Um octópode, após ter deslizado na direcção do fora de campo, no plano seguinte arrasta-se languidamente para a margem direita do enquadramento. Corte. Imerso, agora, na luz deslumbrante do dia, o polvo cai do parapeito de uma janela para o berço de uma criança – na verdade uma boneca – que dorme indefesa enquanto o molusco parece acariciar-lhe o rosto. Mais uns cortes: o polvo atira-se de uma árvore, lança-se nas águas e nelas abraça, numa dança macabra, uma caveira humana.
Estas são as imagens perturbadoras com que tem início a curta-metragem La pieuvre (1928) de Jean Painlevé, biólogo e cineasta, autor de uma extensa carreira com cerca de 200 filmes. Imagens, com certeza, invulgares, não apenas por ter como protagonista um molusco, cuja natureza bizarra poderia provocar algum transtorno, sendo ele ainda mais colocado em contextos que desorientam a percepção habitual que temos dele, suscitando assim os nossos medos mais profundos, mas principalmente pelo facto do filme pertencer, segundo o autor, ao cinema dito científico. De resto, a deslocação do polvo fora do próprio meio ambiente ou a dramatização das imagens mediante elementos estranhos aos fenómenos observados contribuem, à primeira vista, para legitimar a opinião de todos os que defendem a incompatibilidade entre o rigor da ciência e a suposta superficialidade do meio cinematográfico. Desconfiança esta que desde logo se manifestou na carreira de Painlevé quando, durante a projecção na Academia das Ciências do seu primeiro filme de investigação científica, L’Œuf d’épinoche, de la fécondation à l’éclosion (1925), um académico-botânico abandonou a sala afirmando que “o cinema não é uma coisa séria”.
Na verdade, a obra de Painvelé é muito mais complexa do que parece ser, já que inclui diversas tipologias de filmes científicos: desde os de investigação propriamente dita, dirigidos aos especialistas [entre outros, L’Œuf d’épinoche, de la fécondation à l’éclosion e Traitement expérimental d’une hémorragie chez le chien (1930)], aos filmes didácticos, realizados para cientistas e estudantes [vejam-se, por exemplo, La quatrième dimension (1936), Voyage dans le ciel (1937), Similitudes des longueurs et des vitesses (1937)], até às curta-metragens de divulgação, destinadas ao grande público (como L’hippocampe (1933), Le vampire (1945), Oursins (1954), e Acera ou le bal des sorcières (1972)]. Seja qual for a categoria à qual pertence, para Painlevé o documentário científico deve sempre suscitar a curiosidade no espectador, interpelando a sua sensibilidade e consciência crítica. Mas se, para este fim, o filme de pura investigação torna perceptível o que é invisível ao olho humano mediante técnicas especiais de gravação, como a aceleração ou a câmara lenta, destacando, de forma rigorosa e sóbria, o lado excepcional e impenetrável da realidade registada; por sua vez, o filme de divulgação admite a irrupção do imprevisível, do que é estranho, do abstracto, do mistério insondável da vida, cujas imagens, captadas pela câmara de filmar, vão além da mera explicação científica, além da sua conversão em informação.
De facto, como afirma o próprio Painlevé (em Du faux dans le documentaire, “Instruire et plaire”, n° 2, Dezembro 1938), “o documentário didáctico pode utilizar qualquer truque: trata-se simplesmente de estimular uma compreensão mediante os meios mais diversos […]. Deve-se impor uma tese ao espírito. Não necessariamente através do ritmo cinematográfico mas por meio das possibilidades fotográficas”. Eis então que o dado científico abre-se à contemplação científica. É nesse sentido que se tornam compreensíveis as estratégias adoptadas por Painlevé no prólogo de La pieuvre em que o cineasta-cientista põe em acto o axioma – comum a todos os seus filmes de divulgação – segundo o qual é admissível a introdução no filme documentário de um evento ficcional a fim de despertar o interesse do espectador, cuja atenção poder-se-á enfraquecer devido ao desconhecimento do fenómeno observado. Trata-se de provocar a curiosidade do espectador para que não aprenda de forma passiva, mas para que compreenda com prazer, fruindo o espectáculo que a ciência é capaz de oferecer. Tal como acontece noutros filmes mudos do período inicial, também La pieuvre não se reduz unicamente na observação das formas extraordinárias dos organismos filmados, tornando-se estes intermediários de um olhar sobre o mundo do ser humano.
Em geral, o objectivo de Painlevé consiste em revelar a maravilha e a beleza das criaturas. A escolha de Painlevé parece depender da função ou dos modos através dos quais alguns organismos colocam em questão papéis e valores convencionais e sociais [vejam-se os filmes L’hippocampe, Les danseuses de la mer (1956), Comment naissent des méduses (1960)]: Painlevé quer ensinar-nos não apenas “algo acerca de”, mas também “a partir de”.
O antropomorfismo torna-se, então, o dispositivo ideal para que o espectador compreenda melhor aquilo que o rodeia, já que o ser humano desde sempre tende a relacionar a si próprio o que observa. Portanto, aproximar aquilo que está longe da experiência habitual significa devolver uma imagem activa e não passiva daquilo que se pretende conhecer. O polvo que luta, copula, dança ou morre, quase como se reproduzisse metaforicamente o ciclo de vida de qualquer ser humano, permite ao espectador uma maior aderência e familiaridade ao assunto tratado, cuja tomada de consciência é favorecida pela imediata personificação do molusco e da Natureza à qual todos os seres devem submeter-se e sucumbir. E não é de todo fortuito, se o antropomorfismo é acentuado pelo grande plano com que Painlevé capta amiúde o animal marinho, sendo o grande plano o expediente narrativo-linguístico mais adequado para atribuir uma alma ao fragmento e extraí-lo do continuum do mundo, conferindo-lhe emotividade. Painlevé, enquadrando em grande plano o olho do molusco, “o único animal no mundo a ter um olho semelhante ao dos mamíferos, ao do homem” (Jean Painlevé, Au fond de la mer, un oeil nous regarde…, “Le Palais de la Découverte”, 18 março 1938), elimina as fronteiras entre o ser humano e o animal e acentua, a partir da observação aproximada, o carácter dramático dos eventos filmados, tornando-nos testemunhas da crueldade da Natureza. Em suma, Painlevé traz algo de humano na ciência e reproduz com absoluto rigor cientifico a atrocidade da existência mediante a identificação emotiva do espectador com as vicissitudes do polvo, cujas imagens nos levam para além da mera explicação científica de modo a alcançar a poesia intrínseca aos seres e às coisas. E tudo isto acontece através do enfraquecimento do tradicional esquema narrativo e da colocação do molusco também em espaços estranhos ao seu habitat. Estratégia esta, que liberta Painlevé da suposta veracidade da montagem lógico-linear, da esterilidade da observação não participante, para poder atribuir ao cinema científico a capacidade de alterar o imaginário do espectador, dirigindo a sua atenção para o sentido profundo da Natureza e o mistério insondável da vida que desperta a curiosidade do ser humano.
A mise en fiction de Painlevé é semelhante ao trabalho de investigação do cientista em laboratório: este concebe dispositivos para interrogar o objecto de estudo. Dito de outra forma, Painlevé introduz elementos externos, provocando situações para se deixar guiar pelo imprevisto e pelo inesperado. Este seu procedimento, antes de envolver desde logo o espectador, manifesta-se primeiramente no próprio cineasta-cientista, o qual se vê desorientado perante o objecto que interroga. Esta estratégia de estranhamento, longe de se esgotar num simples acto pedagógico ou didáctico a fim da transmissão do conhecimento, faz com que a experiência vivida no laboratório torne o cientista, que a provocou e observou, o elemento de ligação através do qual o espectador se torna testemunha da experiência pessoal e subjectiva do processo e do resultado final obtido pelo cientista-cineasta. Portanto, o filme não é apenas um documento de pesquisa, mas uma experiência emocional capaz de revelar novos e invulgares aspectos da realidade, ultrapassando os limites do visível: o cinema transforma-se de simples instrumento de auxilio para a investigação a instrumento de descoberta. A aproximação de realidades longínquas (o enquadramento do polvo no parapeito da janela, por exemplo) ou incompatíveis (a cena do polvo em cima de uma caveira) não apenas evocam a índole subversiva do movimento surrealista, do qual Painlevé partilhou em certa parte o espírito (a este propósito, remetemos para o seu artigo Drame néo-zoologique editado em 1924 no primeiro número da revista “Surréalisme”), mas permite levar a pesquisa painleviana além da observação etológico-fisiológica do seu mais directo predecessor Étienne-Jules Marey, focando a atenção não só na locomoção animal – no caso específico do octópode, quase como se quisesse evidenciar a capacidade própria do medium cinematográfico de captar o movimento –, mas revelando a ambiguidade imanente da realidade, a maravilha do mundo que, se não se consegue compreender de todo, pelo menos, se pode contemplar na beleza dos seus mistérios.
Importa ver a realidade, para lá da imagem, além das expectativas do realizador. Os filmes transcrevem os eventos, também aqueles provocados voluntariamente pelo autor, levando a observação além do mero dado empírico registado, isto é para um estado mais directo, intenso, absoluto de compreensão. Ao lado do desejo de transmitir dados e factos, existe também a vontade de evocar um sentimento, de interpretar e de criar algo. Isto acontece principalmente nos filmes de divulgação em que o olhar científico deixa espaço ao olhar artístico, embora este nunca se afaste do procedimento próprio da experiência de laboratório. Na verdade, não há nenhuma mentira, tudo é feito no respeito absoluto ao espectador: o drama não nasce a partir de uma mise en scène falsificada ou estetizada, pelo contrário, ela nasce a partir do domínio dos aparelhos técnicos que garantem o rigor científico necessário para exaltar a qualidade criadora de Painlevé na medida em que os efeitos ópticos utilizados não são apenas expedientes dirigidos ao entretenimento do espectador, mas instrumentos de investigação através dos quais se pode deduzir uma história e uma lei. E é mesmo mediante esta abordagem metodológica – pela qual a ciência se abre à arte graças a um conhecimento pormenorizado do sujeito, recriando as condições anteriormente observadas e elaborando um décor em que a natureza é a protagonista principal –, que Painlevé alarga a noção de documentário científico ao ponto de poder declarar que a “ciência é uma ficção verdadeira”. Ficção, porque Painlevé não é um relator de dados e experiências, mas um criador de histórias que põe em cena perante a câmara de filmar; e verdadeira, pelo facto que a investigação acerca do octópode e do seu meio ambiente é realizada segundo a mais estrita observação do método científico.
Como não recordar, a este propósito, as palavras premonitórias escritas por Painlevé em 1946, que sintetizam a sua ideia de cinema, do seu cinema. “Cedo o cinema morrerá. Os seus descendentes servir-se-ão de um fio electromagnético no lugar da celulóide. As imagens aparecerão nos ecrãs lenticulares da televisão a cores. As fontes luminosas serão substituídas por tubos catódicos. As lentes tornar-se-ão campos de forças. Numa palavra, os descendentes do cinema serão belos e fortes. Mas deixem-me esperar que não será abandonada aquela síntese de arte, ciência e poesia em que consiste o verdadeiro cinema.”