razões”. Os partidos da oposição prestam-se muito a este papel de identificar o vilão da história e o governo a identificar-se como herói nessa mesma história. Como levar a sério, hoje, uma mise en scène do poder que não sabe reconhecer muitas vezes esse espaço intermédio, e terrível, de que fala Renoir?
RT – É verdade, quer dizer, a culpa é sempre dos outros. Vemos isso na esquerda portuguesa. Perguntamos “porque é que não há convergência?” e cada partido diz “é por causa dos outros partidos”. Enquanto alguém que foi muito embebido no pensamento e na cultura libertária e anarquista desde a adolescência até hoje – continua a ser a minha tradição política de base -, a coisa mais confortável é dizer “deixa os erros serem dos outros, deixa as culpas serem dos outros”. O problema é que depois olhamos para o que vai acontecendo e vemos isto deteriorar-se tanto que a certa altura começamos a ficar preocupados: “se eu estiver só numa posição de espectador, o que é que vai acontecer?”. Aí acho que essa expressão do espectador informado… poderíamos ainda levá-la mais longe. O ideal seria sermos espectadores que pudessem entrar na tela à A Rosa Púrpura do Cairo (The Purple Rose of Cairo, 1985) e mudar algumas coisas ali para melhorar a história para todos nós. Os finais infelizes só são satisfatórios do ponto de vista estético, do ponto de vista ético são muito insatisfatórios e fazem sofrer pessoas reais.
LM – Outra palavra recorrente no debate político é “imagem”. Fala-se de marketing político para falar de todos os elementos que adornam a acção política, que a tornam vendível. Contudo, também aqui a ficção ultrapassa a realidade, quando o que verdadeiramente se vende não é a acção política em si – o marketing como meio para atingir um fim – mas já só o impacto da imagem de superfície do seu agente – o marketing como fim em si mesmo. Como desfazer esta imagem feita do político como “modelo” ou boneco e a acção política como um momento de televendas?
RT – Esse é outro daqueles clichés que todos os políticos e comentadores políticos repetem. Não deve haver uma semana em Portugal em que ninguém diga “como dizia o doutor Salazar, o que parece é”. Depois as pessoas começam a achar que isto é uma coisa banal, que justifica que faças uma política onde o que parece é e que a pessoa é só superfície e não é interna. O que depois também, por seu lado, obriga toda a gente a agir como se fosse uma espécie de ovo com a casca duríssima, mas com o interior completamente putrefacto, quando se calhar isto devia ser tudo ao contrário. A nossa frase de referência deveria ser qualquer coisa como “o que é aparece”, ou seja, primeiro nós temos de ser qualquer coisa, primeiro nós termos de ter algum cerne moral e esse cerne moral tem de aparecer em qualquer momento. É muito triste que em Portugal o ditador Salazar ainda seja personagem de referência em relação ao que é a política, em vez de ser o Aristides de Sousa Mendes, precisamente um daqueles casos em que “o que é aparece”. Ele era genuinamente um homem bom, um católico torturado. Não deveria ter feito nada daquilo que fez se seguisse as regras. A certa altura ele disse “por causa daquilo que eu sou eu tenho de aparecer de outra forma, aparecer de uma forma que viola as regras”. Essa deveria ser a nossa personagem de referência.
LM – O tal herói se calhar…
RT – O tal herói por 15 minutos. Ele foi herói por três dias, a carimbar passaportes. Não foi herói a vida toda. Só que esses três dias sacrificaram a vida dele toda. Se muita gente tivesse sido herói não por três dias mas por três minutos de cada vez, se todos os diplomatas de todos os serviços diplomáticos da Europa fossem heróis três minutos por dia, provavelmente isso teria sido melhor distribuído. E o Aristides de Sousa Mendes teria sido só um exemplo da banalidade do bem, para contrapor à frase da Hannah Arendt.
CN – É comum dizer-se que vivemos numa sociedade hiper-mediatizada, onde as imagens nos rodeiam, mas poucos de nós conseguimos ter o efeito de ecrã, isto é, de distanciamento em relação às imagens. Que responsabilidade tem a classe política nessa educação para a imagem?
RT – Acho que tem uma responsabilidade muito grande, mas acho que também temos uma responsabilidade como cidadãos. Nós agora vivemos num período de escândalo mais ou menos permanente, de indignação mais ou menos permanente, que nos permite satisfazer a nossa pulsão crítica todos os dias, com o escândalo do dia, mas que ao mesmo tempo nos permite um bocadinho ser cegos aos verdadeiros escândalos como haver gente a morrer no Mediterrâneo. Há milhares de refugiados à vista em fronteiras do território europeu, como na Síria que é a 60 km do Chipre. Ou escândalos como o da fuga aos impostos através do Luxemburgo. Esses verdadeiros escândalos ou são demasiado complexos ou demasiado dolorosos para conseguirmos olhá-los de frente. Nós acabamos por nos habituar como cidadãos a uma espécie de dieta do escândalo que é um bocado obnubilante. A sociedade dos ecrãs potencia muito isso. Antes éramos consumidores mais passivos desses escândalos via televisão. Agora a coisa é actual e, portanto, é bidireccional. Nós também tocamos nos ecrãs para potenciar esses escândalos, com likes, etc. e etc. Preocupa-me bastante que isso nos faça perder de vista o essencial.
CN – Um ex-dirigente comunista que perdeu a memória e passa os dias a jogar polo aquático grita: “as palavras importam”. Cito uma cena de Palombella Rossa (1989) de Nanni Moretti. As palavras importam, mas em política umas pesam mais que outras. A palavra cultura, por exemplo, raras vezes aparece no discurso político e quando aparece nem sempre é claro o que de facto ela significa. Qual é hoje o verdadeiro peso ou valor de uma palavra do espírito, que resiste ao transitório, num mundo sufocado por imagens de rápido consumo?
RT – Ela está ligada ao espírito, mas não é um espírito desmaterializado, é um espírito que encontras no património, nas práticas quotidianas, na criatividade, numa série de coisas. Por exemplo, não percebo nunca porque, para além de exigirmos a reinstituição do Ministério da Cultura em Portugal, não exigimos que, além disso, esse ministério tenha de ficar com a pasta da reabilitação urbana; porque é que achamos que isso tem de ir para um ministério de engenheiros que é o Ministério das Obras Públicas. Falta muito injectar densidade no entendimento que as pessoas têm de cultura e isso passa por decisões às vezes simbólicas e de ruptura nas políticas, como quando André Malraux foi o primeiro ministro da Cultura e antes ninguém tinha pensado que pudesse haver. Hoje em dia é preciso entregar a um Ministério da Cultura competências que ninguém esteva à espera que tivesse, para que as pessoas se habituem a olhar para ele de uma outra forma.
LM – Há uma frase em La chinoise (O Maoísta, 1967) de Jean-Luc Godard que gostava de chamar a esta conversa: “uma minoria com as ideias certas não é uma minoria”. Eu inverteria: “uma maioria com as ideias erradas não é uma maioria”. Como interpreta estas frases?
RT – Gostava de concordar (risos), mas o problema é que uma maioria com as ideias erradas é mesmo uma maioria, como vimos no nazismo e em muitas outas ocasiões. E a minoria com as ideias erradas também. Vês, por exemplo, bolcheviques contra mencheviques. Os bolcheviques, na verdade, eram uma minoria e decidiram usar como seu nome “bolchevique” que quer dizer “os maioritários”. E depois tiveram também uma minoria política, tiveram 7% ou assim nas eleições desse mesmo ano. Não, as ideias certas não são produto de minorias ou maiorias, elas são uma coisa que temos de conquistar a pouco e pouco. Uma das coisas que me preocupam nesta dicotomia que as pessoas fazem entre democracia representativa e democracia directa, como se tivéssemos de escolher uma pela outra, é que às vezes acredita-se que a democracia directa é possível no vácuo, sem pressupormos uma espécie de sabedoria instantânea. Se nós conhecermos tudo sobre todos os assuntos, claro que podemos estar com o dedo no botão a mudar e a acertar sempre, mas nós não somos engenheiros em tudo, não conhecemos bem como é que funciona um banco por dentro… e para tudo isso precisaríamos daquilo que eu, e muita gente, chama democracia deliberativa, ou seja, dar atenção ao processo. Nós não nascemos todos os dias com as ideias certas e isso às vezes é de uma enorme arrogância nossa, seja como políticos ou cidadãos. Nós temos de procurar ideias mais certas daquelas com que acordamos todos os dias. É diferente, é uma visão completamente diferente. Temos de procurar adormecer à noite com ideias melhores que aquelas com que acordámos. E no outro dia repetir esse ciclo. Portanto, não pertencem a uma minoria ou maioria.
LM – Nessa relação entre o indivíduo e as instituições e também a lei e a moral, citaria de novo uma frase num filme de Godard, concretamente Film socialisme (Filme Socialismo, 2010): “Quando a lei não é justa, a justiça passa antes da lei”. Falando do cinema, temos o caso recente dos júris de atribuição dos fundos do ICA e da demissão de vários agentes culturais relevantes não tanto provocada pelo desrespeito da lei mas pela sua, alega o grupo, dúbia moralidade, já que favorece a nomenklatura da televisão [situação exposta aqui e aqui]. Temos distribuidores comerciais a advogarem bloqueios a projecções de filmes na Cinemateca Portuguesa invocando a lei [ver aqui e aqui]. Preocupa-o esta visão legalista da cultura em democracia?
RT – Claro, evidentemente. Nós temos duas maneiras de olhar para a ética: ou a ética é um conjunto de regras que seguimos de forma meramente procedimental e chegamos ao fim do dia e dizemos “salvei o couro, não vou ser despedido, ninguém se vai chatear comigo, porque o livrinho das regras está aqui e ao fim do dia posso pôr uma cruzinha nos quadrados todos” ou vemos a ética como uma cultura que tem de ser permanentemente renovada e em que a justiça tem de aparecer antes da lei, porque a lei injusta ou já foi feita injusta e a sua intencionalidade está errada ou foi feita como justa e não se aplica àquele caso por alguma razão que não foi prevista. Portanto, a aplicação da lei nesse caso acaba por redundar numa injustiça. Nitidamente o que devemos fazer é escolher a ética como uma cultura, incluída de valores, princípios e morais e incluída de escrúpulos também, que são, por exemplo, ter consideração pelos outros, procurar ouvir, procurar pormo-nos no lugar dos outros, procurar não levar as nossas certeza longe de mais, procurar tanto quanto possível que as expectativas sejam cumpridas, que os direitos adquiridos não sejam perdidos, que os indivíduos não sejam prejudicados. Tudo isto são obrigações mais genéricas de uma espécie de fraternidade humana que, do meu ponto de vista, aparece antes do Estado e deve permanecer depois do Estado também.
– Espaço Público e Usos do Cinema-
CN – Não teme a destruição do espaço público quando tudo está à venda e em concorrência?
RT – Sim. O espaço público na Europa tem uma história e ela não é muito longa. Costuma situar-se esse nascimento no século XVIII. Nasce da ideia de que não existe só um espaço privado, um espaço do Estado, mas um espaço que é diferente, distinto destes dois, que de certa forma está entre os dois e que podemos chamar de espaço público, espaço cívico ou cidadão. Sem o nascimento desse espaço público não teríamos tido direitos humanos, democracia, não teríamos tido conquista de segundas e terceiras gerações de direitos, direitos laborais ou de carácter ambiental, ou até direitos de quarta geração, como direito a ter direito a ser informado e participar em decisões colectivas, ter direito a uma democracia de alta qualidade, ter direito a responsabilização na implementação de políticas, etc. Tudo isso depende de um espaço público. Um fenómeno preocupante hoje em dia é o da mercantilização do espaço público. Ele sempre teve aspectos que poderiam ter a ver com o comércio, como os jornais, mas estamos a assistir a uma excessiva mercantilização do espaço público. Na Europa, nalguns casos, há o nascimento de governos mais autoritários que perseguem os actores desse espaço público. Isso faz que um jornalista em determinados países da Europa se não é perseguido pelo governo é demitido por razões, digamos, do quotidiano neo-liberal. As duas coisas juntas provocam uma enorme compressão do espaço público que, a acontecer, será muito prejudicial para nós nos próximos 20 ou 30 anos. Temos noção de outros ciclos semelhantes na história da Europa que levaram a maus resultados. Por exemplo, nos anos 10, 20 e 30, havia um discurso muito claro que era anti-parlamentarista. As autoridades, alguns políticos e cidadãos queixavam-se que havia demasiadas opiniões, demasiado dissenso, que a democracia não era eficaz e não permitia resolver problemas, que havia partidos a mais e que as ideologias enfraqueciam o corpo da nação. Todas essas coisas atacavam o espaço público na sua essência, que é o pluralismo.
LM – Para pessoas que se interessam pelo cinema e pela evolução da experiência e usos do cinema, é curioso pensar que a sala de cinema nasce dentro de um modelo de sociabilidade muito próximo ao da rua – as pessoas expressavam-se, falando, gritando, pulando na cadeira, como se estivessem na rua -, mas vai progressivamente aproximando-se da experiência solitária do quarto. Há também esta remissão para o espaço enclausurado do privado.
RT – Apesar dos tecno-optimistas – e eu até tendo a ser mais tecno-optimista que tecno-pessimista – terem sempre aquela ideia de que as revoluções tecnológicas impõem realidades novas, há uma sequência muito clara, da ópera para o teatro e para o cinema, em que as mesmas sociabilidades transitam de uns tempos tecnológicos para os outros e que, de certa forma, se perderam. Mas estava a pensar noutra coisa que tem a ver com o cinema. Vocês viram como a ideia de promessa europeia, que é muito menos partilhada que a ideia de sonho americano, foi transportada para o cinema. Tem aspectos que são um bocadinho simplificadores em demasia, mas também tem aspectos de mobilização das pessoas. Quando falta algum elemento, que seja a chegada à universidade ou o sistema de saúde, aí as pessoas do sonho americano dizem “onde está o sonho americano?”. A promessa europeia não foi trabalhada culturalmente por ninguém. Vocês vejam que se fala muito da Europa, mas há uma enorme falta uma conversação intelectual europeia global, por exemplo, acerca de como o colapso dessa promessa europeia levou à Primeira Guerra Mundial e depois à Segunda. E isso destitui os cidadãos de armas para quando os seus direitos fundamentais são violados, quando a democracia é desrespeitada ou quando nos encontramos numa situação social que é aquela que nos foi prometida no pós-guerra, que é de prosperidade partilhada, aos cidadão vão faltando ferramentas para exigir “onde é que está o cumprimento da promessa que me fizeram?”. Isso em parte tem a ver com a ficção e o cinema não terem transportado [a promessa europeia], seja num discurso mais sofisticado, seja num discurso mais simplificador. Ao contrário do sonho americano e de equivalentes, para a Índia e para o Brasil e que foram transportados por uma indústria cinematográfica. A indústria cinematográfica europeia tem alguns subsídios e tem algumas protecções legais, mas não tem o que seria o seu grande motor que é meia dúzia de mitos com os quais possa funcionar, por causa da diferença da história europeia. Por exemplo, onde é que está um bom filme sobre a Liga dos Campeões, que é uma coisa que todas as semanas os europeus vêem? Ou sobre o Interrail? Isso não existe. Quando vemos um filme sobre Erasmus – eu não vi o filme, sempre tive medo que fosse muito fraquinho e nunca o quis ver [L’auberge espagnole (A Residência Espanhola, 2002)] -, mas o impacto foi absolutamente enorme, porque estava a mexer com os mitos tal como certa cinematografia norte-americana, indiana ou brasileira faz.
CN – Reside um pouco aí, se calhar, a ideia desse seu tecno-optimismo. A ideia de trabalhar dentro das tecnologias, não só o cinema, hipóteses novas.
RT – Eu acho que cada vez que temos novas ferramentas tecnológicas, temos novas maneiras de transportar boas ideias, mas más ideias também. É claro que o meu enfoque nunca é no tecno, seja optimista ou pessimista, mas nas ideias: se não tivermos boas ideias para transportar nas novas ferramentas tecnológicas, nós estamos em perda. Em última análise, o conteúdo é que importa. Acho que o McLuhan estava correcto, mas não chega o que ele disse. Nós precisamos de bom conteúdo e o conteúdo é sempre o catalisador. Agora, claro que o bom conteúdo é aquele que entende o seu meio! Tolstói é bom conteúdo porque entendeu bem o meio do romance e do folhetim. E o mesmo para o cinema, para a música, etc.
CN – Embora a questão do tecno-pessimismo também seja um bocadinho: de que forma o medium vai determinar as hipóteses do conteúdo?
RT – Ainda uma hipótese mais meta, se quiseres, que é: tu às vezes tens óptimo conteúdo em excelente meio tecnológico, com um tema tecno-pessimista, para obrigar as pessoas a pensar acerca de como é se tivermos mau conteúdo e más ferramentas. Foi citado aqui [no simpósio] Relatório Minoritário (Minority Report, 2002), que nitidamente é um filme que está bem feito e toca nalguns botões correctos acerca do futuro. E podes ter ainda melhor, com mais qualidade e excelente conteúdo. Às vezes o tecno-pessimismo é uma atitude meramente profiláctica e, por isso, ela é tão entusiasmante. Até um tecno-optimista pode gostar de uma boa distopia negra, porque encontra ali conteúdo acerca de um futuro possível para construir desejavelmente os outros.
LM – É curioso falar dessa relação entre conteúdo e meio. Há uma tese de João Mário Grilo, que ele expôs há dias na Cinemateca Portuguesa apesar de ser antiga [A Ordem no Cinema], que desfecha com uma crítica ao audiovisual europeu. Se calhar, para cimentar uma certa identidade europeia, a Europa teria os conteúdos na mão, mas não entendeu o medium. Tentou fazer uma espécie de Hollywood à sua maneira, que resultou um pouco pífia. Não se soube adequar ao meio, à linguagem do meio.
RT – Acima de tudo, a Europa não entendeu a Europa por uma razão simples: a Europa é difícil, a Europa é difícil de entender. É muito fragmentada, passa por muitas metamorfoses. Não é aquilo que é hoje, que às vezes sentimos como natural. Passou por impérios, feudos, guerras religiosas, tem muitas linguagens, muitas etnias, etc. Existe uma dificuldade da Europa entender-se a si mesma. E claro que seria preferível que ela se entendesse a si mesma de uma forma densa. Por exemplo, a Índia tem tudo isto, mas tem mais facilidade em entender-se a si mesma por causa de uma experiência traumática: foi colonizada. Com ainda mais línguas, religiões, gente, que nunca tinha vivido num Estado unificado, foi comprimida pelo colonialismo naquela forma, que não é só um Estado, apesar de tudo são três: Índia, Paquistão e Bangladesh – e ainda podíamos juntar Sri Lanka, etc. Mas na Europa, sem esta experiência, com outras experiências traumáticas, existe uma dificuldade maior em fazer florescer um discurso europeu que diga algo às pessoas. Portanto, só temos duas coisas: ou uma data de discursos fragmentados ou então os “euro pudins” que não dizem nada a ninguém.
CN – No meio do cinema nacional existe uma espécie de guerra civil entre aqueles que defendem a criação de uma indústria do cinema português e aqueles que defendem o cinema português como expressão não-reprodutível da visão singular de um autor. Perguntava-lhe se acredita na criação de uma indústria do cinema português.
RT – O cinema, acima de tudo, tem de ser plural. Escolher uma versão pela outra seria nitidamente empobrecedor, embora possa ter as minhas preferências enquanto espectador. Eu acho que o cinema não tem de ser especificamente nacional, mas se houver gente com essa vontade muito bem. Acho que temos uma série de possibilidades de cooperação – não só para o cinema, também para as universidades, para a indústria editorial, o jornal, para os portais, como o vosso e outros – seja multilinguística à escala europeia, seja multinacional à escala da lusofonia. De vez em quando, vai acontecendo. Não devemos nada ter esta dicotomia sempre permanente em Portugal entre ser um país pequeno ou então sermos um país com ilusões de grandeza. Nós somos, como todos os países, um país na encruzilhada. Devemos usar os vários caminhos à nossa disposição, seja para fazer uma coisa especificamente paroquial e depois vemos – como o Miguel Gomes – que transporta valores universais, transporta uma diferença que os outros querem ver, seja para fazer coisas que não sejam nacionais. Filmam-se poucos autores estrangeiros em Portugal. O João Botelho fez Tempos Difíceis (1988) a partir do Dickens e o João Mário Grilo foi muito beber à fonte de O Silêncio de Shusaku Endo para fazer Os Olhos da Ásia (1996). Poderia haver mais. Por que não pode haver um filme português feito em Cincinnati?
CN – No discurso político, o cinema tem surgido como elemento de atracção de dinheiro, nomeadamente na área do turismo. Esta ideia de um cinema que promova as paisagens e produtos portugueses atingiu o seu zénite quando foi lançada uma campanha, que envolvia o poder local, para convencer Woody Allen a vir rodar um filme em Lisboa. O que pensa disto?
RT – Para isso há uma resposta mais pueril e uma mais pensada. A mais pueril é: claro que gostava de ver o Woody Allen a filmar em Portugal, porque eu gosto do Woody Allen como gosto das estações. Todos os anos ele tem um filme novo, uns são melhores, outros são piores. Mas o facto de haver aquela espécie de regularidade sazonal no cinema do Woody Allen é parte do seu apelo, mesmo que aquele filme daquele ano específico não seja bom. Também enquanto um apaixonado por Lisboa, gostava de ver aquele olhar sobre Lisboa. Qual a resposta mais pensada? Acho que Lisboa tem sempre a perder se for atrás da moda do momento. É um bocadinho aquele síndrome Parque Mayer do Frank Gehry. “O Frank Gehry tinha feito uma coisa em Bilbau, bora buscar o Frank Gehry para Lisboa!”. Temos sempre a ganhar quando estamos à frente da curva. Lisboa, como cidade geograficamente à frente do resto da Europa, devia sentir-se nessa obrigação de inventar a próxima moda, de descobrir antes o próximo foco de interesse. De vez em quando acontece. Quando o Siza reconstrói o Chiado é muito antes do Siza se comunicar a toda a gente. Nós temos muita gente a filmar em Lisboa. Ainda não vi Os Maias (2014), infelizmente, mas até filmá-la pintada, de certa forma! Parece que há Bollywood filmada em Lisboa, isso também é interessante. E por que não buscar cineastas emergentes e tê-los em Lisboa ou no Porto, nos Açores ou onde quer que seja.
CN – Falava disso a propósito também da diferença que existe entre uma cidade como homenagem e inspiração e um discurso de product placement.
RT – Até o nosso product placement vai ser muito melhor se, no meio de vários cineastas a filmar em Lisboa, de repente tivermos uma jogada ou uma série de jogadas da sorte. Se pensarmos bem, Roma não é definida só por um filme, Londres não é definida só por um filme e Lisboa não é nem será definida só por um filme. O Porto, mesmo tendo um cineasta muito forte como Manoel de Oliveira, não é definido só por um filme. Em vez de termos uma jogada da sorte, tipo como Barcelona com o Woody Allen, o que é importante é ter uma cidade que é tão viva, tão específica, com uma personalidade tão invulgar – caso de Lisboa e nitidamente do Porto, duas personalidades contrárias, como Tolstói e Dostoiévski, Chico e Caetano Veloso, é difícil dizer quem é mais especial. Uma cidade dessas nunca está perdida. Uma cidade dessas vai fazer um Fernando Pessoa hoje ou um cineasta qualquer amanhã ou vários.
CN – Mudando de tema, tenho uma pergunta provocatória: faz download de filmes?
RT – (Risos) Não faço download de filmes por uma razão muito simples, mas que me protege. Sou um grande nabo nessas coisas, também tenho pouco tempo para ver filmes. Há outra razão: também tenho tido nos últimos tempos dinheiro, portanto, possibilidades de comprar filmes. Quem tem e pode comprar, deve comprar. Sou autor também, não autor de filmes, mas de livros. Acho é que há um erro ou uma dicotomia muito acentuada, em que certas pessoas santificam os copyrights e direitos de autor e, com isso, estão a correr o risco de antagonizar uma cultura e uma geração inteira de gente, de criminalizar uma geração de gente – já não é uma geração, é toda a gente! Isso é muito indesejável, porque não permite ver os direitos de autor como aquilo que eles são: uma ferramenta imperfeita, que pode ser melhorada, que pode até ser substituída. Substituída não só por uma, mas por uma pluralidade de outras ferramentas, para manterem um espaço público, um espaço criativo e plural em que haja uma consideração profunda pelo facto cultural. Por exemplo, pode até parecer um tema menor neste debate dos direitos de autor, mas nós temos um formato em todos os países desenvolvidos, que historicamente se substitui aos direitos de autor, que é a biblioteca e que hoje está sob ataque. Faz-me imensa impressão não ver uma defesa das bibliotecas, talvez porque eu sem bibliotecas talvez não me teria formado. Mas isso demonstra que, mesmo nos tempos em que os defensores dos direitos de autor, do copyright e das patentes se pretendem agarrar, eles nunca tiveram predomínio absoluto e houve sempre espaços de fruição cultural gratuitos, tendencialmente gratuitos. E se formos para antes, todos os romancistas que viveram de direitos de autor, Camilo Castelo Branco, Dickens ou Mark Twain, também tiveram de conviver com gente que lia os livros em voz alta para quinze ou vinte pessoas ou que contava como a história acabava. Portanto, não santifiquemos os espaços, digamos, de compensação pela criatividade, até porque eu tenho a certeza que muita da gente que está a fazer download de filmes agora está a fazer melhores filmes no futuro, de que a indústria se vai aproveitar para fazer bastante dinheiro. Há um lado quase de policiarização por parte da indústria cinematográfica, mas não só, que é tão pressionante que se arrisca a matar o próprio espaço de que ela depende para ter criatividade e novos produtos.