O recente falecimento do engenheiro Sousa Veloso traz-nos amargas recordações das manhãs de Sábado da segunda metade dos anos oitenta. Recordações de quem ansiosamente esperava pela bonecada colorida e escapista (a educativa ficava para as tardes dos dias úteis, com o Dr. Vasco Granja) e tinha de levar à priori com entrevistas ao shôr Augusto na sua propriedade agrícula de Estremoz, com didácticas informações sobre o mais apropriado uso do arado sem se ficar desfeito, e com os aguaceiros e sóis da semana seguinte. Eram minutos penosos, os do Tv Rural, mas por entre enervamentos e distrações, lá fomos cultivando alguns conhecimentos, que muito úteis nos seriam passados alguns anos, quando construímos a nossa própria região latifundiária à força de salários precários, não direito a férias, segurança social, cuidados de saúde e indemnizações. E ao Domingo ainda era pior, com o Eucaristia Dominical.
O King Vidor de Our Daily Bread (O Pão Nosso de Cada Dia, 1934) decerto que nos atacaria com paus se estivesse ao corrente dos nossos propósitos ultra neo-liberais. O seu idealismo (ingénuo, para os desprovidos de alma) pode ser apreciado num dos sub-plots que constituem uma das singularidades do filme: quando o diabo envia uma destrambelhada femme fatale para a quinta, tentando o sóbrio espírito de John Sims e as fundações de um matrimónio alicerçado em bases de ferro, Vidor (também argumentista) faz uso de uma das personagens de carácter mais duvidoso e menos “simpáticas” do grupo de camponeses para a aconselhar a bater o fora o quanto antes, que aquele é espaço sagrado de trabalho e de união familiar, e não teatro de debochadas. O vício urbano, a City Girl , é expurgado para o exterior da pureza campesina. Desanda, vagabunda, que este é tempo de de pão e vinho no estômago, e não de brincadeiras noir.
Essa personagem “duvidosa”, embora menor, é a essência de Our Daily Bread: a força do colectivo como modo de satisfazer as necessidades individuais. Esta coexistência de individualismo e socialismo à moda americana espanta pelo segundo ismo. Vidor foi sempre um fascinado por heróis obcecados com o seu métier, tão fascinados pela sua “integridade” que lutavam contra a família, contra a sociedade e finalmente contra si próprios, pessoas que se preciso fosse partiriam as cabeças contra as paredes se tal significasse a concretização dos seus objectivos, e cujo exemplar mais perfeito é, obviamente, o Howard Roark de The Fountainhead (Vontade Indómita, 1949). Verdadeiro crente no American Dream, King era um feroz anti-comunista, tão feroz que faria passar o presidente Reagan como assador de frangos na Quinta da Atalaia no mês de Setembro. E depois a força do trabalho conjunta de uma população inteira em Our Daily Bread a rir disto tudo. Bom, talvez isto não passe de mero espelho do próprio cinema “industrial” e deste filme em particular (filme que o prodígio Irving Thalberg recusou produzir, depois do The Crowd (A Multidão, 1928), obra saída do bolso de Vidor que trataria de arranjar equipa da sua confiança para levar em frente o seu bebé de New Deal auto-suficiente.
Todo o processo colectivo do e no filme atinge a plenitude no seu climax, uma longa sequência onde as gentes se unem em gigantescos esforços para abrirem um vale por onde as águas do rio pudessem entrar e irrigar as terras duras de tanta seca. O ritmo sincopado do som das enxadas e pás a escavarem o solo provoca musicalidade de ir aos céus, uma montagem sonora de quem já controlava perfeitamente uma ferramenta estética de meia dúzia de anos. Por aqui passa, verdadeiramente, um genuíno “cinema de acção”, pessoas a fazerem dos seus braços e pernas locomotivas para sobreviver. O quadro completo apresenta-se na tensão que se vai acumulando, efeito dramático que muito agrado daria, por certo, aos doutores soviéticos da mesma era.
A explosão emocional dos últimos momentos termina o arco de horrores de John e Mary. Depois do negrume de The Crowd, as nuvens passageiras de Our Daily Bread, e por fim o mais próximo do paraíso de que estas personagens poderiam estar. É um momento de felicidade, a espelhar a própria situação de um país que lentamente saía de um colapso social para em breve se tornar dono do mundo, á custa de John Sims e demais bravos. Nuvens passageiras, como as do Kaurismaki (amén).
Our Daily Bread seria um falhanço crítico e de público, reduzindo os dinheiros de Vidor para a compra de um Cornetto. Talvez a dureza dos tempos não fosse a mais propícia para um filme optimista, de elevada candura ou, para as mentes mais velhacas, “irreal”. Ou, inversamente, não fosse tão escapista e “divertido” como desejava uma multidão faminta, tanto de comida como de entretenimento. Felizmente, Vidor continuaria por aí, como se encarregariam de mostrar os anos seguintes. Agora é esperar pelo remake, onde, decerto, satanás não enviará uma desengonçada femme fatale nem metralhadoras para dividir o povo, mas sim a mais mortífera arma de destruição massiça conhecida: a Eva Green. Como dizia o engenheiro Sousa Veloso, despedimo-nos com amizade, até ao próximo artigo.