Quem ainda acredita na existência do Autor encontra em Michael Mann prova bastante para defender a sua posição. Independentemente das pessoas com que trabalha – argumentista, director de fotografia, compositor -, o seu cinema narcotizado e atmosférico pouco muda. Há até quem diga (e escreva) que faz sempre o mesmo filme. Se actualmente esse epíteto soa ligeiramente insultuoso ou, pelo menos, indicia condescendência, outrora serviu para definir o verdadeiro Autor, um Hawks, um Ford. Como aqueles, Mann trabalha certos elementos visuais e narrativos insistentemente, repetidamente, sendo virtualmente impossível confundir um filme seu com o de outro cineasta.
No entanto, se na década de 1990 Mann era um realizador bastante apreciado [especialmente depois de Heat (Cidade Sob pressão, 1995), no qual juntou Al Pacino a Robert De Niro], no novo milénio essa consideração diminuiu drasticamente. Pode ser exagero, mas jamais um filme seu teve similar sucesso da crítica ou do público. Aliás, começou a ouvir-se que estava acabado, que era “mais estilo do que substância” e as suas limitações estavam finalmente à mostra. Tal antipatia deveu-se, especulo eu, à precoce adopção do digital e, pior (ou melhor), à maneira como nunca tentou disfarçá-lo de película – prática comum nos dias de hoje, em que o digital é apenas um substituto para a película e muito poucos procuram explorar as suas especificidades. Pelo contrário, o cinema de Michael Mann transformou-se com o digital, ultrapassou-se, pelo que é inevitável assinalar um antes e um depois desse momento.
Blackhat (Ameaça na Rede, 2015), o seu mais recente filme, segue a linha de Miami Vice (2005), a cada vez mais consensual obra-prima D.D. (depois do digital) e uma das maiores obras deste século (escrevo-o sem hesitações): um enredo tão complicado quanto ridículo, actores de qualidade questionável e uma beleza visual sem limites, que embala o espectador num entorpecimento semelhante aos das personagens, entregue àquela inércia ruidosa, equivalente cinematográfico da música ambient (com laivos de noise e shoegaze, curiosamente géneros raramente usados nas bandas-sonoras do realizador, especialmente nos últimos tempos). Uma beleza suficientemente maravilhosa para resgatar a obra às suas próprias deficiências e, mais, as elevar a qualidades: Colin Farrell nunca foi tão frágil, tão vulnerável, tão bom actor como em Miami Vice [só em The New World (O Novo Mundo, 2005) chegou perto].
Incompreensivelmente, muitos consideram o Michael Mann D.D. feio e televisivo, quando é a continuação lógica (um notável passo em frente) do melhor Mann A.D. (antes do digital): Thief (O Ladrão Profissional, 1981), a primeira longa-metragem, e a salvação ao inexorável destino do noir; Manhunter (Caçada ao Amanhecer, 1986) e a paralisante perseguição a um perturbante serial killer; Heat e o amor entre dois homens que apenas se conhecem espiritualmente. Não espantam as comparações musicais, surgidas aqui e ali: Mann aspira à abstracção mais próxima de outras artes e distante da pressuposta prisão do cinema à narrativa – a ideia de que um argumento mediano, como o de Morgan Davis Foehl para Blackhat (alguns diálogos são francamente confrangedores), não pode originar um grande filme funda-se neste equívoco. De resto, naquilo que é estritamente cinematográfico, a acção (entendida como movimento, dos corpos e da câmara, mas também no sentido de filme de acção, de tiros e batatada), Mann é absolutamente prodigioso, um coreógrafo da estirpe de Johnnie To, seu único rival nestas (an)danças. Nesse aspecto, a deslumbrante sequência final, no meio de aparatosas festividades em Jacarta, é exemplar. Michael Mann encena uma pouco habitual luta corpo a corpo, criando um bailado tão elegante quanto o da anterior e assombrosa troca de tiros no porto de Hong Kong (Mann filmou parte de Blackhat no antigo protectorado britânico, terra de To e John Woo; sem muito esforço, poderá vislumbrar-se uma homenagem).
A criticar em Blackhat, só o abuso do CGI (imagens geradas por computador), o malvado primo do digital, nomeadamente na primeira sequência, que desce dos céus até à mais ínfima partícula de uma placa de rede (estou a inventar, não percebo nada de hardware), do máximo ao mínimo [a lembrar um famoso plano de Notorious (Difamação, 1946) de Alfred Hitchcock], e na explosão de um carro de que não revelarei mais pormenores para não estragar a surpresa a alguém.
Repegando na primeira frase do texto para o terminar (a famigerada pescadinha de rabo na boca): se Michael Mann é um Autor, o seu pior filme é melhor do que o melhor filme de qualquer outro. Como Blackhat está longe de ser o pior Mann [esse será o mais incaracterístico, The Keep (O Guardador do Mal, 1983)], o silogismo nem se aplica. Contudo, mesmo se se aplicasse, seria igualmente inatacável.