Numa altura em que ainda recuperamos do charme da prisão de um ex-primeiro-ministro e sobretudo de toda esta conversa de trincheiras numa guerra de opiniões mais ou menos vazias entre o que está contra e o que está a favor, pergunto-me se é possível ver esta “entrevista animada” de Michel Gondry a Noam Chomsky sem se ser tentado a deixar-se influenciar pelo sentimento que possamos nutrir por um ou outro homem. A pergunta parece ter resposta clara, não não é possível. Mas talvez nem seja desejável pois o encontro entre estas duas pessoas tão diferentes talvez ajude a explicar o que gostamos ou não numa e noutra.
Há pelos menos dois tópicos que fazem os ódios ou delícias daquele que já foi chamado o “Ayatollah do ódio anti-americano” ou o mais notável dos pensadores contemporâneos. Por um lado, o seu trabalho sobre as estruturas inatas da linguagem no humano, fagulha da psicologia cognitiva em todo o seu esplendor, com tudo aquilo que se possam opor a uma visão behaviourista, desconstrucionista e pós-moderna da cognição e da experiência. Por outro, a dimensão política em Chomsky, que aqui Gondry decide evitar e que está bastante próxima das ideias do anarco-sindicalismo e é muito crítica do regime imperialista norte-americano caracterizado pela sua “manufactura de consensos” e agitação do “cacetete da propaganda” na democracia.
Por sua vez, toda a carreira de Gondry, com a seu foque apontado à pequena-grande emoção e ao lirismo do quotidiano e do sonho, parece ter sido feita para provar que Chomsky pudesse talvez estar equivocado com a sua concepção demasiado cerebralista, neo-cartesiana da ciência e do mundo. Começou com videoclips para a sua banda Oui Oui, e depois trabalhou com a Bjork, os Chemical Brothers, etc. Ganhou um Oscar de melhor argumento juntamente com Charlie Kauffman em The Eternal Sunshine of the Spotless Mind (O Despertar da Mente, 2004) e mais tarde entreteve-se com a questão dos sonhos [La science des rêves (A Ciência dos Sonhos, 2006)] e da magnetização dos cérebros na comédia Be Kind Rewind (Por Favor Rebobine, 2008) com Jack Black.
Só por estes traços largos e temas de interesse percebemos o fascínio que Gondry nutre pela figura de Chomsky. Esse fascínio timorato é aliás parte do filme com momentos em que o francês, com o seu inglês macarrónico, nos vai contando como ou ele ou Chomsky não se percebem um ou outro. Esse “lost in translation” que é aqui muito um “lost in structures of thinking” é mais importante do que possa parecer. Por dois motivos. O primeiro porque Gondry conta ao seu entrevistado que usa muitas vezes o facto de não perceber bem o inglês ou não entenderem por vezes o que quer dizer como fonte de inspiração. No filme acontece este bloqueio de comunicação, preciosidade do acaso, precisamente com a palavra “endowment”, literalizando na conversa dos dois muito do que poderá estar em causa com a teoria de Chomsky. Ao incluir este momento no filme, ao fazer da falha inspiração criativa, Gondry está a “provar” a Chomsky que esse exterior (ao qual segundo ele imporíamos a nossa percepção e interpretação) é dinâmico e co-actuante com a própria estrutura cognitiva. O segundo motivo porque esse desencontro, que simplisticamente podia ser definido como o “desajuste” entre a arte e a ciência, ajuda a perceber o que falta a um e a outro.
Alan Scherstuhl, editor da Village Voice, fala um pouco dessa complementaridade entre a seriedade e o arabesco a propósito do filme, designamente evocando o episódio em que Gondry faz uma pergunta Daniel Oliveira (o do “Alta Definição) a Noam Chomsky: o que é que o faz feliz? A resposta é simples: as crianças os netos, os amigos… Mas não passa muito tempo a pensar nisso. Esse “nisso” é a especialidade de Gondry e são desse “nisso” de que são feitas todas as animações com que este ilustra os conceitos, as imagens, a vida do norte americano. Os óculos azuis no cabelo comprido, as bicicletas dos passeios com a mulher, as árvores ou os barcos dos dilemas da percepção e da identidade. Gondry insufla “felicidade” na percepção de Chomsky, assim como este refreia o automatismo lírico de Gondry. É aliás essa dimensão mais pessoal, que ajuda o francês a unir-se com o filme aquilo que mais me desune a ele enquanto objecto de encontros e desencontros de automatismos, enquanto princípio do pensamento como fluxo e relação algo que opõe Chomsky a parte da “french theory”.
Prova do inato para Chomsky é a frase do título “Is the man who is tall happy?”, que quando convertida em pergunta por crianças inglesas, a partir da afirmação “the man who is tall is happy”, nunca degenera no erro: “Is the man who tall is happy”.
Se para Chomsky isso é a prova provada dessa capacidade inata para a aprendizagem de estruturas linguísticas no ser humano, pode também traduzir-se, digo eu, assim:
O homem que é feliz é alto. É feliz o homem alto? O filme de Michel Gondry é um bom filme. É o filme de Michel Gondry um bom filme?