A minha dívida de gratidão para com o Manuel Cintra Ferreira ficou firmada no dia do meu primeiro «visionamento de imprensa»: pouco habituado a acordar às nove da manhã para ir ao cinema (e para tudo o resto, já agora), deixei-me dormir e cheguei ao Monumental quinze minutos depois da hora, com os bofes pela boca e com os nervos em franja («Vou ser despedido no primeiro dia, está visto»). No átrio do cinema, encontrei o Cintra (era assim que lhe chamávamos; é assim que ainda lhe chamo), andando de um lado para o outro como quem espera por alguém que não há meio de aparecer. Mal me viu, disparou: «Ah! finalmente! Como tinhas dito que vinhas, pedi que esperassem mais um bocado para arrancar com o filme.» Perplexo com o gesto de generosidade de alguém cujas críticas me habituara a ler com entusiasmo desde a adolescência, mas que apenas conhecera pessoalmente na véspera, gaguejei qualquer coisa ininteligível e entrei na sala lado a lado com o meu inesperado mestre de cerimónias. Uma vez lá dentro – e enquanto as luzes permaneceram acesas – o Cintra fez questão de contrariar o meu desejo de invisibilidade, apresentando-me aos poucos presentes («Ó João, este é o Vasco, que agora trabalha connosco»). No final do filme, quis agradecer-lhe as cortesias de um modo que respeitasse as regras básicas da gramática portuguesa, mas nada feito: assim que o genérico final começou a rolar, o Cintra saiu a correr da sala (tal como, percebê-lo-ia depois, sempre fazia), rumo – suponho – ao Café Picasso, onde almoçava todos os dias antes de regressar à Cinemateca. O meu agradecimento, diga-se, teria sido inútil, porque insuficiente: ao longo dos anos em que trabalhei com o Cintra («trabalhaste» o caraças: aprendeste), ele haveria de reiterar a sua generosidade por diversas vezes, sob diversas formas, mas sobretudo por meio de «recomendações» que eu entendia como imperativos («Vê os filmes do Anthony Asquith, que andam muito esquecidos»; «Nunca viste o Blast of Silence? Trago-te o dvd para a semana»). Talvez seja por causa disso que, hoje, quando me lembro do Cintra, lembro-me fatalmente (e ao mesmo tempo) das muitas obras que ele me incentivou a descobrir, e, em particular, de uma obra que dificilmente teria descoberto sem ele (sem ele e sem o Mário Jorge Torres que, na altura, confirmou o veredicto elogioso do Cintra), nomeadamente: Aventurera (1950), do mexicano Alberto Gout.
Foi graças a esse filme (que, sob o pseudónimo «Robert Lachenay», Truffaut incensou em 1954, no número 30 dos Cahiers) que passei a conhecer um género do qual, até então, apenas ouvira vagamente falar: o do cine de rumberas ou de cabareteras, que floresceu no México entre os anos 40 e 50, pelas mãos de cineastas como Emilio Fernández, Miguel Morayta ou Juan Orol (dos quais, verdade seja dita, vi somente meia dúzia de trabalhos). Trata-se aqui de um género que se constituiu pela amálgama daqueles que, à época, dominavam o cinema americano: o musical, o melodrama e o film noir (ao qual foi buscar os seus décors urbanos, nocturnos e decadentes, as suas histórias de perdição e redenção moral, acrescentando-lhe a sua insistência na luta de classes e uma boa dose de sexo e de sadismo). No centro dos filmes de rumberas estão – como o nome indica – as rumberas: dançarinas de rumba de origem cubana (na sua maioria) que, por esses dias, garantiam o sucesso comercial das produções mexicanas, figurando em ficções que tinham amiúde nos cabarets o espaço central da sua acção. Entre os principais nomes que recheavam o star system mexicano de então, pontificavam os de Maria Antonieta Pons, Meche Barba, Amalia Aguilar, Rosa Carmina e, também, o de Ninón Sevilla – a protagonista da Aventurera de Alberto Gout, obra que, no cinema mexicano e fora dele, se distingue pela sua extravagância (decorrente, não apenas da insanidade do seu discurso narrativo e visual, mas ainda da velocidade frenética a que o articula na montagem).
Aliás, basta ver os primeiros dez minutos do filme (contados pelo relógio), para perceber que, aqui, se aposta a fundo na hipérbole, ou melhor: no encadeamento de um conjunto de acontecimentos improváveis (e sempre trágicos), que dariam pano para as mangas de várias longas-metragens. De facto, depois de uma série de establishing shots que nos instalam na cidade de Chihuahua; depois de sermos convidados a entrar na casa de uma família da classe média (composta por uma mãe, por um pai e por uma filha à qual Sevilla dá corpo), assistiremos à seguinte torrente de «acontecimentos funestos»: 1) a filha flirta com um amigo do pai, perante o olhar reprovador da mãe; 2) a filha surpreende a mãe a beijar o amigo do pai (o que faz com que uma avalanche de cordas e sopros trágicos se abata sobre a banda de som); 3) a mãe foge de casa com o amante; 4) o pai suicida-se; 5) orfã de pai e abandonada pela mãe, a filha muda-se para Ciudad Juárez (uma das «cidades do pecado», na mitologia do cinema mexicano dos anos 40-50) e, através de três breves planos sem diálogos, ficamos a saber que as suas experiências de trabalho abortaram, por força do invariável assédio sexual dos seus variados patrões.
A bulimia narrativa deste prefácio é notável, tal como notável é a forma como – daí em diante – Alberto Gout mergulhará a protagonista numa espiral de malogros, começando, desde logo, por fazê-la cair nas garras de um pequeno meliante (Tito Junco), que a vende por um punhado de pesos à impiedosa dona de um cabaret-bordel (Andrea Palma, algures entre Marlene Dietrich e Barbara Stanwyck). Sempre vigiada pelo canto do olho pelo homem de mão da señora (uma espécie de Machete em miniatura, corcunda, coxo e mudo, que jura por gestos desfigurá-la com uma ponta e mola se ela tentar fugir), a rapariga resigna-se ao seu destino, e, graças aos seus dotes de rumbera, cedo se transforma na principal atracção do cabaret. E compreende-se que assim seja – pois, mal os seus números arrancam, as leis da física vão para o galheiro, com o minúsculo estaminé a acolher extensos cenários exóticos (um mercado persa…), que servem de suporte à exibição dos predicados físicos/vocais de Sevilla. Quando não está no palco, a mártir limita-se a circular tristemente por entre as mesas do cabaret (furtando-se ao assédio dos clientes masculinos), num movimento errante, sem horizonte, que se deixa enfaticamente comentar por um coro grego de cantores (Pedro Vargas, os Los Panchos…), cujas baladas e boleros abundam em expressões como «escabroso» e «infâmia». Mas não será preciso esperar muito até que a protagonista se evada do bas-fond, socorrendo-se para o efeito dos serviços do homem que nele a encarcerou – e que depressa a utilizará como motorista num assalto a uma joalheria que dá para o torto. Em fuga da polícia, a rumbera regressa ao circuito dos cabarets, acabando por ser cortejada por um advogado de boas famílias que, num ápice (como tudo, neste filme), a instala na luxuosa mansão da sua mãe: uma viúva da alta sociedade, cheia de pruridos e pudores, que já antes encontráramos pelo caminho – trata-se (e aqui entramos em delírio total) da própria dona do bordel no qual a moça passou as passas do Algarve. Sobre a história, nada mais direi, a não ser isto: que aquilo que nela se segue é, por um lado, um estudo antológico sobre as relações sogra-nora (são deliciosos os diálogos repletos de subentendidos aos quais Sevilla e Palma se entregam), mas também, e sobretudo, um libelo (sensualista e feminista) contra as convenções da moral burguesa.
«É esta a dialéctica: existe uma distância muito curta entre a grande arte [high art] e o lixo [trash], e o lixo que contém um elemento de loucura está, em virtude dessa mesma qualidade, mais próximo da arte.» Quem o disse foi o saudoso Douglas Sirk. O Cintra sabia-o de certeza (ele, que amava o cinema de Corman como poucos e o de Ford como ninguém, que se entusiasmava por igual com o Totò e com o Tourneur), e eu, desculpem lá o tom confessional, aprendi-o com ele.