Anos 30. Hollywood. Acha uma pessoa que é a década dos diamantes em bruto, com som muito rudimentar, câmaras instáveis, filmes de um realismo estarrecedor, e leva quase duma assentada com vários diamantes polidos em cima: Design for Living (Uma Mulher para Dois, 1933) de Ernst Lubitsch, Cleopatra (Cleópatra, 1934) de Cecil B. DeMille e Ramona (Ramona, 1936) de Henry King. Depois, lembra-se doutros: The Big Trail (A Pista dos Gigantes, 1930) de Raoul Walsh, Barbary Coast (Cidade Sem Lei, 1935) de Howard Hawks, Mary of Scotland (Maria Stuart, Rainha da Escócia, 1936) de John Ford ou Fury (Fúria, 1936) de Fritz Lang, por exemplo. Têm muito que se lhe diga, estas coisas, e descrever décadas com três ou quatro adjectivos peca pela injustiça a essa década maravilhosa, em que se fez não só a transição do mudo para o sonoro, como também a dos maiores deboches e safadezas filmados para a vingança do código que tentou suprimir toda a imoralidade do ecrã mas, no processo, activou o génio e a imaginação tanto da gente que fazia os filmes como da que os via. Por The Sign of the Cross (O Sinal da Cruz, 1932), do tão mal-interpretado Cecil B. DeMille, talvez atravesse tudo isto.
Cecil Blount DeMille nasceu em 1881 e é um dos pioneiros. Começou no teatro sob a alçada do irmão (William Churchill de Mille) como actor, e, numa dessas voltas que a vida costuma dar, conheceu Jesse L. Lasky e Samuel Goldwyn, que o incumbiram de realizar The Squaw Man (O Exilado, 1914), filme que voltou a fazer duas vezes, uma em 1918 (filme dado como perdido), outra em 1931. Assistiu e tomou parte da invasão à então muito pacata California, de arma sempre na mão (imagino eu), para fugir aos capangas da Patents Company de Edison, que mesmo do outro lado da América, espiavam e perseguiam as companhias independentes, como aquelas em que trabalhavam DeMille ou Allan Dwan. A melhor história que conheço sobre estes tempos é mesmo de Dwan, foi contada a Peter Bogdanovich no monumental livro The Last Pioneer, dedicado a Dwan, e não resisto a traduzi-la: “Um dia em La Mesa, um personagem com aspecto de durão saiu do comboio e foi-me procurar. Ele disse que tinha sido enviado para garantir que eu e a minha companhia saíamos de lá e desistíamos de fazer filmes. Bom, demos um passeio pela estrada acima para falar sobre o assunto. Eu não tinha saído da faculdade há muito tempo e estava em boa forma física. Por isso queria levá-lo longe o suficiente para fora da cidade e ver se não era capaz de lhe dar uma coça. Parámos numa ponte por cima dum barranco para onde as pessoas tinham atirado algumas latas. Havia uma brilhante lá pousada, por isso para me impressionar, ele sacou duma pistola do coldre do ombro e disparou para a lata e falhou-a por mais ou menos cinco metros. Eu tirei a minha pistola e acertei na lata duas vezes, e nessa tarde ele abandonou a cidade. E também foi acompanhado pelos meus cowboys bem armados para a estação ferroviária. Daí em diante nunca mais fomos incomodados. Mas essa era a razão por que íamos para lugares remotos. Afastávamo-nos o mais que pudéssemos de Nova Iorque.”
No ano seguinte, mas 21 filmes depois (entre curtas e médias-metragens), DeMille fez The Cheat (A Marca de Fogo, 1915), filme já carregado de sombras e sadismos demoníacos, como o mostra o encarceramento do corrector da bolsa e essa cena insana em que Toni ferra a fogo as costas da mulher que perdeu tudo ao jogo (na bolsa) e teve a infelicidade de lhe pedir a ele dinheiro emprestado para saldar as dívidas. Filme da glória de DeMille e que lhe permitiu aumentar os orçamentos dos seus filmes durante os anos seguintes. Entre 1914 e 1919, DeMille realizou quase metade da sua obra, e se a partir daí abrandou foi porque começou a pesquisar cada vez mais e a esforçar-se por que cada pequeno pormenor estivesse perfeito. E não só isso, a partir de certa altura começa a produzir soberanamente os seus filmes, sem prestar contas a ninguém a não ser ele próprio. Em rodagens ou nos plateaus da história do cinema parece que só Erich von Stroheim gritou mais alto e, mesmo assim, há quem duvide. Mas o que é que isto interessa? Pouco, que os filmes são os filmes e é dos filmes que se tem que falar. Do mudo, pouco mais conheço, mas não escapa uma menção ao primeiro The Ten Commandments (Os Dez Mandamentos, 1923), da divisão dos mares durante o “prólogo” à perdição nos mares no fim da “história” (“prologue” e “story” são os nomes das duas partes do filme), passando pelos desabamentos e tempestades que lembram os homens que não podem tudo, como também não podem levar esta vida sem pensar nas consequências das suas acções – e isto acima de qualquer mensagem bíblica, que o fervor e o fanatismo religioso também não são vistos como solução para coisa alguma.
Entre Dynamite (Dinamite, 1929), o seu primeiro filme sonoro, e The Sign of the Cross, DeMille realizou Madam Satan (Madame Satan, 1930) e a última adaptação de The Squaw Man (O Exilado, 1931), com Warner Baxter – o médico prisioneiro em Shark Island do filme homónimo de John Ford e o capitão La Roche de The Road to Glory (A Grande Ofensiva, 1936) de Howard Hawks. Madam Satan é dessas comédias de enganos e desenganos cheias de classe e agudeza e acima de tudo muito complexa, que por estes anos se faziam, além de ter uma sequência de pára-quedas com mulheres a espernearem-se ao desbarato (e quantas pernas e quanto das pernas se vê neste filme) e essa bela Lilian Roth de carreira tão curta mas que pelo que fez com Lubitsch e DeMille já deixou mais do que algumas actrizes de carreira prolífera. Quem a viu, não a esqueceu a cantar “Let’s Be Common” com Lupino Lane na The Love Parade (Parada do Amor, 1929) de Lubitsch ou o ditame “Don’t you dare to say a word against the Queen, the Queen is always right!” que faz rebentar a discórdia na mesa de jantar dos criados da rainha. A estória de The Squaw Man já era conhecida mas não deixa de impressionar essa trama de dilemas e diálogos com a consciência que desmentem em tudo o moralismo apontado ao cineasta. Filme irmão dos frescos históricos interpretados por Gary Cooper, The Plainsman (Uma Aventura de Buffalo Bill, 1936), North West Mounted Police (Os Sete Cavaleiros da Vitória, 1940) e The Unconquered (Inconquistáveis, 1947). A quem os chama de racistas e misóginos, apetece dizer “Listen”, como quando nesses três filmes, as tropas estão perdidas, feridas e abandonadas ao inimigo e se ouvem ao longe os clarins do exército, tudo se cala e em crescendo se vão ouvindo cavalos a galope, ordens de capitães e os ecos da salvação ressoam nesses vales longínquos. A toda a beleza se deve toda a nossa atenção. E guardo o final de Mounted Police, em que a narrativa se resolve a cavalo pelas florestas do Canadá com a escolta e a conversa surpreendentes de Madeleine Carroll e Preston Foster com Gary Cooper até à fronteira com os Estados Unidos. Selos de amizade para a vida, a galope em direcção às próximas fortunas.
Sem querer deixar de lado o resto, que isto já se extende demais, que dizer de The Crusades (As Cruzadas, 1935), ou de Union Pacific (Aliança de Aço, 1939)? De Reap the Wild Wind (O Vento Selvagem, 1942), de The Story of Dr. Wassell (Pelo Vale das Sombras, 1944)? Ou dos últimos três filmes, que talvez contenham em si tudo o que preocupa e encanta e significa e apaixona Cecil Blount DeMille? Das trocas de sangue, dos desastres de comboio, do mote belo e terrível “you kill the thing you love” que atravessa talvez todos os filmes do americano como uma flecha, tornando tudo urgente, presente (“Ontem como Hoje”) e absolutamente demencial. Enchem-se os filmes de grandes cenários e belas jóias e bestas inomináveis e personagens maiores que a vida por capricho e abuso de poder ou ao serviço destas histórias eternas de amores loucos em terras onde o poder era muito e a perdição mais que provável? “Listen”… Cleópatra acena com a cabeça ao cúmplice Apolodoro e lentamente, a câmara afasta-se enquanto se fecham cortinas, se deitam amantes, dançam belas concubinas e, ao sinal de Apolodoro, remam os escravos pelo Mediterrâneo da perdição de Marco António ao som de tambores e dessa música hipnótica e retumbante que até ali só muito calada se fazia ouvir. Não se podem censurar exageros nos cenários, nas roupas e nos gestos, quando eles são o dínamo absoluto das acções dos personagens. E tão discretamente apresentados, aos poucos e em crescendo, enquanto a Cleópatra de Claudette Colbert seduz o Marco António de Henry Wilcoxon com arte suprema e iguarias estonteantes, até esse êxtase final já descrito.
The Sign of the Cross é da mesma cepa e da mesma envergadura. É o primeiro de três filmes que DeMille fez com Claudette Colbert, que embora seja aqui personagem secundária, maquina toda a perdição do prefeito de Roma, Marcus Superbus, por o amar desmedidamente. É apresentada com os mamilos amparados em leite de burra, quando chega a amiga dos banhos e dessas tramas de gente poderosa que acaba na chacina de pobres inocentes. Manda as aias dar uma curva e convida a amiga para junto dela. “Take your clothes off and tell me all about it”. Segue-se um plano dumas pernas a desembaraçarem-se do que é acessório e não é preciso muita imaginação para saber o que se segue ao corte para negro. Estamos na Roma do imperador Nero, aqui fantoche de prefeitos da guarda imperial e da mulher, que se apaixona pelo prefeito da capital do Império Romano. Perseguem-se cristãos nesses tempos e o Marcus Superbus de Fredric March comete a imprudência de se apaixonar pela devota Mercia, interpretada por Elissa Landi. Não é difícil de prever o que acontece a seguir, mas os blocos narrativos, elaboradíssimos, são tão precisos, que tudo se torna novidade, movimento e fatalidade. Hei-de fazer o exercício de contar as cenas deste filme de mais de duas horas e que parece tão habilmente comprimido. São, quê, sete, oito? Por agora, descrevo esses planos terríveis, colocados a dedo depois de todas as atrocidades mostradas na arena, entre mulheres bárbaras a decapitar pigmeus de África, crocodilos a comer mulheres atadas a espetos: a da subida dos leões para a arena. Trinta segundos de bestas atiçadas por romanos com sede de sangue e tornados por estes instrumentos de chacina. O que na arena se passa depois disso, não nos é mostrado, mas sente-se na subida a custo e a passos pesados do grupo de cristãos que tem de ir ter com os animais para divertir as multidões romanas. O campo e o contra-campo. Junte-se a ela a jura de amor eterno de Marcus e Mercia (só talvez Borzage, Dreyer e Mizoguchi a tenham superado) e as palavras já não chegam. “Listen”…