As escadas são, por excelência, cenários de sugestão ao drama e ao terror; Hitchcock aproveitou-as sempre com extraordinária precisão, entre a agonia da queda em Psycho (Psico, 1960) e a criação de suspense em Suspicion (Suspeita, 1941). Depois desta cacofonia inevitável de “esses” (suspense/suspicion), e para além de Hitchcock, não podemos deixar de encontrar aqui e acolá, na história do cinema, estados optimizados do protagonismo das escadas, de Nosferatu (1922) a House by The River (A Casa à Beira do Rio, 1950), passando pela famigerada cena da escadaria de Odessa no Bronenosets Potemkin (Couraçado Potemkin, 1925), pela grandeza dos finais de Gone With The Wind (E Tudo o Vento Levou, 1939) e de Sunset Boulevard (Crepúsculo dos Deuses, 1950), pelas escadas da cave em The Night of The Hunter (A Sombra do Caçador, 1955), ou pela sua apropriação cómica (“Chaaaaarge!”) em Arsenic and Old Lace (O Mundo é um Manicómio, 1944)… Vários podem ser os ingredientes para uma deliciosa sopa de escadas.
Se pensarmos em escadas e terror no Cinema, rapidamente nos virão à memória cenas óbvias de filmes de Hitchcock, Lang, Brian De Palma, Dario Argento, Kubrick, Polanski. Na grande maioria das vezes, a utilização das escadas serve como uma ferramenta de construção do suspense intra e extradiegeticamente, i.e., de indução de ansiedade nas próprias personagens e no espectador: é o ruído do pisar das escadas (muitas vezes fatal), é o vulto que fugidiamente passa de um patamar para o outro sem que o possamos (nós e as personagens) identificar, é a “subida” que as escadas potenciam para a descoberta de uma verdade, um segredo, um crime cruel, que habitam no topo da casa (mormente, no “sótão”, mito dos mitos habitacionais). Ora, em Strangers on a Train (O Desconhecido do Norte-Expresso, 1951), encontramos aquelas que são das escadas mais assustadoras que nos lembramos de ver no Cinema sem o recurso, curiosamente, a todos esses engenhosos artifícios, porque o efeito, aqui, é outro. A imensidão das escadas (linhas horizontais), conjugada com a monumentalidade das colunas (linhas verticais) sobre elas apoiadas, porque desajustada da escala humana, cria uma perfeita sensação de esmagamento, brutalidade, de “diminuição” ou apagamento do indivíduo (não é por acaso que as grandes ditaduras, sobretudo o fascismo italiano, usaram e abusaram de opções arquitectónicas nesta linha). Mas agora veja-se o paradoxo: nessa realidade desajustada da escala humana, vemos, ao longe, um ponto, um vulto: trata-se de Bruno, com quem Guy, numa “strange” viagem de comboio, acertou um duplo perfect murder. Ao contrário do que seria de supor pelo que escrevemos atrás, a figura de Bruno não está “diminuída”, não é “insignificante”, não é, enfim, um ponto minúsculo na paisagem. Bem ao invés, e porque neste momento do filme Guy se sente já profundamente aterrorizado pela perseguição constante de Bruno, que parece “estar em todo o lado” (ilustra-o, além desta, a cena nas bancadas da partida de ténis), Bruno, pese embora a paisagem colossal em que se encontra enquadrado, parece que “cresce”, que se agiganta, qual stalker omnipresente – “He sticks so close he’s beginning to grow on me – like a fungus”, dirá Guy.
Francisco Noronha
Charles Laughton observa, da curva das escadas, a precisão com que o detective reconstrói metodicamente a hipótese de homicídio da sua esposa (no próprio dia do funeral). Um pânico mudo esconde-se atrás da aparente serenidade da sua expressão, tal e qual esse outro pânico que domina Raskolnikov – no rosto de Peter Lorre – em Crime and Punishment (Punição, 1935). São as escadas o local do crime? Antes de o serem ou não, antes de acontecer efectivamente uma morte, estas escadas, no cenário fílmico de The Suspect (Eu Matei!, 1944), representam a angústia de um amável Laughton, o seu medo de não controlar os maus instintos contra a tortuosa voz da esposa, vinda do quarto no andar de cima, com uma musicalidade de provocação que despertaria em qualquer alma bondosa os mais elementares impulsos para matar. Este plano tem uma força discreta, porque parece colocar o medo fora de campo, ilude-nos com uma pose simples – aquela que se usa quando estamos à espera que a outra pessoa desça para ir a qualquer lado. Siodmak parece ensaiar aqui o potencial temático das escadas, para, no ano seguinte, fazer delas um palco de sombras e de morte latente em The Spiral Staircase (A Escada de Caracol, 1945). No entanto, continuo a achar a força ensaística das escadas de The Suspect mais atraente, despida de espectacularidade, e provida de indícios tão torturantes como o degrau onde se descobre o tapete rasgado.
Inês Lourenço
“67 degraus”, diz Jerry Lewis a Steve Lawrence no comentário-áudio do DVD de Cinderfella (Cinderelo dos Pés Grandes, 1960), e, no fim dessa cena do baile, quando Lewis teve de subir esses 67 degraus, subiu-os em nove segundos, desmaiando fora de plano. Foi para o hospital e as filmagens pararam durante duas semanas, e quem da equipa tentou, não conseguiu superar a marca de Lewis a subir os degraus. Mas isso é depois da entrada em cena do Fella (assim se chama a personagem de Lewis no filme) envelhecido e renascido, descendo as escadas ao som da banda de Count Basie, que tanto inspirou as grandes façanhas visuais do actor e do realizador. Com o ritmo e a melodia da música estudados de fio a pavio, Lewis desce as escadas com a graça habitual (e aqui pode-se dar a “graça” os dois sentidos), ajudando-nos também a ouvir melhor a música, quando nas passadas acentua determinada secção dos sopros ou da bateria. Cinderfella não foi realizado por Lewis, mas por Frank Tashlin. Lewis disse que aprendeu tudo o que sabia com Tashlin e em Cinderfella a aprendizagem está completa: as ideias que Lewis aprofundará na carreira como realizador já lá estão todas. Não há escola como esta. E agora dou a palavra a Lewis, sobre a mesma cena: “Estão a ver o primeiro take do que eu coreografei, porque veio tudo da minha cabeça. Eu tinha estado no cenário durante dois dias só a olhar para as escadas e a pensar e estava a executar pela primeira vez o que tinha pensado fazer, o que pensava que podia funcionar. E funcionou. O resultado disso é o primeiro take. (…) Pus essa música a tocar de manhã, à tarde e à noite. (…) Mas não sabia que ia sair tão bem. E acho que a razão por que as pessoas gostaram tanto e saiu tão bem foi por ser regimental. Parece muito disciplinado”.
João Palhares
É um dos planos mais assombrosos deste ano cinematográfico (o filme estreou comercialmente no mês de Junho do ano corrente). E encontrar aqui a vertigem de uma escadaria em espiral impedia que a minha escolha não recaísse sobre ele. Estamos no domínio dos espaços interiores hitchcockianos, de um Vertigo (A Mulher Que viveu Duas Vezes, 1958) por exemplo. Não há nada nestas escadas que nos permita “acreditar” nelas enquanto uma estrutura arquitectónica. Não precisamos de mais nenhum plano para percebermos que esta é uma imagem do espaço, mas não de um espaço exterior. Lembra, nesse sentido, as fotografias de Eugène Atget, em que, muitas vezes, era o ângulo da fotografia que fazia saltar a imagem banal de, por exemplo, precisamente umas escadas – e foram muitas as que fotografou – para um estado interior surrealizado. Quando Hugo (Filipe Duarte) vê António (João Perry) correndo escadas abaixo, deixando fugir das mãos uma resma de folhas, sentimos – o olho diz-nos para sentir… – que Hugo persegue um fantasma. Hugo não fará outra coisa ao longo de todo este film noir existencial, onde um mais um é sempre um e não dois. Com efeito, Hugo projecta-se tanto na situação de António que acabamos por ver no segundo a projecção futura do primeiro. A solidão de Hugo caminha para a solidão de António. Ele desce as escadas para resolver o enigma, mas as escadas já são imperscrutavelmente enigmáticas. São escadas de Hitchcock, mas também são escadas de Kafka. A tempestade de folhas é como que uma barreira burocrática da mente que obnubila o contacto do herói com a realidade. A descida na escadaria em espiral é uma descida aos confins do subconsciente. Descida da qual não se sai incólume.
Luís Mendonça