“Two drifters off to see the world / There’s such a lot of world to see / We’re after the same rainbow’s end / Waiting ‘round the bend, my huckleberry friend…”
O primeiro beijo de Odete, o mesmo é dizer, o primeiro (grande) plano do filme, é tão belo quanto o beijo que Audrey Hepburn e George Peppard, os dois pingando à chuva, imortalizaram na última cena de Breakfast at Tiffany’s (1961, Boneca de Luxo), de Blake Edwards. Podíamos ficar por aqui, porque já teríamos dito muito, talvez o essencial, da segunda longa-metragem de João Pedro Rodrigues, com a qual recebeu, em Cannes, a Méntion Spécial Cinémas de Recherche (2005) e ampliou a aclamação granjeada com O Fantasma (2000). A citação (a nossa e a que o filme explicitamente lhe faz) não é por acaso – Odete é matéria cinéfila pura, e num duplo sentido: intradiegeticamente, na medida em que as personagens assistem, efectivamente, ao filme de Edwards (é “o” filme do casal de Odete, Pedro e Rui); mas, mais importante, extradiegeticamente, no sentido em que, com essa citação, o filme projecta a carne de que é feito, a saber, a recuperação, a reabilitação, enfim, o exercício de fazer renascer os mortos, os fantasmas, aqueles que já partiram [e não é só o filme de Edwards; João Pedro Rodrigues também pisca o olho, na derradeira cena, a The Tarnished Angels (1957, O Meu Maior Pecado), de Douglas Sirk]. Ora, a cinefilia é justamente essa bela e condenada (porque o que foi não volta) evocação do passado, da memória e dos seus mitos, com a qualidade adicional de o fazer de modo permanente, pois que essa evocação, essa rememoração, invariavelmente se repete assim que nos sentamos, uma e outra vez, na solidão do escuro da sala, ansiosos que “as estrelas cadentes e os mitos esquecidos” renasçam, que voltem a viver – efémera, sempre efemeramente, embora a sua grandeza (bigger than life) nos queira convencer do contrário – diante dos nossos olhos.
Esse beijo tremendo com que o filme abre convola-se, pouco depois, num abraço de dor, encharcado de chuva e sangue, entre um vivo (Nuno) e um morto (Pedro), o casal que, minutos antes, acabara de ouvir, adulterada, “Moon River”, a “sua” música, o “melo” do (seu) drama – onde o amor vencia, em Breakfast at Tiffany’s, aqui, “morre”, também à chuva, também ao som de Henry Mancini. Corte e logo surge, a vermelho-cor-de-sangue, em letras garrafais, “ODETE”: e ela aparece (também de vermelho), alta, bonita, franzina, a transbordar de electricidade pelo corpo, patinando num corredor de um hipermercado. Quando lhe pedem que verifique o código de um produto para uma cliente grávida (“Posso tocar-lhe na barriga?”, pergunta, inapropriada e compenetradamente), já sabemos em que desejo e desígnio Odete “patina” (e se desequilibra) obstinadamente: um bebé, um filho capaz de dar algum sentido, de dar vida, à sua vida, absolutamente carente de perspectivas – enfim, um filho capaz de a fazer deixar de “patinar” na mediocridade dos seus dias. É isso que pede a Alberto (Carloto Cotta), o namorado (segurança no mesmo hipermercado) que, cansado das suas insistências, desaparece do mapa.
O que os unirá, a Odete (espantosa Ana Cristina de Oliveira) e Rui (Nuno Gil), é, por isso, além do fim de uma relação (se bem que por causas bem diferentes), (a ausência de) Pedro (João Carreira), o filho da vizinha da primeira e o namorado do segundo. A morte de Pedro conhecerá, em Odete e Rui, dois modos muito distintos (existencialmente distintos) de fazer o luto: se Rui se abandona à prostração, ao desespero, se se agarra, neste sentido, à morte, Odete, pelo contrário, verá indirectamente na morte de Pedro um forma de se agarrar à vida, num plano verdadeiramente fantasmagórico (sobrenatural? “divino”/bressoniano?) sendo-lhe feita essa “revelação”: com o vento a assobiar intensamente e a fazer dançar as cortinas da janela do seu modesto apartamento (plano subjectivo), Odete dirige-se à janela e vê, na rua, a mãe de Pedro (Teresa Madruga) chorosa, logo ali tomando a resolução de uma vida nova (nesta emancipação, neste “virar”, como dizem os brasileiros, se manifestando o traço clássico do melodrama). Literalmente: a vida de uma criança fictícia que transporta no seu ventre e que diz à mãe de Pedro ser filho deste (como “obra e graça” de… Pedro).
Mas dizer, sem mais, que Odete se agarra a essa nova vida seria ignorar que, paralelamente, Odete se agarrará, também, à morte, passando a fazer uma vigília permanente junto da campa de Pedro, limpando-a, arranjando as flores, tudo como se, efectivamente, este fosse pai do seu filho. Não o faz por oportunismo (para receber apoio da mãe de Pedro), mas, talvez, por uma angústia bem maior: a necessidade de, vivendo uma vida tão monótona quanto anódina e insignificante, experimentar emoções fortes, sentir-se importante para os outros (para a mãe de Pedro, para Rui), ter algo, por mínimo (e fictício…) que seja, a que se agarrar, mesmo que isso constitua fonte de sofrimento – ao menos sofre, ao menos sente. É, por isso, esta insatisfação e consequente necessidade de insuflação emocional que fará dela a criatura noctívaga (da claridade diurna e agressiva do hipermercado passamos para a noite, para o escuro e para as sombras), fantasmática, quase da esfera do sobrenatural, que passa a conviver com o “outro lado”, i.e., com os mortos (o gosto e o bom gosto na filmagem de cemitérios repete-se no grandíssimo Morrer Como Um Homem, 2009), dormindo sobre a campa de Pedro e, inclusivamente, “fazendo amor” (o desejo de posse e apropriação concretizado) com o defunto (duas das mais belas cenas que o Cinema, português e não só, já nos deu).
É nesta obsessão, neste fetichismo (e no ritualismo na sua veneração que lhe está associado) pelos mortos, pelos os que já cá “não moram”, que, como principiámos, as “duas” Odetes (o filme propriamente dito e a personagem) partilham com a cinefilia a sua veia necrófila (onde e com quem estamos, afinal, nos filmes de Capra, Lang, Cukor, Edwards, Wilder, senão no escuro da sala, com zombies, mortos-vivos que de vivo têm apenas os minutos que duram os filmes?), e Pedro (como o António de A Vida Invisível, 2003, de Vítor Gonçalves), enquanto objecto desse fetichismo, se assemelha às personagens, aos mitos (as Audrey Hepburns dos Breakfast at Tiffany’s), que a mesma (a cinefilia) teima em fazer ressuscitar. Rui, pelo contrário, procura exactamente o oposto da cinefilia, i.e., o esquecimento, o apagamento total de Pedro, sob pena da memória não o deixar viver em paz consigo mesmo (paradoxalmente, a cinefilia, enquanto dispositivo preservador da memória, é ou não, afinal, um factor de pacificação connosco mesmos?). Odete é o medium, o projector, que insiste em convocar o fantasma, que insiste em “projectá-lo” na tela, em dar-lhe luz no escuro (da sala e da noite de Lisboa), enquanto Rui, na única vez que se consegue dirigir ao cemitério depois do funeral, tenta desesperadamente “incendiar” a tela [“Morre!”, grita no cemitério, como quem atira o cigarro incendiário que, em Inglorious Basterds (Sacanas Sem Lei, 2009), queimava a bobine, a tela, o teatro, reduzindo a cinzas (i.e., fazendo esquecer, apagando) o nazismo].
A criatura a que aludimos a propósito de Odete (há mesmo algo de “animalesco” no seu comportamento, no reflexo voyeurista que o seu olhar ganha, no modo ágil como trepa o cemitério ou foge do hospital) não é força de expressão: com o decorrer do filme, e à medida que vai desenvolvendo o seu fetichismo por Pedro, Odete, não se bastando com a projecção, vai começar também a querer ser Pedro, processo de dessubjectivação/resubjectivação que redunda, novamente, na necessidade de se sentir importante para alguém no mundo, de assumir para si as emoções (em si desgarradas) de outros: acolhida e acarinhada pela mãe de Pedro, dorme no seu quarto, veste as suas roupas, corta as unhas e o cabelo (como o de Pedro), naquele que é o culminar de um processo de metamorfose (de resto, um dos temas-charneira do cinema de João Pedro Rodrigues, mas aqui desprovido, ao menos exclusivamente, da dimensão queer) que lhe permitirá, finalmente, ser alguém (que não ela mesma, condenada à insignificância). Neste triângulo amoroso “impossível” (um dos vértices está morto), nada se perde: tudo se transforma (a própria ausência de Pedro converte-se, por força da Odete-“cinéfila”, numa presença) e transfere, ideia de que é metonímico o modo como o anel – que Rui havia oferecido a Pedro por ocasião do seu primeiro ano de namoro – vai passando “de mão em mão”: de Rui para Pedro, de Pedro para Odete (que o… “chupa”), de Odete para Rui, nesta última “transferência” indo implícito o propósito de Odete em reconstituir toda a relação de Rui e Pedro desde o seu início até ao momento (um ano) em que Rui lhe oferecerá, novamente, o anel – a si, Odete (ou… Pedro).
Estamos, pois – e para chamar, agora não a cinefilia, mas a sintaxe cinematográfica propriamente dita à colação –, no campo da pura representação, donde Odete emerge como uma personagem “2D” ou em segundo grau: Odete é a personagem interpretada por Ana Cristina de Oliveira, mas é, outrossim, a personagem que intepreta – que faz as vezes de – uma outra personagem, Pedro (no que de sobrenatural a Odete-criatura emana se projectando a figura do doppelgänger, se bem que despido, aqui, da dimensão maléfica e premonitória). Através desta mudança de pele (ainda mais explícita no fato de látex d’O Fantasma), Odete converterá Rui à cinefilia, i.e, procurará fazê-lo acreditar no seu Pedro ressuscitado, para isso simulando (representando, precisamente) o primeiro encontro entre os dois (que Rui lhe havia contado) e exigindo, com radical literalidade, a bênção “identitária” de Rui na cena de sexo com que o filme encerra: “Chama-me Pedro!”. E Pedro ali ao lado, de costas para nós, como um anjo vigilante de Wenders em Der Himmel über Berlin (As Asas do Desejo, 1987).
Odete, filme enorme do cinema português, será exibido sexta-feira, dia 12 de Dezembro, às 18h30, no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, no âmbito do ciclo Harvard na Gulbenkian.