No passado dia 14 tive o prazer e a honra de “intervalar” a minha actividade de investigador fechado na toca para apresentar algumas reflexões, testar conceitos e ideias que tenho desenvolvido no âmbito da minha tese de doutoramento na rubrica “Intervalo para o Conhecimento”, programada para a sala Luís de Pina da Cinemateca Portuguesa (divulgo aqui, em primeira mão, essa intervenção quase na íntegra, para ver e ouvir). Foi uma oportunidade para provocar um diálogo frutuoso entre esse pensamento em formação e um auditório conhecedor e particularmente sensível às questões do cinema. Logo no início, não pude deixar de convocar a memória de Luís de Pina. A verdade é que, muitas vezes, como ditaria a filosofia topológica de Walter Benjamin, antes de sermos nós a habitar o lugar é, pelo contrário, o lugar que nos habita. Luís de Pina, segundo director da Cinemateca Portuguesa, era um entusiasta da investigação em torno das imagens, um intenso e fervoroso defensor de uma ideia de passado no cinema português – ideia olhada com grande desconfiança durante muito tempo. Foi ele um dos principais presentes-ausentes no lugar que nos abrigou, a sala da Cinemateca que mais se assemelha a uma câmara escura, uma espécie de Brownie gigante dentro da qual se projectam filmes. Ou melhor, foi Luís de Pina que assistiu, em primeiro lugar, (a) essa minha exposição. Assistiu, pelo seu exemplo, pelo facto de também a ele se dever muito do que é a Cinemateca Portuguesa, a minha segunda casa (e)ternamente amiga.
Entrar na sala escura com o seu nome para falar de ideias e de imagens, ou de imagens sob a forma de ideias e vice-versa, fez-me viajar para um documentário que tinha visto há dias na RTP Memória (disponível online aqui): O Amigo de Ford: um filme homenagem a Luís de Pina (1992) de Fernando Matos Silva, Magarida F. de Almeida e Luís de Matos. Pela narração em over de Ruy de Carvalho – talvez sentimentalizando excessivamente cada frase -, ficamos a saber como a obsessão pelo cinema, isto é, pelo “écran éblouissant” nasceu em Luís de Pina na sala de aula. No seu liceu no Porto, o pequeno Luís de Pina inicia-se numa forma de cinema vivo: “O estar na aula atento ao professor, ao quadro preto, é talvez a primeira preparação que alguns de nós recebem para a sala escura, a sala de cinema. Um quadro preto cheio de números, letras, sinais intermináveis que se transformam num quadro branco, numa tela onde se projecta outros sinais, muito perto da vida: o cinema”. O quadro negro é o pré-cinema que dá a ver a Luís de Pina esta capacidade do cinema conseguir sobreviver fora da sala escura, confundindo-se, se for preciso, com o processo de aprendizagem e conhecimento. A sala de aula e a sala de projecção, dois lugares que qualquer um que estuda e pensa cinema tende, com toda a naturalidade, a misturar. Em certa medida, a rubrica “Intervalo para o Conhecimento”, criada pelo actual director da Cinemateca, nem de propósito também professor de cinema, José Manuel Costa, tinha de acontecer sob o nome de Luís de Pina. Se ele era amigo de Ford, como diz o documentário, isso também queria dizer que era amigo da história e da lenda. E que se imprima tanto uma como outra. Na Luís de Pina, fui, então, publicitar o conhecimento, partilhar ideias, esgrimir argumentos e especular, sempre especular sobre os meus e nossos fantasmas – afinal, o ecrã é tanto um quadro negro (ou branco) como um espelho. A proposta da sala, de quem a habita no nome, não podia ser respondida de outra forma: exposição e mesmo sobreexposição do saber.
Apresentar uma investigação que já conta com mais de 4 anos é isso: exposição, nudez, alguma insegurança ou dúvida também, incertezas aqui e ali. Não é fácil, mas, como a cinefilia, o prazer está na partilha, no pôr em comum de ideias e(m) imagens (toda as imagens são complementos de ideias, dizia Godard). Nunca tive o cinema como um espaço de colecção de cromos ou de uma competição entre gostos – hoje o gosto traduz-se muito em “gostos”, dando esse lastro quantificador ao exercício de se devorar e digerir filmes, um lastro ainda mais santificador, porque, como dizia Chaplin/Verdoux, “numbers sanctify”. A lógica de ver filmes para ir riscando com uma cruz os títulos numa lista infinita parece prática de super-mercado ou missão de enciclopedista entregue à estúpida tarefa de tentar evitar o inevitável: conseguir ver tudo o que há para ver. Também há o modelo de cinefilia que se compraz na destruição de santuários vizinhos – menos “outros amarão o que eu amei” e mais “outros odiarão o que eu odiei”, ansiando por um adolescente “eu bem te disse” que embarace a multidão de pacóvios iludidos – , seguindo dogmas que guardam uma ideia higienizada de cinema… Estes cinéfilos são mais ou menos exemplificativos do que era, para Serge Daney, o entediado e entediante espectador moderno, isto é, alguém que gosta menos de filmes do que do cinema.
Numa entrevista ainda por publicar realizada por dois companheiros do crime, Ricardo Vieira Lisboa e Carlos Natálio, Vasco Pimentel chamava a este espécime qualquer coisa como – e parafraseio de memória – “os cinéfilos de sacristia”. Incluiria nessa categoria aqueles cinéfilos que se agrupam como um gangue para exercer bullying crítico a coberto de um política do gosto (estilo de crítica culinária, como a chamava Brecht) e dos gostos (os que Zuckerberg quer que sejam o rating do nosso amor-próprio). Pimentel dizia que detestava missas ou pregações, mesmo que gostasse, nalguns casos gostasse muito, de alguns dos deuses cegamente adorados. Ao mesmo tempo que escrevo isto também penso: ora bem, estúpido – até, ou sobretudo, no sentido que lhe dá, em Ideia de Prosa, Giorgio Agamben, isto é, derivação do latim stupire, que significa espanto, estupefacção, que, da mesma vizinhança semântica de studiare, designa a incapacidade “tanto de levar as coisas até ao fim, como de se libertar delas” – e enciclopedista, conservador, idólatra cego, fanático intolerante ou, por vezes, requintadamente perverso nas embirrações… enfim, não terá o cinéfilo que se preze um pouco de tudo isto? A questão talvez comece precisamente aí; pela deriva para os extremos que acaba por obnubilar o espírito e distanciar-nos daquilo que positiva a paixão: o amor a…
Ora, a história de uma sala como a Luís de Pina e a história de uma instituição como a Cinemateca, tal como, fundamentalmente, a história da própria cinefilia e do próprio cinema, pauta-se, a meu ver, por outros valores e outras práticas: a generosidade, o gosto pela partilha e, para mim decisiva, a troca de ideias, isto é, o cinema como motor do pensamento, como pré-texto para se pensar o mundo. Ele (o cinema) é um quadro negro (ou branco), ele é um espelho (intro e retrospectivo), ele é uma lupa, um xadrez, um fórum. Ele é investigação, ele é jogo, ele é debate. Ou, usando um título que transcende o contexto histórico do seu conteúdo, o cinema é muito simplesmente uma “cidade aberta”. As cliques em fúria, de tochas em punho, os autos de fé, os autismos da fé, ficam mesmo à porta. No documentário que citei, a humanidade de Luís de Pina ganha a grandiosidade de uma paisagem de Ford, daí que, como em Ford, se “imprima” nele mais a lenda do que, talvez, a história. Mas isso importa pouco. O que interessa é a imagem de elevação moral de um homem que amava os filmes e o cinema – ou será que esta é a história de um homem que se elevou moralmente precisamente por via desse amor? Um dos testemunhos mais comoventes vem-nos de um já muito velhinho Jorge Brum do Canto quando diz que Luís de Pina era um “homem simples, sincero, sem nada dessas pequenas intrigas, desses pequenos ódios que se encontra a cada passo”. Também Manoel de Oliveira dedica palavras generosas ao antigo director da Cinemateca: “era um homem verdadeiramente interessado pelo cinema, o cinema português em particular”. Ele era, enfim, um homem pelo cinema antes de ser do cinema. É isso que comove um espectador como eu, que não pôde conhecer – e ser amigo – de Luís de Pina. Mas, naquela sala, um dos sentimentos que mais me encheu de orgulho foi precisamente essa ligação, diria metafísica, que acontece num lugar de culto que é uma sala de cinema dentro da catedral de todas as catedrais das imagens em movimento: a Cinemateca Portuguesa.
Ainda aí, mas na sala principal, baptizada com o nome do fundador Félix Ribeiro (a que surge logo no primeiro plano de Amigo de Ford), outro director da Cinemateca voltava a ganhar vida e, brilhante como foi, a dar luz a quem o (ou)via: João Bénard da Costa. Um ciclo em sua homenagem, ainda em curso, compila as apresentações que esse amigo do amigo de Ford fez para a televisão pública. “Extras” preciosos que a equipa de programação da Cinemateca recuperou agora, como que simulando no grande ecrã a experiência que muitos cinéfilos-ainda-por-ser tiveram a partir do pequeno ecrã. A série chamava-se No Meu Cinema e foi realizada por Margarida Gil. João Bénard da Costa faz o seu “Hitchcock presents” a alguns dos filmes que mais amava. Nestas aparições há qualquer coisa de “Conde Drácula da cinefilia”, como se fosse ele alguém que nos recebe no seu castelo transsilvânico chamado história do cinema, para depois nos atacar com uma doença que salva, mas que também nos furta tantas vezes à vida: a cinefilia.
O tom declamatório e grave tal como a monumental presença do ex-director da Cinemateca ajudam a esta caracterização “universal”. Bénard da Costa começa por apresentar o filme, numa mise en scène que normalmente reproduz, mais ou menos jocosamente, uma sequência ou um plano desse filme – exemplo do sino em El (1953) ou da garrafeira em Notorious (Difamação, 1946). Após esse intróito, segue-se o filme, para, depois dele, reaparecer o cicerone promovendo um fino esquartejamento da obra mostrada. É isolada uma sequência que, pelos olhos e boca de Bénard, nos dá a ver e ouvir tudo o que importa reter desse filme e, às vezes numa manobra crítica magistral, de toda a obra do realizador que a assina. Bénard pega numa cena perturbante daquele que será o grande filme mexicano de Buñuel junto com Los olvidados (1950), El, em que, a certa altura, a personagem do marido egomaníaco arranca um pau de metal das escadas e o faz agitar contra o corrimão, produzindo assim um som que, segundo Bénard, ecoa o barulho de tambores durante a semana santa na aldeia de Calanda, em Aragão, onde passou a sua infância.
Agora que a RTP se prepara para mudar de administracção, com Nuno Artur Silva a aparecer como a solução mais provável para o pelouro dos conteúdos, é preciso perceber em que medida vamos ou não ter aquilo que o ainda actual director das Produções Fictícias e do canal Q escreveu num email a Poiares Maduro em 2013: uma RTP2 com “perfil cultural” e uma programação verdadeiramente “alternativa”. Claro que não basta predicamentos genéricos desta natureza, é preciso perceber o que é esse “perfil cultural” de que fala Nuno Artur Silva – ele é quase inexistente, ou igualmente desinteressante, num canal Q – e que tipo de alternativa propõe – não é que a RTP2 não seja diferente dos outros canais já, o problema é que, face a programas do passado como No Meu Cinema, mas também Cineclube, Filme da Minha Vida, 5 Noites 5 Filmes, Cinema de Animação (com Vasco Granja), Onda Curta, aparece como urgente reverter esta tendência para o afastamento do cinema do canal.
É crucial que Nuno Artur Silva saiba olhar para os exemplos de Bénard e de um programa como No Meu Cinema, vendo neles emblemas do que pode e deve (voltar a) ser o tratamento a dar à cultura e às artes em estações que só fazem sentido existir se souberem pôr à frente do valor “mercado” os valores da educação e do conhecimento. Também aqui o exemplo de generosidade e a visão, enfim, de Luís de Pina deverão servir como referências. Conta naquele documentário o antigo Presidente da RTP João Soares Louro que Luís de Pina “foi precursor universal de uma forma de programação televisiva que mais tarde o Canal Plus instituiu, que é, sobretudo, a de transformar a televisão como um meio de levar o cinema a casa das pessoas. O Luís de Pina, já no fim dos anos 60, anos 70, defendia a tese de que a RTP devia transmitir um filme por noite”. Passados estes anos todos, a convicção de Luís de Pina mantém-se não só actual como uma urgência ainda maior. Como resolução para o novo ano e para a nova direcção com Nuno Artur Silva, proponho então que regresse a sério o cinema à antena da RTP. Só assim outros amarão aquilo que todos amamos, aquilo que todos nós – tantos pelo pequeno ecrã – aprendemos a amar.