Vou à matiné da Cinemateca ver Brief Encounter (Breve Encontro, 1945) de David Lean. Todo o filme trata de explicar, ou melhor, dar sentido àquela mão no ombro de Trevor Howard e àquele olhar triste de Celia Johnson. Era um amor impossível pelas regras da sociedade a que cada um deles pertencia e participava, nunca podia dar certo e por isso mesmo o filme começa logo com essa impossibilidade – uma espécie de in media res caridosa que não faz criar falsas esperanças. Exactamente por esse amor gorado de início sei que o meu coração vai bater mais e os olhos vão querer ver mais do que aquilo que lhe mostram, como se esse desejo solitário pudesse alguma coisa contra o fado amoroso deles. Talvez por essa réstia de esperança de que o raconto fosse capaz de mudar o passado (ou talvez por mero acaso), certo é que, quando o comboio chegou e o chamamento para o embarque se deu – no exacto momento em que ele se levantava -, o filme começou a fugir do quadro, as imagens multiplicaram-se numa composição avant-garde de poucos segundos, tudo ficou claro (a cegueira branca?) e o projector acalmou o seu matraquear. A película partiu. E a sala ficou inquieta. Será que ele partiu? Será que terá ficado? Na inevitabilidade de contar uma e outra vez a mesma história a própria película, o próprio suporte do filme, parece ter-se recusado a continuar, a prosseguir nesse infortúnio amoroso, a voltar a trair o coração mais que avisado do destino daqueles dois. O filme não quer que ele se vá embora. E não é porque se levou um personagem a um beco sem saída como no Bergman ou porque a vida explodiu da tela como no Hellman, aqui o filme agiu contra si mesmo num harakiri de celulóide. O suporte como ser consciente detentor da palavra final: qual Irving Thalberg qual quê, o final cut é e sempre será da película! [até que veio o digital…]
O leitor estar-se-á inquirindo sobre a relevância de tal episódio no que respeita ao mais recente filme dos irmãos Farrelly. A relevância talvez seja coisa infinitesimal – certamente – e a conexão entre os dois títulos é – com certeza – forçada. Ainda assim não a deixo de fazer e passo desde já a explaná-la. Laura e Alec conhecem-se e dão-se cordialmente, a sua relação é amável e simples, como com os conhecidos que não chegam nunca a ser mais que isso. Há um momento em que isso muda, quando Alec começa a falar de… medicina preventiva no local de trabalho. Mas podia ser qualquer outra coisa, o que importa é que ele falou com uma candura, uma jovialidade e um maravilhamento infantil que ela não pode deixar de sentir que havia naquele ser ainda os vestígios de uma criança que nunca fora recalcada.
Laura: You suddenly look much younger.
Alec: Do I?
Laura: Almost like a little boy.
Alec: What made you say that?
Laura: I don’t know. Yes I do.
Alec: Tell me.
Laura: No, I couldn’t really.
O filme de David Lean é pois sobre essa acção dupla e oposta entre a imposição social que castra e controla o indivíduo – e que acaba por impedir (ou fomentar?) a relação amorosa – e a força pubescente de uma alma criativa que quando brota fá-lo em torrente – indiferente a códigos e moralidades. Alec tem um pouco dessa força, o suficiente, e Laura só tem a castração. Daí a impossibilidade, e também daí a paixão.
Tudo isto para chegar a Dumb and Dumber To (Doidos à Solta, de Novo, 2014). Para os manos Farrelly nenhum destes dégradés emocionais tem razão de ser, pois o mundo que eles estabeleceram para si e para os seus personagens é um onde todas as definições sociais partem do espectador e nunca da própria envolvência narrativa. Isto é, Jim Carrey e Jeff Daniels podem existir num mundo onde comer javardamente uma salsicha com mostarda a escorrer por todos os cantos da boca (essa cena parece redefinir os limites da boca humana) é tão banal como tirar as espinhas ao peixe. Talvez por isto os personagens, deste e de todos os outros filmes do par, pareçam tão infantis: é que do choque anteriormente referido entre a castração e a torrente, se um dos elementos se anula o outro toma o seu lugar impondo-se sem alternativa.
O acto de escrever e realizar de Bobby e Peter Farrelly é portanto um que anula o sofrimento, as dúvidas, os recalcamentos e portanto dá trela solta à acção do Id (estou em crer que não se trata de uma questão de Ego-ismo pelo simples facto de que aí há a pretensão de tirar partido para si, o que não me parece ser o caso). A violência, a nojeira, a infantilidade, a candura, a estupidez e a jovialidade são as linhas principais de onde se tecem os seus personagens. Assim citações de Celia Johnson em Brief Encounter como “Isn’t it awful about people meaning to be kind?” deixam de fazer qualquer sentido porque de todas as virtudes do dumb e do dumber o altruísmo não é com certeza uma delas, nem a bondade ou a caridade.
E o mesmo poderia ser dito dos realizadores, veja-se a forma como se deliciam em piadas de mijo: a primeira “fala” de Carrey é encher um saco de drenagem, a reposta é Daniels com um cateter nos dentes, Peter Strain que vira Pee Stain (=mancha de chichi), Dr. P. e por aí… Neste sentido um filme (e uma obra) que envereda pelo grotesco da sexualidade – e necessariamente pelo desconforto do espectador face a esse grotesco – termina com a descoberta do par de protagonistas de como são feitos os bebés, “that’s where she pees!”. É esta possibilidade de permanecer jovem e cândido (e estúpido…) que encanta nos filmes dos irmãos Farrelly.