Testemunhas de um auspicioso início, os colaboradores do À Pala de Walsh João Araújo e Sabrina D. Marques acompanharam a primeira edição do Porto / Post / Doc, o Primeiro Festival Internacional de Cinema (Pós)Documental do Porto.
Fazia falta um Porto / Post / Doc. A primeira edição do novo festival de cinema documental do Porto aconteceu entre os dias 4 e 13 de Dezembro, e estendeu-se das principais salas aos espaços mais alternativos do centro da cidade. Na Conversa À Pala em que nos detalhou o evento, o director do festival Dario Oliveira começou por apresentar o nome do festival como uma proposta de conceptualização do próprio conceito de documentário. É nosso o desafio de tentar perceber este lugar de pós-documentário que aqui se evoca, através de um programa de quase meia centena de filmes exclusivamente contemporâneos que gritam como o cinema pode e deve ter um papel activo na construção de uma ideia de realidade. É comum achar-se nos velhos volumes de história do cinema tentativas de fazer corresponder a parelha dos primórdios Méliès / Lumière à dualidade ficção / documentário, mas o erro está na oposição. É tão enganador como a divisão platónica entre real e ilusório que nos serviríamos da resposta de Slavoj Zizek defronte do Matrix para propor um ‘‘terceiro comprimido’’, aquele que não mostra nem a realidade nem a ilusão, mas a realidade como uma ilusão. Um pós-documentário. Assim, se o slogan do festival é ‘‘as nossas histórias são reais’’ poderia ser também as nossas realidades são histórias – e está aqui, algures “entre o documentário e a ficção, o que há de mais vibrante na produção mundial”, afirma Dario Oliveira. Numa entrevista de 2013, o portuense Manoel de Oliveira – que recebeu do Porto/Post/Doc uma homenagem em honra dos seus 106 anos – respondia à pergunta de Pedro Mexia ‘‘A História é de certa forma uma ficção?’’ com ‘‘É uma ficção, e quanto menos sérios formos mais nos ilude a convicção de que estamos a fazer um filme histórico.’’ Face a isto, suspende-se a pergunta – ‘‘Onde está o real?’’, e foi sob este mote que o fórum de debate nasceu e estimulou o decorrer do festival com reflexões conjuntas acerca de como o cinema pode servir uma ‘‘tradução do quotidiano’’.
Num presente em que é árdua a tarefa do cinema de enfrentar com imagens em movimento as vias de comunicação já saturadas de imagens em movimento, a definição de cinema documental em particular deve destacar-se de uma percepção generalista que lhe é vulgarmente associada, essa categorização difusa que por tantas vezes o confunde com um género de linguagem televisiva pautado por princípios jornalísticos de informação e de reportagem. Se a estreiteza entre documentário e documento é exaustivamente evocada para falar do papel do cinema documental na constituição da memória histórica, em falta fica o vincar da ligação entre cinema documental e arte, enfatizando a sua qualidade cinematográfica. É a sua existência enquanto objecto artístico -onde ao ponto de vista autoral corresponde o gesto de responsabilização, que constituí cada filme como um objecto crítico – que privilegia a sua intervenção reflexiva na sociedade. Assim sendo – e a associação Porto/Post/Doc sabe-o – um festival não se constrói apenas por sessões de cinema mas por uma lógica de contextualização dos filmes, que inclui actividades paralelas (como as ‘‘school trips’’ e o espaço ‘’esporão transmission’’) e uma proposta de continuidade, com projectos ao longo de todo o ano. Contra o decréscimo dos espectadores em sala em detrimento das sessões domésticas que a pirataria dos nossos dias estimula, um festival acaba de nascer com consciência do seu contexto, e age sobre ele propondo um movimento de retorno da experiência cinematográfica a um lugar colectivo. Este dinamismo tem em particular conta algo que é importante salvaguardar: que um festival de cinema é, pela sua natureza, um tipo de evento cultural capaz de gerar movimentos benéficos para uma cidade, não só por envolver os seus habitantes mas particularmente por convidar fluxos exteriores (o Curtas de Vila do Conde é um exemplo extraordinariamente conseguido disso mesmo). Contra as programações tipificadas das cadeias de distribuição generalistas, o objectivo é ainda o de devolver uma programação alternativa às salas centrais do Porto, apostando na reconversão dos hábitos e na formação de novos públicos.
Sabrina D. Marques
Muitas vezes, a ordem pela qual vemos certos filmes pode influenciar a nossa percepção dos mesmos, como se um filme reagisse a um outro visto anteriormente, como se houvesse um diálogo entre eles. Foi o que aconteceu nos primeiros dias do Porto/Post/Doc, onde os filmes pareciam conspirar para criar uma narrativa própria, fora de si.
Concerning Violence (A Respeito da Violência, 2014), o filme da sessão de abertura oficial, de palavras fortes mas imagens ainda mais fortes, é uma inquietante e arrasadora investigação aos efeitos da colonização de África pelos países europeus e às cicatrizes que ainda perduram. Göran Olsson volta a debruçar-se sobre outra história mal resolvida, depois do anterior The Black Power Mixtape 1967-1975 (2011), mas se aí as imagens de arquivo a que recorria eram acompanhadas por depoimentos de pessoas envolvidas nos acontecimentos, aqui as imagens têm um encontro feliz com um texto adaptado ao filme, ao pegar nas palavras do livro Les Damnés de la Terre. O filme começa com um prefácio que contextualiza o trabalho de Frantz Fanon, o autor do livro publicado em 1961, ano da morte do seu autor, com apenas 36 anos, e que faz desde logo a crítica ao filme, alertando para o simbolismo de algumas das imagens que iremos ver. São estas imagens de arquivo, recuperadas e ressuscitadas para este filme, que, juntamente com o poder descritivo e narrativo do livro, traçam um rumo da história que o filme pretende abordar, e desenvolvem a tese incriminatória do papel europeu. O texto refere como esse papel passou desde sempre pela exploração africana pelos países europeus, desde a escravatura até à colonização, que continuou mesmo depois desta acabar, até ao fim do século XX, com a apropriação económica dos recursos naturais do continente, a única forma que a Europa conheceu para se enriquecer. As imagens que acompanham o texto servem para acentuar as palavras, como quando vemos os negros em áfrica como servos dos europeus brancos, como não-pessoas – é também a humilhação como forma de violência, a abrir feridas psicológicas.
O filme estrutura-se através de um jogo duplo entre as imagens, como quando uma sequência responde à anterior, contrapondo uma imagem de miséria negra com uma imagem de prosperidade branca, entre imagens de cenários de guerra e cenários de férias, como um campo/contra-campo entre duas imagens distintas, assim como entre as imagens e as palavras. Este jogo contínuo acompanha os diferentes sentimentos evocados pelo texto, como quando vemos a imagem inesquecível de uma mulher negra amputada a amamentar o seu filho, ou quando contrasta imagens de feridos africanos com feridos do lado europeu. Estas imagens esquecidas querem lembrar que nesta história não há vencedores, apenas explorados e exploradores. A parte final do filme incide sobre a visão de Fanon segundo a qual qualquer emancipação terá que passar necessariamente por um novo paradigma de desenvolvimento humano, porque a Europa não é um modelo a seguir. Olsson aproveita uma entrevista de um militar africano que explica como os empréstimos do FMI são uma forma de continuar a colonização, e que num discurso ressonante, parece estar a falar para os portugueses, sobre uma nova colonização que acontece agora dentro da europa.
Se Concerning Violence parece alertar para o falhanço da Europa como modelo, L’Abri (O Abrigo, 2014), o filme que vimos de seguida, parece afirmar que a Europa está morta. O filme de Fernand Melgar é um sombrio e desolador retrato da realidade de um albergue para os sem-abrigo, sob o peso das noites frias que se repetem. O filme acompanha durante vários meses um bunker em Lausanne, que funciona como um último refúgio para os migrantes perdidos, nómadas abandonados dentro da europa. Numa situação que se repete ao longo do filme, como a lotação do abrigo é limitada, há primeiro uma luta entre os que esperam por entrar para não ficarem de fora e, depois as portas que se fecham, a condenação aos que não conseguem entrar a mais uma noite ao relento – a imagem das portas fechadas e dos que ficam de fora são assombrosas, tal como a sua repetição. Na sua humanização do funcionamento burocrático do abrigo, de forma a eliminar as barreiras entre o espectador voyeur e os ocupantes do abrigo, L’Abri acompanha também o quotidiano de alguns dos trabalhadores, alguns deles também antigos imigrantes ou filhos de imigrantes. A selecção ao fim da noite nunca é pacífica, é um peso angustiante sobre os trabalhadores do abrigo, na sua tentativa de fazer o melhor com os escassos recursos que têm ao seu dispor. Se há vários sem-abrigo já demasiado marcados pela idade e pela privação, que apenas tentam sobreviver a mais um inverno, impressionam também outros que demasiado jovens, acabados de chegar a este fim-do-mundo pessoal, encontram nos mais velhos uma projecção do futuro próximo. Da mesma forma que o filme se aproxima dos trabalhadores, acompanha também de perto alguns dos migrantes, na composição de alguns retratos, como o de um casal espanhol recém-chegado à Suíça, que deixou a hipoteca para trás e que ameaça desvanecer-se aos poucos, ou o caso de um africano que procura emprego ao longo do filme, que acaba a caminhar em direcção ao desconhecido. Mas é quando a câmara de Fernand Melgar segue os que não conseguiram entrar no abrigo, pelas ruas onde acabam por procurar resguardo, que o olhar se torna ainda mais desamparado, aclamando pelo menos ao testemunho da câmara e depois do espectador, para que, ao menos, esta história não seja esquecida.
Waiting for August (À Espera de Agosto, 2014) de Teodora Ana Mihai não é tão sombrio e desesperante como os dois filmes anteriores, mas é um filme igualmente triste, ainda que de forma mais subtil, ou onde a tragédia aparece mais encoberta. Uma obra melancólica e delicada, oferece-nos um retrato de uma família de seis irmãos numa cidade romena, acompanhando o seu quotidiano sem a presença da mãe, ausente por alguns meses a trabalhar no estrangeiro, e de um pai desaparecido. Georgiana é a mais velha das irmãs e, por isso, fica encarregue de ocupar o lugar da mãe na educação dos outros e da lida da casa, apesar do mais velho dos irmãos ser um rapaz (cuja única responsabilidade é gerir o dinheiro). É esta rapariga, entre o mundo adolescente e o mundo adulto, que vai carregar também o filme. Se no princípio a liberdade extra parece compensar a ausência da mãe, aos poucos, com a falta de privacidade e o acumular de tarefas que se substituem às actividades próprias de uma adolescente, o filme vai pintando um quadro de implicações emocionais e afectivas para os diferentes irmãos. Sem narração ou outro tipo de contexto, o filme apresenta esta quotidiano alterado de forma naturalista, instintiva, para o espectador chegar às suas próprias conclusões, algures entre um realismo social e o voyeurismo de Wiseman. A tristeza que vai sobressaindo no filme não é só o sacrifício de Georgiana, mas também a dos seus irmãos que crescem sem o conforto maternal, que identificam Georgiana com o papel de mãe, e vêem a sua mãe como uma quase estranha que os visita ocasionalmente, tal é a frequência das ausências. Entre os telefonemas da mãe e as encomendas que faz chegar com os agrados exigidos pelos pequenos, há uma cena que revela particularmente a tristeza desta ausência, quando os mais novos, a propósito de um trabalho escolar, têm de recorrer a Georgiana para saber qual a cor do cabelo e dos olhos da mãe, porque já não se lembram – fica assim, quase de forma despercebida, demonstrada a tese do filme. É uma ausência também motivada por razões económicas, dentro de uma Europa onde os mais pobres têm que procurar emprego onde existe, deixando os filhos perante um futuro incerto, a favor da necessidade do presente.
Um filme feito todo com planos de paisagem, como foi apresentado pelo seu realizador Lois Patiño, Costa da Morte (2013) surge no festival como um exemplo de um emergente cinema galego, com os seus autores jovens e novas linguagens, representado aqui por Patiño, vencedor do Prémio de Melhor Novo Realizador no Festival de Locarno de 2013. Costa da Morte é um filme melancólico, com os seus longos planos fixos, contemplativos e hipnóticos, mas quase científico quanto à sua investigação da coabitação entre o Homem e a Natureza da Galiza. Ao filmar de longe, muito longe na maioria das vezes, e com um notável trabalho de som, parece que, na maior parte do tempo, estamos a ver imagens de um filme de ficção científica, onde astronautas dão os primeiros passos em terras estranhas, e os seus gestos tornam-se demorados e alongados, enquanto os observamos através de um telescópio. A utilização de uma linguagem rigorosa e formal, limitada a poucos movimentos mas de forma alguma limitada no seu alcance, procura desenvolver uma linguagem sensorial que se inspira no meio ambiente que filma, através do qual submerge lentamente um modo de vida.
Os homens e mulheres que aparecem nas tais paisagens surgem como figuras estranhas que habitam estes cenários fantasmagóricos, figuras solitárias que são contrastadas com a natureza, sempre com a herança da memória presente. Apesar de monocórdico, os diálogos filmados de longe mas ouvidos de perto fazem referência a um imaginário de histórias do passado recente e distante, das lendas e aventuras daquela terra que desde os romanos que chamam de fim do mundo. Não faltam imagens de uma beleza desoladora, como na sequência dos mergulhadores que se refugiam por momentos atrás de um rochedo. A lentidão do filme permite espaço para as paisagens ganharem gradualmente uma qualidade sobrenatural e Patino parece fascinado com as imagens que encontra – e com as quais parece querer encantar o espectador.
Mga anak ng unos (Storm Children: Book One, 2014) é uma proposta difícil: um filme longo, a preto e branco, com planos fixos de vários minutos onde quase não há acção ou movimento e sem diálogos: cinema mudo mas pouco silencioso. Mas se Lav Diaz, um cineasta desafiante das regras, parece aqui recusar qualquer narrativa ou até noção temporal, esta é sua proposta, para nos mostrar o rasto de destruição da passagem pelas Filipinas do supertufão Haiyan em 2013, o mais forte já registrado na história, provocando a morte de cerca de 7 mil pessoas. Diaz leva-nos para o meio dos escombros, sem contexto, onde se detém a filmar as crianças enquanto estas remexem por entre o lixo e ruínas à procura de algo que se aproveite, repetindo longas sequências onde nada acontece excepto estas tarefas banais e sem sentido, testando a paciência do espectador. Mas aqui tudo acontece por uma razão, ou melhor, olhando para trás, o plano de Diaz começa a fazer sentido. Aos poucos compreendemos que é a própria presença da câmara de Diaz que dá sentido a estes gestos dos miúdos, anestesiados e repetidos, que deixados ao abandono no pós-trauma da destruição, deixam de sentir-se esquecidos para verem na presença de Diaz um aliado, uma testemunha. Depois, percebemos também gradualmente que estas longas sequências onde nada parece acontecer são, na verdade, o espelho de uma vida sem sentido, de pobreza e sofrimento – como se aquele vasculhar, aquele passar do entulho de um lado para o outro, fosse natural em qualquer contexto. E finalmente, através de uma breve entrevista a um dos miúdos, o único depoimento no filme, percebemos que o foco do filme nas crianças tem uma razão de ser: enquanto os mais novos correram para os montes para fugir da subida de águas e das ondas, os mais velhos ficaram para trás, e sobraram apenas quase as crianças para remexer nas ruínas. Um dos rapazes que perdeu a mãe e duas irmãs segue a câmara, orgulhoso por estar a participar num filme. É natural que perante isto Diaz não queira parar de filmar, como se a cura para aquela tragédia passasse pela presença de Diaz junto das crianças, e pela presença destas crianças no filme. Fica a letargia do trauma primeiro, depois a tristeza. Primeiro o silêncio, depois o recomeço.
A Cidade e as Trocas (2014) de Luísa Homem e Pedro Pinho é uma tentativa de capturar uma ideia abstracta, através da colagem de várias sequências filmadas em Cabo Verde, mas a verdade é que essa ideia anda fugida do filme durante a maior parte da sua longa duração, resultando antes num filme pouco concreto, sem definição clara. As sequências que se sucedem, entre cenas do quotidiano rural de uma população empobrecida, imagens industriais do trabalho numa pedreira e num porto, e rotinas que registam a passagem morosa do tempo, não aparentam uma ligação que sustente o olhar demorado da câmara, mas antes uma dispersão narrativa. É como se os realizadores tivessem partido à procura de captar uma ideia, à procura de encontrar um registo das trocas numa economia onde convivem resorts e pobreza, e acabassem por utilizar todo o material disponível. O filme parece ganhar foco nas sequências que dedica aos turistas de passagem, ao aludir à questão racial quando confronta as imagens dos turistas europeus com os trabalhadores locais – e com a sua melhor cena, quando um empregado guia a pé o camelo que transporta dois estrangeiros – nesta economia que parece apenas ser uma continuação da exploração colonizadora. Contudo, estes momentos não são suficientes para que entre na vida destas pessoas, tornando-se o filme, ele próprio, como que um estrangeiro em relação ao que filma.
Já Nebel (Nevoeiro, 2014), de Nicole Vögele, tenta capturar um estado de espírito através de paisagens nebulosas e pequenos retratos de pessoas presas a uma rotina, como se o nevoeiro fosse ele próprio uma condição humana. Os pequenos retratos de pessoas como um radioamador, que tem sempre os mesmos horários, ou um condutor de um ferry, que tem que responder a um alarme a cada trinta segundos, apresentados primeiros através de umas poucas linhas de texto e, depois, por pequenas vinhetas das suas rotinas, conseguem manter o interesse do espectador, apesar da leveza da narrativa. Alternando entre imagens literais de neblina a descer sobre montanhas, e imagens figurativas das diferentes pessoas no seu habitat natural, é uma primeira obra, com um conceito de execução frágil, mas que aparenta promessa na sua idealização. Por sua vez, Teenage (2013) de Matt Wolf, é um vibrante e inventivo filme-ensaio, que procura demonstrar a adolescência como uma noção criada no início do século, para acompanhar as alterações culturais. Uma colagem de passagens de diários de adolescentes narradas sobre um incrível trabalho de imagens de arquivo, começa por evidenciar como a adolescência é um conceito relativamente recente, que não existia no início do século, quando durante a revolução industrial as crianças passavam logo para a fase adulta. Ao mimetizar o estado de espírito complexo e multi-facetado, com uma diversidade de retratos, emoções e comoções, acompanha a evolução da percepção da adolescência até à década de 50, de uma forma original e envolvente.
João Araújo
Em Dreamocracy (de Raquel Freire e Valerie Mittaux, 2014), o sonho de um país por construir. Num Portugal asfixiado por um plano anti-democrático imposto pela troika, que democracia resta? João Labrincha, Paula Gil, Alexandre Carvalho e António Frazão são os principais jovens responsáveis pelo protesto Geração à Rasca (a 12 de Março de 2011), um marco na história da luta social em Portugal, mobilizando mais de meio milhão de pessoas (uns impressionantes 5% da população nacional) numa manifestação que, não vinculada a partidos políticos, foi a mais viva demonstração colectiva de cidadania que se viu desde 1974. Daqui nasce o Movimento 12 de Março, que estimula o diálogo e novas iniciativas sociais, concretizando uma agenda de objectivos que inclui o complexo projecto da ‘‘Academia Cidadã’’. É o esforço de materializar esta escola de cidadania que acompanhamos através do filme, ao longo de meses junto dos jovens activistas João Labrincha e Pedro Santos, que nos mostram como o movimento continua graças ao seu compromisso diário. ‘‘Fazer de cada cidadão um político’’ – a frase de Saramago que é continuamente evocada ao longo do filme, resume esta vontade de criar estruturas sociais que dêem ‘’mais poder às pessoas’’ e ao modelo colectivo de organização, demonstrando como ao pleno exercício da democracia corresponde a possibilidade de uma intervenção na sociedade que não acaba no direito ao voto. Numa admirável fidelidade à causa colectiva, são estes os rostos no epicentro de um movimento que não é só emblema de uma geração cada vez mais consciente politicamente, mas de todo um país tolhido pela precariedade: as palavras de Pedro e João são de um idealismo imperativo, e a sua imparável movimentação guia-se por sonhos que, afinal, são de todos e para todos: das ruas ao café da esquina, dos jantares de família às trocas de testemunhos com quem leva estilos de vida alternativos, todas as conversas são dominadas pela revolta generalizada e das angústias compartilhadas subsiste uma irredutível fome de mudança. Mas é nesse misterioso e extraordinariamente simbólico plano em que se ouve que ‘‘um 25 de Abril vai voltar a acontecer’’ que se resume, diria eu, toda a força do filme: por um lado, as duas pessoas com idade para terem vivido na própria pele o 25 de Abril hoje paralisadas defronte de um computador enquanto, por contraponto, ecoa esse segundo ‘‘chamamento para a revolução’’, suspendem-se como figuras de um sentimento de cansaço generalizado, e que catalisa nos que nunca chegaram a ver cumprido o sonho de Abril a descrença na capacidades da luta colectiva; por outro lado, a presença dos computadores argumenta a vitalidade possibilitada pelos novos meios de comunicação, lembrando como o Movimento Geração À Rasca teve, afinal, início com a criação de um evento no facebook e um blogue. Se a extrema validade de Dreamocracy, pobre do ponto de vista cinematográfico, é a de um documentar um trabalho em contínuo – que é cada vez mais urgente agarrar à luz da realidade de um país mais e mais enredado nas rédeas da ditadura económica – o mérito da realizadora Raquel Freire vai muito além disso, sendo uma contínua presença publicamente associada a estes movimentos.
O grande vencedor do Porto / Post / Doc foi Letters to Max de Eric Baudelaire, um filme que é, acima de tudo, um sublinhado poético da medida em que a realidade se deduz da ideação. Uma aventura das pequenas cartas que atravessam a Europa em direcção a um país que existe apenas para os seus habitantes. O protagonista deste filme é aquele pequeno pedaço de terra caucasiano chamado Abecásia, território de estatuto permanentemente oscilante: declarou-se independente após uma violenta libertação da Geórgia ganha com a guerra civil de 92-93 e, travando uma luta para ser reconhecido como país nos anos precedentes, gozaria de pouco tempo de autonomia até ser reconhecido pela Rússia em 2008. Enquanto isso, é entre as ruínas que ainda marcam a guerra na paisagem que se caminha mas, pela esperança na voz de Max, quase acreditamos que todas as disputas poderão ter valido a pena se o resultado for que este pequeno país (que tem fronteiras, um governo, uma bandeira e uma língua próprios) possa ser reconhecido pelos outros países, autónomo da Geórgia e da Rússia. E em conjunto, durante o instante que precede o envolvimento russo, sonhamos todos naquela paisagem a potência de um país por ser, em liberdade, em autonomia. E quem é Max? Sem apelidos nem títulos profissionais, é simplesmente Max. Ele não é apenas um político, é a própria política em gérmen, na sua necessária vitalidade; em suma, num país sem status político, não há status para o político, mas a acção política é a primeira etapa da legitimação, o primeiro exercício da cidadania. Efectivamente, nas ruas em que grupos separatistas se passeiam casualmente nos seus uniformes camuflados entre os civis, a certeza de que faz parte da génese identitária de um abecasiano uma ideia clara acerca da sua posição face à gestão do território a que pertence. A estrutura epistolar do filme de Baudelaire é preponderante para reflectir a estreita relação entre uma carta e um filme enquanto ‘‘máquinas do tempo’’, suportes memoriais irremediavelmente datados e evocativos de um tempo passado. Mas as cartas são corpos destinados, encaminham-se para um território particular numa travessia que é real e irredutivelmente política – depende de uma teia de relações exteriores. Assim, Eric Baudelaire testa permanentemente esta indefinição e dirige as suas missivas a um país que é, antes de mais, um sonho, abrindo caminho entre os bloqueios e a negligência internacionais. Quando a Abecásia é um território oscilante, geograficamente situado mas politicamente indefinido, far-se-á da sorte cenário para este enredo de cartas, que poderão chegar dali a uns dias ou anos ou nunca chegar – da mesma forma que o destino ambíguo da Abecásia até hoje se suspende incerto. Recordamos a frase de Max: “sem passado não há presente e sem presente não há futuro’’.
Sabrina D. Marques