Atentemos no boné de Chris Kyle (Bradley Cooper), onde se vê inscrito o nome ‘Charlie’, numa altura – esta da estreia do filme – em que a palavra nos causa eco por razões muito fortes, por motivos de revolta. Charlie foi também a designação dada ao vietcong, o inimigo dos americanos na Guerra do Vietname (oriunda da expressão para a letra C, no alfabeto fonético usado pelos militares, que entrou na gíria dos beligerantes). Charlie acaba por ser aqui, inevitavelmente, no tempo representado e no flagrante presente da estreia, um símbolo discreto da resposta ao terror. Não só para os americanos.
Depois deste pormenor curioso, não há, de facto, especulação possível a fazer-se acerca da mensagem política de American Sniper (Sniper Americano, 2014), porque essa não existe, e a existir só viria criar mais mácula na pobreza cinematográfica em que Clint Eastwood tem vindo a ingressar, em prol dos biopics que, neste caso, nos deixa um pouco atónitos com o patriotismo ligeiramente bacoco do final (não vou ser spoiler). Eastwood foi um actor de westerns, conhecedor dos espíritos honrosos e estoicos que se movem nas teias da violência, e é, além disso, um realizador que, em muitos dos seus filmes, busca nesse tema da violência o retrato de uma América agrilhoada pelo dilema das armas. Pois é então uma arma e quem a sabe usar honradamente que confere sentido teórico a American Sniper, um filme feito na justeza absoluta de uma personagem, desviando abordagens mais amplas para conduzir o espectador num character study pouco interessante.
Chris Kyle foi um atirador – um verdadeiro marksman – que ficará nos anais da história militar americana como o músculo mais forte e o olho mais aguçado da guerra do Iraque. Um enorme orgulho nacional. A partir desta premissa de representação de um ser lendário, American Sniper limitar-se-á a contar-nos telegraficamente a vida de Kyle, a base da sua educação rígida (o dever de proteger o irmão), a decisão de “servir a nação”, a natural preocupação da mulher (que acaba por cair um pouco no cliché figurativo), e o trauma que se vai instalando num cérebro focado quotidianamente em alvos – na guerra, alvos a abater, fora da guerra, alvos a proteger.
Há uma atmosfera de jogo em American Sniper, daqueles jogos de playstation que nos garantem um colete anti-balas na própria noção de ausência de perigo concreto, e que nos viciam no tiroteio virtual sem consequências reais. «Mesmo depois de experimentada, a guerra não deixa de parecer um jogo. (…) O perigo é então uma abstracção, as vidas que são destruídas são como brinquedos quebrados por uma criança e são do mesmo modo indiferentes (…)»: tal como nos sentimos imunes e viciados nas cenas de guerra do filme (acentuadas até pela criação de ambiente sonoro), assim encontramos nas palavras de Simone Weil, no livro A Fonte Grega, essa ancestral abstracção inerente à guerra. Dir-me-ão “mas Kyle ficava sempre tenso e apreensivo quando tinha uma criança ou uma mulher na mira”. Chama-se humanidade – mesmo que a guerra tenha feito dele uma máquina –, e, apesar disso, não deixava de concretizar o gesto de puxar o gatilho. Mas não era mau rapaz (nunca o seria, a protagonizar um filme de Eastwood), antes pelo contrário. Esses dilemas morais de poucos segundos, logo se resolviam em função de uma abstração superior: a abstração do dever, que é a mais poderosa. O “tem que ser” é um imperativo não questionado, uma desresponsabilização que se vai estabelecendo e fazendo de um estado de guerra um estado de jogo, um vício. Tal como o protagonista de The Hurt Locker (Estado de Guerra, 2008), de Kathryn Bigelow, Chris Kyle, o American Sniper, não se desliga desse estado permanente de foco treinado, que se revelará em algumas cenas da vida doméstica (praticamente quimérica), como aquela em que a filha recém-nascida está a chorar na incubadora e ele não controla o pânico de ver que ninguém se dá conta da ocorrência, que ninguém tem a sua concentração nos alvos de perigo. E, afinal, talvez esse momento tenha sido apenas uma construção da sua mente.
Não sendo uma construção da mente de Clint Eastwood, American Sniper fica aquém dos propósitos cinematográficos, para servir, como Kyle serviu a América, as páginas de uma biografia. Queremos o Eastwood de Gran Torino de volta.