Duas maneiras de confeccionar neve: espuma de barbear, usada no western spaghetti Il grande silenzio (O Grande Silêncio, 1968) de Sergio Corbucci, e sal, mesmo muito sal em The Gold Rush (A Quimera do Ouro, 1925) de Charles Chaplin. De uma maneira ou de outra, há sempre algo de encantatório na imagem de montanhas e planícies cobertas de branco. Se sal foi o que Chaplin usou para nos oferecer neve, pois então diga-se que fez o menos insosso dos filmes. Se Corbucci usou espuma de barbear, num filme em que o protagonista tem as cordas vocais “navalhadas”, pois então deixemos o pêlo crescer, para protegermos o rosto de um frio de morte. Invariavelmente, a neve cai bem nas imagens do cinema.
«Il faisait effroyablement froid; il neigeait depuis le matin; il faisait déjà sombre; le soir approchait, le soir du dernier jour de l’année.» Coincidência ou não com este dia, assim começa o conto de Hans Christian Andersen, intitulado La petite fille aux allumetes, onde, depois de se ver La petite marchande d’allumettes (A Vendedora de Fósforos, 1928) de Jean Renoir, só pode permanecer para sempre a imagem de Catherine Hessling (diria eu, na mais bela das suas performances, ao lado de La fille de l’eau): a neve a cair-lhe sobre o breu das vestes e os fósforos acesos na mão, a aquecerem-lhe os últimos sonhos, antes do eterno sono levar a pobre criatura para uma qualquer lareira que tanto desejamos para ela. Não acredito que se veja La petite com indiferença emocional. E não é só a história – porque nisso tem mérito o autor do conto – que nos comove, mas a luz; correção: a Luz, essa maravilha do cinema de Renoir, que muitos temiam, tal como o próprio, perder a singularidade na passagem para a cor. Se, como dizia Renoir (baseado na ideia de André Gide de uma arte definida na forma), “gostamos de uma história porque gostamos de quem a conta”, esse invólucro chamado forma que nos embala num bom colo até à história, então não é possível desdenhar de um colo assim iluminado e consciente do seu “ouvinte”/espectador. O plano que escolhi, e que me foi tão exigente de escolher, pela afinidade que tenho, e mantenho, com La petite marchande d’allumettes, dá-nos uma ideia muito concreta de tudo o que este pequeno – mas enorme – filme é: um canto frio para morrer, que de neve está revestido (lembrando uma daquelas bolas de vidro com que as crianças brincam) e a esperança firmada num pauzinho de fósforo que parece convencer quem o segura de que a chama é maior do que aquela que os nossos olhos podem ver. Uma chama sonhada, um mundo atrás desse calor imaginado, uma morte suave, como diria Simone de Beauvoir e, acrescento eu, uma morte triste e luminosa, acontecida perfidamente na noite de Ano Novo. Não pretendia, com toda esta conversa, puxar à lágrima trágica, senão à lágrima diante da beleza melancólica e terna de um último suspiro branco abandonado à lareira das alucinações.
Inês Lourenço
“That bag full of money looks kind of small out there, doesn’t it?” é o que pergunta o personagem de James Gregory já no final do incrível Nightfall (Ao Cair da Noite, 1957) de Jacques Tourneur. Penso medir bem as palavras, porque a estrutura e o desenho deste filme de seis personagens são duma articulação dificilmente superável. E por articulação entende-se esse talento raro de unir dois planos não (ou não só) por sequência mas por consequência. A capacidade de trabalhar espaço, tempo e palavra de forma a que tudo dê num fluxo a que se pode chamar de causalidade. Nem mais nem menos. Mas como não é do filme que aqui me tenho que ocupar, mas dum plano, respondo apenas à pergunta do início: sim, parece pequena a mala cheia de dinheiro ali fora. Pequena demais para o que por ela se teve que passar, pequena demais para o que com ela se pode comprar, pequena demais por ter esse terreno branco e nevado à volta dela. Sem se perder em explicações e racionalizações, é isto tudo o que Tourneur nos mostra no último plano de Nightfall. A neve e a natureza expõem o ridículo dessa cobiça eterna e também eternamente matéria-prima para contos morais. O enquadramento também é uma questão de moral. Haja tempo para olhar e perceber, tudo é uma questão de perspectiva e Jacques Tourneur foi um dos maiores pintores do cinema.
João Palhares
Impossível não invocar/evocar neste parágrafo as palavras de João Bénard da Costa sobre o misterioso drama de William Wellman Track of the Cat (O Rasto da Pantera, 1954). Wellman queria que este filme fosse, simultaneamente, a preto-e-branco e a cores. Para tal, havia o branco da neve que cobre as redondezas da casa da família “até ao infinito”. E depois havia o preto, da noite, de um dos cavalos (o outro é, apropriadamente, branco), da pantera que ameaça o gado e a família; enfim ou por fim – não há preto mais preto -, do luto da mãe que perdeu o filho. O preto do medo, atravessado por vermelhos súbitos “de pecado” (o casaco de Mitchum), e o branco que pertence à esfera da fé, mas também da culpa (o manto branco que cobre, e esconde, a paisagem fá-lo como a família que guarda um segredo ou um mistério que a come por dentro). O animal que aflige as personagens, escreve Bénard na sua Folha da Cinemateca, “(…) tanto é referido como tudo o que o branco reprimiu e aniquilou, como tudo o que está no interior do homem, nunca é visto”. Este filme cheio de elipses, verdades não ditas, não confessadas, funciona sempre no contraponto entre – e nesta ordem – o fora e o dentro; entre a ameaça de morte que cerca a casa isolada do mundo pela enregelante tempestade de neve e o forno das emoções que vão cozinhando, lenta e progressivamente, dentro da casa. John Wayne, na qualidade de produtor, terá dado carta branca a Wellman para fazer o que quisesse, adaptando “nem que fosse a lista telefónica”. O filme que daí resultou, e que Wayne disse não perceber, é como que uma dreyeriana chamada para a morte e para Deus – mas uma chamada que não tem resposta, que “não dá respostas”. A neve cobre a paisagem como a dúvida (a falta de…) interroga as razões da existência.
Luís Mendonça
Há muitos e belos planos com neve em Essential Killing (2011), de Jerzy Skolimowski. Aliás, a neve não é estranha a outros filmes da sua carreira; penso na cena esplêndida de Deep End (1970) em que Susan procura o seu anel de noivado: como então escrevemos, “um anel perdido na neve – só a imagem mental é arrebatadora”. Mas, dizíamos, em grande parte do filme, a neve é o décor da alucinante fuga de Vincent Gallo, e, se a brancura (da neve, da sua roupa, do cavalo que, a páginas tantas, encontra) é o tom predominante (embora, aqui, a “brancura” não evoque paz ou apaziguamento, antes uma paisagem adversa e inóspita à sobrevivência do ser humano), são também muitas as ocasiões em que o contraste cromático – sobretudo o vermelho do sangue de Gallo – é gerador de imagens lindíssimas, próximas de sonhos (como aqueles que Gallo tem dos seus familiares). É tingida desse vermelho que Skolimowski filma aquela que foi, para nós, como então elogiámos, a melhor cena do ano cinematográfico de 2011: literalmente quase a morrer à fome (entre feridas, cansaço, frio), Gallo cruza-se, inesperadamente, com uma mulher que transporta consigo o seu bebé. Vemo-lo, então, de revólver apontado à mulher, os olhos esbugalhados, momentaneamente nos passando pela cabeça a ideia de uma eventual violação pronta a consumar-se (o sexo como outra “fome”, outro instinto, por saciar pelo Gallo-animal). Mas não: Gallo ordena-lhe que destape um dos seios e, sôfrego, com a sua cabeça ao lado da do bebé (que mama do outro seio), mama o leite materno, poderosíssima ilustração da “animalização” para que Gallo tende ao longo do filme. Aqui, como no resto do filme, Gallo não pronuncia uma palavra; ao contrário, porém, do resto do filme, nesta cena, Gallo não “mata para viver” (o título em português): deixa viver e, com isso, ele próprio (sobre)vive (e, não matando aquela mulher e aquele novo ser, afasta a sua total “animalização”, conservando intacta a sua humanidade mais profunda). Aqui como quando veio ao mundo, a personagem de Gallo tem no alimento de uma mulher o meio indispensável à sua sobrevivência, tal e qual aquele bebé. Essential killing? Essential living.
Francisco Noronha
Sangue na neve. Haverá combinação mais perfeita de cores do que o derrame do vermelho sobre a pureza do branco? Bem o sabiam os valorosos homens que fundaram o Benfica, assim como o sabiam os irmãos Coen ao escolherem o Inverno do Minnesota como pano de fundo para o crime mais mal planeado da história do cinema – que, por virtude (por defeito) da má preparação, vai do rapto fingido ao assassínio de umas quantas pessoas em brevíssimo tempo – apenas pelo contraste entre o vermelho do sangue e o branco da neve. Dir-me-ão que houve outras razões, por exemplo, a aparente pacatez daquela terriola ou o sotaque esquisito, só que os Coen podiam ter encontrado essas características noutros locais, sem grande dificuldade. E quem viu o filme reterá sobretudo a imagem do sangue sobre a neve. Curiosamente, revendo Fargo (1996), são pouquíssimos os planos em que esta seja explícita. Ou seja, mesmo nas mortes mais sanguinolentas, à excepção de uma – quando Peter Stormare enfia Steve Buscemi num cortador automático de lenha -, o vermelho raramente chega a pintar o branco. E só se mostra mais evidente, inesperadamente, numa cena não violenta, aquela da qual retiro este plano, em que o vermelho pode ser de sangue mas está seco nas mãos de Buscemi, a cor meio desmaiada, e é o objecto que elas seguram a ser realçado na branqueza da neve.
João Lameira