Há mais de 30 anos, num catálogo da Cinemateca Portuguesa a propósito de uma retrospectiva sua, Manoel de Oliveira lançou essa boutade que desde então parece funcionar como charneira de análise da sua obra, “o cinema não existe”. Ou colocando em contexto. “Tudo repousa sobre formas teatrais. Eu repito que, de facto, o cinema não existe. Penso mesmo que é saudável partirmos deste princípio.” Parte-se portanto invariavelmente para essa divisão-choque-simbiose entre o cinema e o teatro na obra do realizador portuense. Mas talvez este seja um caso em que o contexto tem o dom de contrair os significados dessa deixa. É que de facto se o cinema de Oliveira vive realmente paredes meias com o teatro, também poderíamos dizer, sem perda de generalidade, que o faz com a literatura e com a pintura. É sobre essa mesa de pé-de-galo (eixo único mas tripartido) que repousa o obra de Oliveira. Sendo que cada filme parece ser quase sempre uma variação entre essas três forças, ora apoiando-se mais numa e menos noutra, ora equilibrando-se com igual peso nas três.
No entanto noto que nos filmes que Manoel de Oliveira vem assinando neste século, um outro pé se vem impondo, fazendo-se cada vez mais presente. Que pé é esse? O próprio cinema – em particular o cinema (do) próprio. Isto é, somos levados num silogismo recursivo onde definimos o cinema do Oliveira através dele mesmo. Parece vacuoso tal raciocínio mas quando Oliveira é o próprio cinema – do mudo ao sonoro, do nitrato ao digital, da tintagem ao color grading – talvez não nos surpreenda tanto assim. Identifico o momento de transição com a obra (semi) auto-biográfica Porto da Minha Infância (2001) pelo olhar sobre a própria história, pelas próprias memórias e portanto necessariamente pelos próprio filmes – que as fixam (não só ao teatro, está bem de ver…). Desde então o exemplos vêm-se multiplicando: Belle toujours (2006) partindo de Buñuel, Rencontre unique (2007) na sala de cinema, as fotografias em movimento de O Estranho Caso de Angélica (2010) até ao mais recente O Velho do Restelo (2014). Note-se no entanto que este exercício, por vezes reflexo, funciona aqui muito longe de qualquer ideia de pós-modernismo ou de auto-referencialidade, nada disso. O cinema nas obras recentes de Oliveira é simplesmente um espelho do apuramento das artes anteriores (histórica e não ontologicamente), isto é, uma espécie de releitura do trabalho seu (ou de outros). Neste sentido O Velho do Restelo parece evidenciar aquilo que é típico em obras finais de alguns cineastas, a ideia de epílogo comentado (uma espécie de remate auto-crítico, um trabalho de construção de um novo olhar sobre a obra anterior) – veja-se por exemplo, para não irmos mais longe, Se Eu Fosse Ladrão, Roubava (2013) de Paulo Rocha (ainda por estrear).
No entanto há que notar o facto de não haver aqui qualquer lado testamentário. Há sim a manifestação cabal de que um autor é aquele que sempre filma o mesmo filme ao ponto de, passados 106 anos, todas suas recorrências e obsessões estarem já mais que filmadas. Ouve-se a certa altura a frase “a obra de arte é a projecção da fauna e da flora que habitam a nossa intimidade”, depois de tantos filmes sentimos que tais figuras já nos são também íntimas, dada a sua recorrência. Por isso, nesta mais recente curta-metragem, encontramos trechos de Amor de Perdição: Memórias de uma Família (1976), ‘Non’, ou a Vã Glória de Mandar (1990), O Dia do Desespero (1992) e O Quinto Império (2004). E também por isso vemos assomar do fundo do mar um exemplar de Os Lusíadas – como se Camões nunca o tivesse salvo do naufrágio que o velho do Restelo predissera – como víamos as correspondência boiantes entre Simão e Teresa. Ou ainda recordamos Mario Barroso/Camilo Castelo Branco do referido O Dia do Desespero mas também de Francisca (1981) – além dos sempre presentes Diogo Dória (Teixeira de Pascoaes), Luís Miguel Cintra (Luís Vaz de Camões) e Ricardo Trêpa (D. Quixote). E a tudo isto podíamos juntar o mesmo Porto de sempre com o mesmo rio, as mesmas pombas, e os mesmos bancos de jardim de O Pintor e a Cidade (1956).
Retomando agora a questão do cinema como inexistência, ao assistir à sessão de quatro curtas que agora ocupa as salas portuguesas tomei noção dessa variações equilibristas entre os quatro pés da mesa oliveiriana: a força pubescente à Ruttmann de Douro, Faina Fluvial (1931) – o cinema -; os êxtases cândidos de O Pintor e a Cidade com António Cruz – a pintura -; a nostalgia gloriosa em jeito de declamatória recensão literária de O Velho do Restelo – o teatro e a literatura – e o exercício performativo (?) de cítrica de arte em Os Painéis de São Vicente de Fora (2010) – o teatro e a pintura. Cada um sobre a(s) sua(s) arte(s) mas nunca cambaleando. No entanto, aquilo que se me tornou evidente – embora já houvesse sido pensado, só agora parece ter ganho substância frásica – é que o cinema de mestre portuense é um cinema da tela. Esta ideia evidencia-se particularmente em Os Painéis e em O Pintor, ideia de que as figuras saem da tela para a tela (como saem das paginas para a tela ou do palco para a tela ou do ecrã para a tela= do ecrã para o ecrã=da tela para o ecrã) da mesma forma que saem do pincel para a lente e da paleta para a película. É portanto um cinema das duas dimensões e brancura inicial, um cinema que se faz de cores e fixantes. “Quando eu digo que o cinema não existe, que o que existe é o teatro (…) é porque é aí que ele é rico, que é verdadeiramente distinto do teatro que é efémero. (…) Da mesma maneira podia dizer que a vida não existe(…). Porque a vida escapa-se-nos a todo o instante, o momento de agora é já perdido”. E para isso grava-se na tela o momento – antes que o percamos! – para sempre o podermos (re)ver do mesmo modo. Manoel de Oliveira vem fixando os seus momentos e nós vimos podendo viver neles.
Citando mal e depressa, Antonioni disse uma vez qualquer coisa como a diferença entre o cinema e a pintura está no facto de a pintura fixar representações da vida e o cinema tentar fixar a vida a acontecer. Oliveira não podia estar mais longe, e no entanto é cinema o que ele filma, um cinema da tela ou de página ou de palco…. Nos seus filmes a vida não acontece, apenas o que sobeja dela – depois de filtrada pela literatura, pela pintura, pelo teatro e finalmente pelo próprio cinema. E poder viver essa vida em momentos, simultaneamente íntimos e públicos, é um prazer que raramente se vai tendo. Hoje, no dia do aniversário de Manoel de Oliveira, esse prazer volta a ser possível… na tela onde sempre esteve e está.