Quando se escrever a história do cinema Americano na primeira década deste século, Wendy and Lucy (Wendy & Lucy, 2008) terá direito, pelo menos, a um capítulo de destaque. Epítome de um cinema americano independente recente de baixo orçamento, Wendy and Lucy continua a abordagem minimalista explorada por Reichardt em Old Joy (2006), reduzindo a história ao essencial para entrar no íntimo da sua personagem, atingindo uma enorme ressonância emocional. Retrato social de cariz desolador, é um filme eminentemente subjectivo, por nos colocar ao lado da personagem, não como mero observador, mas como cúmplice e testemunha única da sua história.
É por isso o momento Rosetta (1999) do cinema americano, pela proximidade inabalável com que o filme segue a sua personagem, e pela recusa a desistir de acompanhá-la na sua luta pela felicidade. O filme dos irmãos Dardenne, que ajudou a definir uma estética militante para um cinema social, e mostrou as possibilidades de uma câmara livre de regras e planos fixos que se cola a uma actriz para desenvolver a história, encontra aqui um paralelo no cinema americano. É também, como fez o filme belga, uma recuperação do neorrealismo italiano, e em particular uma homenagem ao filme Ladri di Biciclette (1948, Ladrões de Bicicletas) de Vittorio De Sica, na sua preocupação e empatia pelos esquecidos da sociedade, pela redução da sua luta de sobrevivência a longo termo ao quotidiano imediato.
O filme começa com a chegada de Wendy e a sua cadela Lucy a uma pequena cidade do estado de Oregon, no que seria apenas uma passagem a caminho de outras paragens, mas que acaba por revelar-se mais que isso. Wendy, que vive no seu carro com Lucy, está em viagem através do interior da América perdida, das paisagens de subúrbios parados no tempo, em direcção ao Alaska, terra prometida onde espera encontrar um desejado emprego e um novo recomeço. Mas no momento em que a encontramos, desalojada e deslocada, vive momento a momento a contar os poucos dólares que guarda consigo e as duas únicas coisas com que pode contar: a sua cadela, e o seu carro, casa temporária. É um retrato de enorme fragilidade, e ainda não apareceram as dificuldades que vão por à prova a sua resiliência, quando perde essas duas coisas.
O carro deixa de funcionar, e Wendy não tem dinheiro para a reparação, para prosseguir a sua viagem. E num momento de desespero, rouba comida de um supermercado para Lucy, e quando é apanhada, não encontra Lucy à sua espera quando regressa. No filme de De Sica, o protagonista encontra um emprego para o salvar da sua situação precária, mas pouco depois a bicicleta que necessita para manter o emprego é-lhe roubada, e ele passa o filme numa angustiante busca para recuperar a bicicleta, para recuperar o controlo do destino da sua vida. A cadela de Wendy desaparecida e o seu carro inutilizado são aqui as bicicletas de Wendy, o que ela vai ter que procurar para reparar a sua condição e enfim prosseguir caminho.
Apesar da proximidade permanente com a sua personagem principal, Reichardt não é tão inflexível como os Dardenne na forma como aborda visualmente o filme. Os momentos de câmara ao ombro em que segue Wendy são menos comuns, apesar de existirem, mas Reichardt prefere o recurso a outra estrutura de composições. Os planos fixos alternam entre planos aproximados de Wendy, fechados sobre a sua cara e que substituem a proximidade permanente dos movimentos da câmara ao ombro, e planos mais distantes, que posicionam Wendy com os diferentes cenários que a rodeiam, jogando a sua figura perdida com a desolação dos arredores. Outra escolha é o recurso a planos onde a câmara se move lateralmente enquanto segue a sua personagem, como no segundo plano do filme, que acompanha Wendy e Lucy num passeio por um bosque, que é mais tarde contrastado com outro passeio, desta vez pelo asfalto sujo da cidade. Reichardt recorre ainda a pillow shots para evocar o meio industrial e pré-falido onde decorre a acção, que ajuda a perceber a importância, mais uma vez, dos cenários como meio de descrição de um país, cujo interior permanece esquecido e imutável.
O maior ponto de contacto entre Wendy and Lucy e Rosetta reside na cena mais icónica do filme belga, um momento de utopia e escape no meio de um filme de um realismo opressor. Nessa cena, Rosetta tenta adormecer, mas antes disso repete para si um mantra na solidão da sua cama: “O meu nome é Rosetta. Encontrei um emprego. Encontrei um amigo. Tenho uma vida normal. Não vou desaparecer no esquecimento”. A sensibilidade deste momento é acentuada pela intromissão do espectador na privacidade de Rosetta, não só por ficar exposta quão simples é o seu desejo de felicidade, mas precisamente por acontecer num momento de maior fragilidade, associado ao acto de dormir. Reichardt filma também Wendy ao adormecer por duas vezes e, se Wendy não repete o mantra, pelo menos fica claro que a ambição de felicidade é a mesma: da primeira vez, mesmo na segurança do seu carro, é evidente que não consegue adormecer; da segunda vez, quando é obrigada a dormir ao relento, acaba ameaçada por um estranho – é também a fragilidade do espectador que fica exposta, por não poder fazer nada.
Filmado num contexto pós-Katrina que revelou a imensidade e precariedade da pobreza na América em horário nobre e, em 2008, no despontar da crise económica, é ao mesmo tempo um prenúncio dos tempos difíceis que se seguiram, e um alerta para uma situação já ofegante para muitos. Dessa forma, são importantes também as personagens que colidem com Wendy, na composição deste retrato sobre a América: desde a irmã com quem fala ao telefone e que não quer saber dela, especialmente se for para pedir dinheiro emprestado, aos vagabundos que encontra e às pessoas na fila para o centro de reciclagem, ou ao segurança que a tenta ajudar, mas que apenas tem seis dólares para lhe dar. É a composição de um quadro e um momento do país, mas um momento que se repete, num filme que é também eminentemente político, por colocar-se ao lado desta personagem fragilizada, perto do fim e esquecida. E é precisamente pela escolha final que Wendy tem que fazer, e as implicações morais que envolvem, que o filme mostra um último elogio à personagem, antes de a abandonar ao seu destino. Em Ladri di Biciclette, perto do fim, o protagonista, depois de um dia em que tudo correu mal, é obrigado a escolher entre duas opções, entre um caminho fácil e um difícil, e a sua escolha é resultado da sua condição e percurso até aí. Em Wendy and Lucy, o final é doloroso, qualquer que seja a escolha, mas, se é resultado do caminho até aí, é também a esperança de ainda haver esperança. Resta sonhar com o filme, e esperar que, no fim em aberto, tudo acaba bem.
Wendy and Lucy será exibido dia 4 de Novembro pelo Cineclube de Viseu