O cinema de invenção se apoia na arte como tradição/tradução/transluciferação.
Jairo Ferreira, Cinema de invenção
Ver decaídas as naturezas trágicas e poder rir disto.
Friedrich Nietzsche
É impossível não haver escândalos, mas ai daquele por meio do qual o escândalo nos chega. Seria melhor que este fosse lançado ao mar com uma pedra de moinho atada ao pescoço do que levar um desses pequeninos a pecar. Tomem cuidado.
Lucas, 17.20
No final da L’Age d’Or (1930) de Buñuel, a percussão lancinante dos tambores da Semana santa de Calanda decreta o Apocalipse da ordem estabelecida- seus arcanos, seus fetiches. Uma percussão paranóica – regular e marcial – é igualmente o leitmotif deste O Jardim das Espumas (1971), e embora não sendo de Calanda, parece destinar a mesma danação, entre derrisória e grandiloquente, para o mesmo velho e ignóbil cosmos. Dos filmes contemporâneos ao AI5 brasileiro (conhecido pela crónica política como “o golpe dentro do golpe”), O Jardim das Espumas talvez seja, ao lado de Hitler IIIº Mundo (1968), o mais aguerrido espécime niilista, absolutamente consequente em seu desespero, demoniacamente exuberante em suas associações imagéticas, ferinamente herético em seus expurgos. O programa delineado aqui ilustra com intensidade terrorista o Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate de Dante: Um petardo político ateológico, uma máquina de guerra armada com dispositivos de desterritorialização ( collage!), um cadavre exquis de injúrias visuais, uma trama virulenta de violações. O Jardim das Espumas é um filme do êxtase como experiência terminal; poucos filmes do período, prenhe de utopias, assumem com esta desenganada desenvoltura a exaustão como palavra de ordem de sua estrutura: a entropia política se literaliza em uma entropia propriamente física, com estes planos sequências morosos e deliquescentes, estas monstruosas cacofonias discursivas- onde as hierarquias do cosmos rivalizam em poder com questões de Estado ditatoriais-, estes gritos tenebrosos, índices de um mauvais infini…
Mas o aparente caos, estas proliferações e desgarros pulsionais obedecem a uma rigorosa lógica, a uma estrutura, já bem diagnosticados pelo Polonius de Hamlet: “Loucura embora, tem lá seu método”. A princípio, observamos uma alternância entre o discurso e o Living Theater dos corpos violentados, digamos; este discurso- tatibitati, errático no caso dos artistas de cinema, ali no começo; pomposo e reativo, quando proferido pelos poderosos- parece ser o pano de fundo indispensável da acção. Ele prepara a cena da tortura, formaliza o horror, dá-lhe métrica e telos: uma cosmogonia totalitária se instaura quid juris. Depois, cabe ao filme encarregar-se de desenvolver – encarnar, consumar- as hipóteses e as ilações do discurso. O caos, o delírio são efeitos de uma inexorável cadeia de asserções dogmáticas de que o nazismo é a figura nuclear; sim, o nazismo,antes mesmo de ser uma central delituosa histórica e política, é, para o Terceiro Mundo da época, uma poderosa metáfora para pensar conflagrações de força, fluxos intensivos de Poder…
Sim, a referência ao nazismo é antes de tudo uma questão de metáfora; não se trata apenas de um cotejo entre os fascistas de ontem e os fascistas de hoje (1970), mas de um horizonte alegórico catalisado pela metáfora do nazismo. Em que sentido? O nazismo aparece aqui como uma instituição de Poder que gerou e gestou conversões entre o domínio da subjectividade o da Política: a psicose abandonou a tara do pequeno-burguês perverso, o seu foyer; exteriorizou-se e objetivou-se, institucionalizando-se como norma. No nazismo, podemos dizer que uma Nação, um Estado, um povo deliraram em conjunto: a psicopatia ganhou as ruas, galvanizou a Lei, editou decretos de exclusão, até finalmente erigir-se em um paradigma- funcional mas também fantasmagórico,- de controle e evacuação do Outro: o campo de concentração . O importante a reter é esta projecção, mediada pela estética (os grandes cerimoniais neo-clássicos, o Triumph des Willens (1935), Albert Speer), da psicose do sujeito em um universo de proporções épicas, e a reversível inervação do Poder pelos fantasmas de seus acólitos. “(…) O Inconsciente não delira sobre papai-e-mamãe; ele delira sobre as raças, as tribos, os continentes, a História e a geografia; sempre um campo social”. ( Anti-Édipo, Deleuze e Guattari).
Este id delirante estende seus tentáculos pelo mundo, ramifica-se por suas plagas-a História, a Política, o discurso propriamente dito. É disto que se trata no filme de Rosemberg Filho: experimentar as conexões, transições, os pontos de contacto e oclusão entre a pulsão e a instituição, o grito obsceno do excluído e o discurso protocolar, mediado, do Poder oficial; a princípio, podemos pensar que a pregnância da fala de Nildo Parente, porta-voz e conselheiro do ditador, contrapõe-se à algaravia dos personagens marginais, mas ambos pertencem a um mesmo contexto de brutalidade, de que a palavra de Parente oferece a glosa burguesa, ilustrada, pedante. Para eles, “os Outros”, restam as deambulações caóticas, os corpos seviciados, aas perseguições inclementes, os estupros: a escatologia. Mas é impossível pensar o filme sem nos determos sobre esta recíproca e alterável relação, estabelecida pela montagem, entre a grande Violência, perpetrada pela Totalidade, e a espoliação infligida aos pequenos itinerários perversos: verso, reverso.
Neste sentido, a distinção, observada por Serge Daney, entre uma avant-garde europeia- alicerçada em textos prévios, mais “ilustrada”- e uma avant-garde à americana ( mais empenhada em suscitar processos intensivos da percepção) inexiste aqui, ou perde sua função heurística. O Jardins das Espumas serve-se tanto das mediações, de textos exteriores ou anteriores ao filme (a importância da palavra em off, comentando alegoricamente o desvario dos personagens e, por analogia, evocando a distopia flagrante do país) quanto de uma gestão de intensidades, digamos- as “performances” Living theater no lixão. O “lixão”, os terrenos baldios, as margens das estradas funcionam aqui como uma espécie de cenário de refoulé: a grande Violência, epocal e institucional, não se identifica com esta, mas a situa e subsume. Foi esta a “lição” que o nazismo nos legou: a economia de troca entre os baixios e os bastiões do Poder, a infra e a super estrutura, o Desejo e a Racionalidade instrumental . Se este privilegiou, na construção de sua mitologia, os grandes metteurs en scène– Speer, Riefenstahl, Wagner- ,foi porque lhe forneceram as mediações imperativas para a implicação do indivíduo nesta “síntese política e estética a que chamamos Cerimonial. O Cerimonial ultrapassa o espectáculo no sentido de que ele confunde a Cena e a Cidade, pela participação directa das massas em sua implementação. Privando ao mesmo tempo a cena de seu espaço, de sua organização e de seu público, o cerimonial captura também em seu proveito o prazer- la jouissance– relacionado a estes espaços”. ( A Real Ficção do Poder, Comolli e François Géré).
Este grande fora de campo do Cerimonial perverso, onde o nazismo soube conjugar Estética e a Política ( Política como Estética), é o plano de fundo contra o qual se perfilam as trajetórias agonísticas dos pobres coitados de O Jardim das Espumas. Mas o que Comolli chama de Cerimonial é restituído aqui criticamente, por intercessão deste aparato dialético de choque revisionista, a montagem: um collage alucinatório de cacofonias visuais e sonoras interdita a possibilidade de qualquer cristalização fascinatória ou complacência fantasmagórica aos “efeitos” de Real suscitados pela representação. A estratégia é pontualmente corrosiva: contra a mise en scène faustosa de Veit Harlam, a continuidade do raccord fluido, o plano fixo-efígie, temos a montagem ideogramática de Eisenstein, o plano sequência rosselliniano, a perambulação catártica dos personagens de Rouch. Fractura, cisão, diferença: o mot d’ordre aqui é irreconciliação. O Jardim das Espumas é um filme feio, sujo, pobre, ébrio e cáustico, qualidades primorosas em termos de inspiração espiritual. Em sua onívora necessidade de afirmar a diferença ( a irreconciliação), o filme vai, como o Odradek de Kafka, acumulando as estrias e os detritos pelo caminho, enlameando-se, e neste cortejo distópico vai atingindo os cimos áridos de uma impossível, libertina liberdade. Neste sentido, o que temos aí é um processo deliberado de auto-aniquilação, processo indispensável na reconquista dos vastos e livres espaços, anteriores à inervação dialética. Este progressivo descentramento, este crescendo do aleatório e do descontínuo, esta conquista intransigente do direito à digressão e da imperativa reação vai encaminhando-o para as grandes regiões do êxtase místico ou tanatológico; esta intensificação radical do Negativo , sob todos os seus arcanos e máscaras, é essencial a uma démarche “irreconciliada”. Como disse no começo deste texto, parece-me que o êxtase aqui é necessariamente concebido como um signo antecipatório da “exaustão”; eis o Telos da trajectória, o selo niilista de uma reconquista irreconciliada de cinema. O rapaz que se arrasta ao longo do lixão, acossado pelos próprios demônios, cortejado por urubus, desesperado e fanfarrão, mimetiza com precisão este no man’s land a que devemos aspirar. Finis coronat opus: em tempos de Reacção, talvez a grande obra seja aquela cujo génio consiste unicamente em negar e negar, não deixar rastro de rastro atrás de si senão o de uma monstruosamente fresca e jovial explosão.