Mais ou menos a meio de Boyhood (Momentos de Uma Vida, 2014), Mason Sr. leva Mason Jr. a acampar. Na viagem de carro, põe a tocar “Hate it Here” dos Wilco e diz ao filho para ouvir com atenção, que aquela letra é de “straight up old country song” e que a produção é muito Abbey Road (nome de um álbum dos Beatles mas sobretudo do estúdio onde gravaram a maioria das suas canções com George Martin), ou seja, uma produção de qualidade, límpida, em que o som de cada instrumento está devidamente separado do outro e em que se ouve, de facto, o que é isso de estereofonia (qualidades que se foram perdendo à medida que sistemas de reprodução de música pioraram) – em Sky Blue Sky, álbum a que “Hate it Here” pertence, os Wilco (ou melhor, Jeff Tweedy e acompanhantes) abandonaram os experimentalismos de Yankee Hotel Foxtrot e A Ghost is Born e entregaram-se ao formato tradicional da canção rock (com raízes country), num registo de que alguns não gostaram, por acharem descafeinado, middle-of-the-road, dad rock chatinho (o que se aplica mais a álbuns posteriores). Não é só por gostar muitos dos Wilco e de gostar de os ouvir seja onde, quando e a que propósito for que trago esta conversa à baila; ela parece-me a melhor descrição/analogia do/ao filme de Richard Linklater.
Apesar de todos os elogios e encómios vários, em que muito se tem falado da originalidade de Boyhood – o facto de ter sido filmado ao longo de doze anos e acompanhado o crescimento/envelhecimento dos actores; o actor principal, Ellar Coltrane, dos seis aos dezoito anos -, não me parece que alguma vez Linklater tenha querido realizar uma obra-prima ou definitiva ou arrebatadora ou imensamente original ou qualquer desses adjectivos entusiásticos. Aliás, essa leitura enviesada levará muita gente a sentir-se defraudada e desiludida, pois Boyhood é aquilo que Linklater, nunca propriamente dado à megalomania, quis que fosse: uma canção americana com produção Abbey Road. Uma história simples – sobre o crescimento de um rapaz e sobre a família que o rodeia (a mãe, a irmã, os pai, os padrastos) -, contada simplesmente, sem grande artifícios ou floreados. Tirando um ano ou outro, nada de muito disruptivo acontece e muitas vezes as personagens estão apenas a hanging out, como o faziam em Slacker (1991) e Dazed and Confused (Juventude Inconsciente, 1993).
De resto, uma das maiores qualidades de Boyhood é não apresentar as costuras de ter sido filmado a espaços, nem apostar em tornar essa “novidade” o seu ponto central de interesse. Tem pouco de timelapse photography – a forma como Ethan Hawke descreveu os hiatos anuais na rodagem -, as mudanças notam-se nos cortes de cabelo, nas roupas, nas circunstâncias e na banda-sonora, naturalmente (apesar de Linklater considerar a montagem demasiado ostensiva aqui e ali). Curiosamente, a banda-sonora parece, a princípio, muito colada ao momento da acção – sobre a já icónica imagem (por ser a do cartaz) de Ellar Coltrane deitado na relva, ouvem-se as primeiras notas de “Yellow”, a canção que tornou os Coldplay famosos no início do novo milénio -, só que uma maior atenção permite perceber que não é tanto assim – “Yellow” é de 2000 e não de 2002, data em que o filme começa; o mesmo acontece com a canção de Britney Spears que a irmã de Mason lhe grita aos ouvidos. Até essa discrepância é realista, ou melhor, natural (catalogar Boyhood como realista, redu-lo, menoriza-o; é, antes de tudo, de uma naturalidade encantadora): uma pessoa não ouve só música do ano em que está.
Contudo, como o próprio diz a James Benning no documentário de Gabe Klinger Double Play (2013), Richard Linklater desde muito cedo se interessou pelo o que tempo faz às pessoas, aos sítios, às relações. Na trilogia Before demonstrou-o bem, ainda que acidentalmente [Before Sunrise (Antes do Amanhecer, 1995) era para ser uma experiência única]: a cada novo tomo, sente-se a passagem do tempo e as marcas que esta deixa, as memórias do que se fez e os remorsos pelo que não se fez, as frustrações, as desilusões; as esperanças ficam para o futuro ou para um capítulo mais. Pois Boyhood é tanto o bildungsfilm de Mason Jr. e de certa maneira de Sam (interpretada pela filha de Linklater, Lorelei) como a história dos pais (Patricia Arquette e o alter-Linklater Ethan Hawke), pequenos momentos de todas estas vidas, para parafrasear o título português. O que o aproxima de uma experiência romanesca como a da série televisiva Up, que tem seguido a vida de catorze pessoas desde 1964, quando tinham tinham sete anos. Nesse sentido, Boyhood é um filme-fluvial que se deixa ir pela corrente, muito pouco dado ao drama, que costuma condensar a acção num curto espaço de tempo, à volta de um acontecimento extraordinário.
É verdade que a mão de Linklater pode parecer pesada numa cena ou outra, contrariando esta ideia de naturalidade. Pense-se no marido bêbado e autoritário da mãe de Mason ou nos pais da namorada do pai, que oferecem caçadeiras e bíblias, perfeitos exemplares do estereótipo do sulista norte-americano, ou até no discurso político de Mason pai, anti-Bush e pró-Obama. Se o primeiro é mesmo um tanto caricatural (ou excessivo, pelo menos), os segundos, nem tanto, personagens amáveis tratadas com candura (não esquecer que Linklater é ele próprio texano e poderá ter tido no seu círculo próximo pessoas assim). Quanto ao discurso político, serve sobretudo para caracterizar as personagens e a época, não tornando Boyhood num manifesto, longe disso. Ou seja, estes “defeitos” não estragam um filme bastante aprazível, dir-se-ia, feel-good, no melhor sentido da noção, que envolve necessariamente uma parte de tristeza. Como uma canção dos Wilco.