Em certo momento de Virados do Avesso (2014) um personagem ri-se da desgraça de outro. O outro ofende-se. O primeiro justifica-se: “não me estou a rir de ti, estou-me a rir genericamente da situação”. Quando me rio no último filme de Edgar Pêra não meu rio da sua desgraça nem sequer da desgraça do/de filme, rio-me sim genericamente da situação caricata de ver um filme onde cada frame evidencia sem qualquer pejo as suas intenções comerciais: cores à revista Maria, música brega de Anselmo Ralph pelo próprio, mamas e patarecas em ondulantes danças de varão, o Hot Jesus em grande plano a cada cinco segundos e um humor paredes meias com o brejeiro de domingo à tarde. A este respeito talvez seja bom relembrar as palavras de David Foster Wallace sobre a diversidade sincrética da televisão-entulho – que se aplicam aqui sem tirar nem por -, “TV is the epitome of low art in its desire to appeal to and enjoy the attention of unprecedented numbers of people. But TV is not low because it is vulgar or prurient or stupid. It is often all these things, but this is a logical function of its need to please Audience. And I’m not saying that television is vulgar and dumb because the people who compose Audience are vulgar and dumb. Television is the way it is simply because people tend to be really similar in their vulgar and prurient and stupid interests and wildly different in their refined and moral and intelligent interests. It’s all about syncretic diversity: neither medium nor viewers are responsible for quality.”
E se a comparação é feita com a televisão não é certamente por acaso, Virados do Avesso é em quase todos os ângulos um produto de televisão que se projecta num ecrã mais largo: dos actores aos técnicos, passando pelos produtores [Ana Costa e Nicolau Breyner, a capitalizarem o sucesso de 7 Pecados Rurais (2013) – em versão low-cost e fast food, um orçamento de 600 mil e apenas 3 semanas de rodagem] e argumentistas (seis mãos!) praticamente todos têm origem no pequeno ecrã. Essa filiação entre sucesso no cinema e origem televisiva tem-se mostrado nos últimos anos muito evidente, desde o retumbante sucesso de Morangos com Açúcar – O Filme (2012) ao já referido 7 Pecados Rurais, a maioria dos “objectos para o grande público” do cinema nacional dos últimos anos têm sempre tentado capitalizar no pequeno ecrã (pelos temas, pelas figuras – “estrelas” – e pelas formas) e a verdade é que outros produtos assemelhados como O Bairro (2013) ou Ruas Rivais (2014) onde essa relação entre pequeno e grande ecrã não estava presente a priori, falharam redondamente na criação do público desejado. Que pode isto revelar sobre a natureza do “grande público” português? Não sei, o que sei é que tal perfilhamento de um ecrã pelo outro (inverso da relação de grandeza e não o contrário) garante objectos praticamente incaracterísticos e profundamente repetitivos. Virados do Avesso é-o em grande medida, apesar de nele haver sempre vários elementos do experimentalismo de Pêra a quererem brotar.
Alguns desses elementos passam por um certo histerismo que nem as comédias televisivas de onde parte conseguem alcançar – e espero que Pêra não comece a citar as screwballs e slapstick do cinema clássico que para essa alienação já nos basta o Vasconcelos. A constante gritaria, a desmultiplicação de diálogos, de efeitos sonoros de cartoon e de secundários (um Rui Unas-nariz de 4 minutos, um Breyner-estetoscópio de 3, um José Wallesnstein-dentadura em 2 e uma Bárbara Guimarães-sem-acessório de apenas 1 minuto) acompanhados por uma câmara instável sempre indecisa entre o time lapse e o slow motion. Entremeado nesta verborreia e imajorreia encontramos o dedinho de Pêra a brincar com as suas sobreposições – as faces dos protagonistas sobrepostas no momento do pedido de noivado – e a infectar a vulgaridade televisiva com o seu Nuno Melo de capachinho que sozinho fazia um filme. Da forma como Pêra se manifesta, e de como apesar de tudo este é um filme reconhecivelmente seu posso afirmar que a partir deste momento é o primeiro auteur vulgar português – donde não se deve retirar qualquer elogio…
Mas fora toda a patetice há a questão da provocação dos costumes e da “comédia romântica atípica”, e é por aqui que se deve ler o filme. Virados do Avesso conta a história de um escritor famoso (Diogo Morgado numa versão masculina da Margarida Rebelo Pinto) que estando prestes a acabar o seu último romance, onde revela a sua homossexualidade, sofre uma “amnésia para-simpática selectiva” onde esquece que é gay (ou picolé, bicha, paneleiro, retro-activo ou ainda mono-bloco – tudo expressões do filme) não se recordado da relação com o seu namorado (para ele é só um amigo). Este é o ponto de partida (todo explicado no primeiro plano do filme, um plano sequência em vai e vem que gera um gag divertido com umas cuecas de padrão tigresse) e logo aí o incómodo surge: neste ponto de partida há logo um preconceito, a saber, todo o gay é originalmente um straight – portanto a homossexualidade é um desvio que uma amnésia é capaz de fazer tomar ao caminho certo. Se é verdade que perante a sociedade todos somos heterossexuais à partida, passar dessa castração social para uma afirmação fisiológica (ainda que subliminar) é dar um passo atrás na aceitação. No entanto, se o preconceito dispara a frenética narrativa do filme, tudo vira prolongada e elevada perversão na forma como a conclui: Diogo Morgado não se recorda que é gay – o médico diz-lhe que a coisa há-de passar e será muito feliz a comer rúcula/Corrula – mas mesmo assim, não se recordando, pede em casamento o seu namorado e assume-se no lançamento do livro. Ou seja, o protagonista em vez de ser gay, aceita sê-lo por facilidade, comodidade e preguiça (chatear os amigos e a família, ter que escrever um livro novo e arranjar um novo/nova amante, ter que mudar de vida… ai que chatice), ou seja, a sua homossexualidade é imposta pela sociedade. Nesta inversão das forças comuns o filme inverte todo o paradigma da heteronormatividade. Parte de um preconceito (a homossexualidade como desvio) para o inverter (a homossexualidade como imposição social). “Vai pôr os homofóbicos a rir“, mas talvez não da forma que estariam à espera. E vai pôr muito activista gay aos urros por se ficar pela superficialidade dos clichés e por sublinhar e perpetuar uma imagem parcial de um grupo variado. Talvez esse seja o mais fundo dos problemas de Virados do Avesso, o facto de o pouco que há nele de subtil sê-lo tão fortemente que mal se sente.